domingo, 30 de dezembro de 2007

As frutas


            Em meados de 1500, exclamava Lope de Aguirre: Já que o vice-rei, marquês de Cañete, não pode enforcar de um só golpe quatro mil soldados espanhóis que andamos aos trancos e barrancos pelo Peru, sem ocupação e sem destino e como sabe de sobra que a fome e a ociosidade estão na origem de todas as rebeliões, nos oferece entradas e descobertas no Sul e no Oriente através de selvas tenebrosas e rios indomáveis, que se achamos glória será para o Rei e se achamos a morte será para nós mesmos. Como o documenta no livro Lope de Aguirre , Príncipe de la Libertad, Miguel Otero Silva, que, entre ficção e realidade, relata a sua atribulada história, nela há um momento em que poderia viver tranqüilo em Cuzco, domando cavalos. No entanto, desse mister, embora sendo um verdadeiro mestre, estava impossibilitado pelos ferimentos recebidos numa das contendas em que se digladiavam os espanhóis na busca de poder e de riqueza que os havia trazido para o Continente. A mãe de sua filha havia morrido e ele, sem possibilidades de sustentar a menina, se engajou, como centenas de outros, na expedição que partia em busca do ouro. Mas temendo que em Cuzco ela ficasse à mercê de todos os abusos, a leva consigo e, também, duas mulheres para cuidá-la. Longo foi o tempo passado na selva e na correnteza dos rios, a enfrentar todos os perigos e lutando para vencê-los tanto quanto para conseguir alimentos. Ele está sempre atento para que a menina e as mulheres que dela se ocupam não passem fome seja conseguindo o que é distribuído entre os soldados, seja levando víveres numa arca ou aproveitando o que a natureza do Continente oferece. Então, colhe as frutas que tenta definir, pois não lhe conhece os nomes: Arrancamos das árvores uma grande quantidade de saborosas e estranhas frutas: umas verdes em forma de pêra que esconde uma polpa amarela e suave, outras douradas e de um gosto ácido que franze os lábios, outras gordas e carnudas como maçãs mas de casca dura e grandes sementes.


            Em Los nacimientos, primeiro volume de Memória del fuego,  o texto “Por amor de las frutas”, cuja fonte é História General y natural de las Índias de Gonzalo Fernandes de Oviedo y Valdés, é um entusiasmado testemunho sobre os sabores que o autor encontra nas frutas ao chegar na América, em 1514. Começa Eduardo Galeano dizendo que o recém chegado, prova as frutas do Novo Mundo e enuncia suas opiniões: a goiaba lhe parece superior à maçã; a graviola possui bela aparência, uma polpa úmida e branca e suave sabor. O mamey pede repetição e tem um cheiro muito bom: Não existe nada melhor. Porém, ao morder uma nêspera, certo de que nada pode a ela se comparar, corrige: a nêspera é a melhor fruta. No entanto, quando descasca o ananás seu perfume o deixa sem palavras para lhe exaltar as virtudes. Ainda assim, conclui: Esta supera todas as outras.

            Outros europeus foram chegando para ficar e, com eles, pouco a pouco, também, as frutas – uvas,  pêras, maçãs, pêssegos, melões – trazidas pela saudade dos sabores ou pela negação em aceitar, como bom, o que era próprio do Continente.

domingo, 23 de dezembro de 2007

As águas do Amazonas


              [...] pai Amazonas oceano doce e fugitivo deus supremo dos bosques o mais eterno entre todos os rios. Assim o define Lope de Aguirre ao relatar sua vida desde que saiu de seu povoado espanhol, Oñate e que, de Sanlúcar de Barrameda, embarcado no veleiro Santo Antonio rumo a Cartagena de Índias se aventurou no Novo Mundo disposto a consumir a vida se fosse preciso para dar maior glória à Espanha.

            Se, na História da América ele é um figura controversa, na obra ficcional, Lope de Aguirre, Príncipe de la Libertad  (Seix Barral, 1979) que lhe refaz as andanças, se revela digno personagem desse Continente em que se entrelaçam a grandeza e as atrocidades e as misérias trazidos pelos conquistadores ibéricos. Seu destino foi longo e, principalmente, cruel: enriquecer e perder os bens; possuir poder, e ser humilhado. Revolta-se contra Felipe II, rei da Espanha, escrevendo-lhe uma carta e, depois, lutando contra a sua autoridade no Continente. No seu viver atribulado, percorrendo espaços desconhecidos, enfrenta perigos, perversidades e traições; seu olhar para o universo que descobre é parco e mal registra o que vê: terra lavrada pelos índios, florestas, montanhas, planícies, enormes lagos. E, cursos d’água que servem como caminhos para que os ibéricos se internem, ainda mais, no Continente em embarcações leves e em balsas feitas de troncos. Navegando em rios que desconhecem, se detém horas inteiras em inesperados remansos, avançam entre perigos pelos turbilhões desmedidos, perdem o rumo, levados pela correnteza que os lança contra as margens até chegar à foz do Ucali. No grande encontro das águas, diz Lope de Aguirre é um cataclismo de cega alegria um furacão de vidros e palmeiras um turbilhão de grandes árvores truncadas, uma turva anarquia de peixes e tartarugas um sonâmbulo céu tempestuoso, um cruel reflexo de emplumados infernos [...]. Exatamente aí é onde nasce o rio Amazonas, diz Lope de Aguirre. Segue por ele e, de repente, pela margem esquerda irrompe o rio Canela. Nesse ponto, diz, é que o Amazonas se torna irreparavelmente universal e o navegante, começa a se sentir mínimo ou infinito conforme a opinião que tenha de si mesmo. Ele, embora ciente de já estar velho rengo e desdentado, tem a certeza de valer mais do que todos, na disposição de coroar com  seu braço as façanhas mais incríveis. Não as realizou. Tampouco conseguiu se livrar de um julgamento que o fez vítima de tiros e de ser decapitado. Não sem antes proclamar que Felipe II receberia, na História, o epíteto de tirano e que, ele, Lope de Aguirre, seria proclamado o Príncipe da Liberdade.

            Hoje, ao escrever sua história, o venezuelano Miguel Otero Silva o mostra como uma figura profética a anunciar, para os que vieram depois e almejaram, a liberdade para o Continente.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Ofertas

            O Coronel Baltasar Antão, diante da carta que chegara lacrada, anunciando a chegada do hóspede francês, determinara que lhe fosse proporcionado o melhor e como deveriam tratá-lo, quais os copos para o vinho, a louça que iria guarnecer a mesa, as roupas de cama de cambraia fina, o fogo sempre aceso para o seu conforto. E, partiu para a guerra, ao saber que os castelhanos alcançavam vitórias, deixando a estância nas mãos do capataz e, na casa, a mulher e os filhos.

            Na manhã em que chegou o hóspede, Isabel, a filha assumindo as ordens da casa – a mãe a se recusar sair do quarto, o pai a dizer-lhe, antes de partir Para o francês, o melhor – foi ditar, na cozinha, o cardápio para o almoço: umas comidas leves, galinha ensopada, papa de moranga, arroz, e de sobremesa mingau. Para o hóspede friorento que, ao chegar, em meio a chuva, se aproximara muito do fogo e tinha as mãos cuidadas, brancas, os dedos longos e finos, o cabelo cor de trigo maduro, de ouro, melado, Isabel decidiu calafetar todas as frestas das janelas, pôr no quarto, junto da cama, um pelego para que não esfriasse os pés ao se levantar. E que, tampouco, lhe serviria abóbora, carne de ovelha, feijões retovados de lingüiça e charque, mas compotas suaves, galinhas aferventadas, os frutos em doce, muito leite. Porém, no primeiro almoço, o francês, provando de tudo, tornava a se servir, os olhos buscando as travessas com voracidade e gosto, feito não comesse há dias. Diante desse prazer com o qual ele comia, Isabel resolveu servir o melhor da casa e não pratos sem gosto. Assim, quando a escrava, no final da refeição, veio servir o mingau, ordenou que levasse de volta e trouxesse a ambrosia: Logo na mesa estava a compoteira de cristal, deixando ver o doce lustroso e amarelo, mergulhado em espessa calda. Ainda que, no passar dos dias, o jantar quase sempre fosse a repetição do almoço, o hóspede jamais deixava de elogiar, definindo como uma grande refeição, como um banquete, o que lhe era oferecido.

            Depois, no jogo da conquista amorosa, Isabel, embora cheia de tentações, quase cedendo à teia de encantos com que ele a envolvia, obedeceu a seus princípios e se negou. Não, porém, Micaela, a mãe. Na ânsia de experimentar o que jamais tivera, sucumbiu à tentação e à noite, ao acreditar que a casa adormecia, encontrava a vida num quarto que não era o seu. Levados pela índia que estava a seu serviço, encontrava os fiambres, frangos assados, pastéis de Santa Clara, bolos cobertos de ovos moles, vinhos e licores e, sobretudo,  as surpresas das entregas e das posses.


            O hóspede francês aceitava o que lhe era ofertado e criava ilusões pois, deveras, era pouco o que tinha para dar. Foi-se embora no escuro da noite. Isabel festejou a volta do pai. Micaela, incapaz de retomar a aridez de sua vida de casada, joga a definitiva cartada. É, então, como se tudo voltasse a ser como antes e, intocadas, permanecessem as virtudes da casa, expressão que dá título ao romance de Luiz Antonio de Assis Brasil, gaúcho de Porto Alegre, publicado em 1985.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Fialho d´Almeida e o Imperador



            Revolução picaresca, assim chama Fialho d’Almeida a instalação da República no Brasil ao iniciar o seu texto, depois reunido, como os demais que escreveu sob a rubrica Os Gatos, em cinco volumes, publicados pela Livraria Clássica Editora de Lisboa. Na sua matéria jornalística, ele comenta a chegada do Imperador D.Pedro II, recambiado para a Europa onde desembarcou em Lisboa. Desembarque em que encontrou, segundo Fialho d’ Almeida, as caras de cortiça do séqüito do snr. D. Carlos, e a refilante matilha de repórteres, ávida de conspurcar a majestade do infortúnio com a inexprimível solércia das interviews, obscenizada por essa absoluta falta de pudor dos que fazem da alcovitice um ganha pão. Ainda que, em certo momento, afirme sentir uma ponta de ternura pelos dois nobilíssimos velhos destronados, o desprezo que sente pelo jornalismo miúdo que prospera nas reportagens que acompanharam os dez primeiros dias do Imperador na cidade o leva a imaginar uma estapafúrdia entrevista que, ao se propor ridicularizar o entrevistador, torna também, o entrevistado um personagem burlesco e ridículo. Primeiro, ao dar a mão molemente ao homenzinho, com a resignada bondade de que, há muito se entretém, como Esopo, a fazer falar os animais. Logo, a se antecipar às perguntas, respondendo sobre o cardápio de seu jantar e sobre as suas intimidades higiênicas. O que levou o entrevisteiro a farejar algo de novo, a influência da roupa branca na queda das dinastias e ao ensejo de formular perguntas e respostas de um mau gosto desolador. Antes disso, menciona a quase inexistente presença da colônia brasileira, constrangida e desdenhosa, para recepcioná-lo na chegada. Porque uma possível simpatia por D. Pedro II não tinha mais sentido, pois, exaustorado, já não daria pensões a artistas e estudantes, nem nomearia cônsules ou plenipotenciários e nem brasileiros, nem portugueses abrasileirados  podiam, então, pretender auferir vanglória ou espórtula de vulto!. O que, no entanto, não irá impedir o entrevisteiro, antes de formular a derradeira pergunta – uma restauração será possível? – de pedir dez tostões emprestados. Ao que D. Pedro II, nesse diálogo imaginado, responde: Ai de mim! Reaver o império é quase tão impossível como reaver os dez tostões. Na verdade, o esboço de um perfil caricatural de D. Pedro II que, pouco tempo antes, Fialho d’Almeida definira, em outro artigo, como figura venerável. Assim, embora, alguma vez, pudesse mostrar simpatia pela figura de D. Pedro II, o registro feito  de sua chegada a Portugal parece ser, apenas, uma oportunidade a mais para achincalhar a monarquia. E o faz com o ímpeto verbal que lhe é particular em que a mediocridade se faz presente tanto quanto as expressões estilísticas e as construções inventivas que o situam entre os grandes escritores portugueses de sua época.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Érico Veríssimo e Miguel Torga


            Em 1976, a Editora Globo de Porto Alegre, publicava o segundo volume de Solo de Clarineta, livro de memórias de Erico Veríssimo. Dividido em duas partes, a primeira é feita de quatro capítulos dos quais “Mundo Velho sem Porteira” é constituído de suas impressões da viagem que se iniciou, em 1959, no Rio de Janeiro, a bordo do transatlântico Federico C. Comenta o rotineiro das caminhadas depois do café da manhã ao redor do promenade deck, das permanências à beira da piscina, dos aperitivos antes do jantar, a festa na passagem da linha do equador, a escala em Las Palmas. As demais páginas, são dedicadas a Portugal. Primeiro, as gaivotas que acompanham o barco desde o momento em que deixa o oceano e navega pelo Tejo até o porto de Lisboa. Depois, as homenagens recebidas, as conferências que fez antes de iniciar a viagem pelo norte e pelo sul do país. Na recepção que lhe oferecera o embaixador do Brasil, perguntara por Miguel Torga. Assim, ao chegar a Coimbra, onde o escritor residia e clinicava, pediu que lhe fosse dado o ensejo de conhecê-lo. Desse primeiro encontro, o descreve como um homem magro, quase anguloso que, ao apertar-lhe a mão, não pronunciou as conhecidas frases de pura cortesia e que lhe contou um episódio ocorrido com um escritor brasileiro a quem levara para conhecer a Sé Velha. Lembra Miguel Torga ter percebido o seu desinteresse pelas preciosidades artísticas do interior da igreja e que, ao sair, lançou-lhe um olhar rápido e morno, emitindo a douta opinião: Muito bonitinha. Sem dar tempo para que Érico Veríssimo, se possível, desculpasse o confrade, observou-lhe que tão  somente tinha conversado com estudantes oriundos de famílias ricas e situacionistas o que lhe daria uma idéia falsa da mocidade coimbrã. Porque, no meio dela, havia, também, estudantes pobres, desses que lutam para conseguir seu diploma e que não são politicamente alienados. A pedido de Érico Veríssimo, acedeu em reunir numa das repúblicas de Coimbra, alguns desses estudantes. No jantar simples oferecido, respondeu Erico Veríssimo às perguntas que lhe fizeram e opinou sobre os portugueses que até então pudera observar. E, logo, antes de iniciar a conferência programada, numa sala repleta, saúda Miguel Torga como um dos mais notáveis prosadores da língua portuguesa. Teve receio que sua frase laudatória o desgostasse e que ele, brusco e bravo, se retirasse do recinto. Mas, na primeira fila, Miguel Torga sorriu e agradeceu, como a desmentir o que diziam dele: espinhento como um cacto, duro como a paisagem de sua província natal. Sobre a sua  obra – até então, livro e lenda – Erico Veríssimo confessa a sua admiração: prosa enxuta, precisa, clara. Seus contos e romances, bem como seus poemas, estão cheios de mitos agrestes e duma simbologia bíblica. Arraigadamente regionais, nem por isso deixam de ter um sentido universal. Notam-se nos escritos de Torga um profundo amor à terra, aos bichos, às plantas, às coisas agrestes e um fascínio pelo mar[...]. Palavras elogiosas que não perderam o valor com o passar do tempo como o demonstram os diversos textos críticos que homenageiam Miguel Torga neste ano em que é comemorado o centenário de seu nascimento.

domingo, 25 de novembro de 2007

O Coronel se compara...

 
            Em 1964, José Cândido de Carvalho publicava O Coronel e o lobishomem. O narrador, Ponciano de Azeredo Furtado, um dos mais ricos e expressivos personagens da Literatura Brasileira, ao longo do relato que faz de sua vida de proprietário de imensas terras, menciona algo de sua aparência física e, muitas vezes, se refere às características de seu temperamento e de sua maneira de atuar. Então, na sua singular forma de expressão, usa dos símiles. Ou, servindo-se de formas já consagradas pelo uso da língua ou daquelas que inventa. Em ambos os casos, reafirmando a admirável escrita do autor do romance, o segundo que escreveu, passados quase trinta anos do aparecimento de Olha para o céu, Frederico!

            Para dizer da sua concordância com o interlocutor, Ponciano de Azeredo Furtado, diz que balança a cabeça como boi de presépio, escuta o postulante na maior atenção como manda o figurino e curva o congote como compete a um sujeito educado. No intuito de demonstrar a sua fina educação diante de Isabel Pimenta, ao lhe ser apresentado, lembra: Curvei, como bodoque de bugre, os dois metros do coronel, pois quando quero nenhum galante da cidade pode comigo em mesura  e vassalagem. Esperto para negociar, firma seu nome na praça como sujeito atilado e, precisando, se faz de desentendido, no que sabe manobrar como gente das ribaltas. Quando deve enfrentar o fantasma do avô, bem sentado na sua cadeira como se estivesse vivo, confessa ter sentido uma pontada no espinhaço como em noite que fui picado de jararaca estando em vadiagem de menino. Falta de coragem que, também, demonstra ao sair em comitiva, com seus homens, para enfrentar a onça. Na aparição da fera, é uma fuga só, mas, ele, cujo medo não fora presenciado por terceiros, fica muito brabo com  seus homens, suspende o almoço que seria para festejar o sucesso da empreitada e, caminhando na sala de lá para cá, remói o acontecido nos detalhes mais mínimos, em imitação de boi. Em várias circunstâncias, não demonstra pejo em falar de seu sentir: estar feliz como um passarinho ou cheio de brabeza como um possesso ou de suas intenções (vou rebentar esse confiado como quem rebenta um ovo choco) ou da conseqüência de seus atos (Foi como eu mexer em gaveta de lacraia).     

            Porém, assim como para se retratar, usa, de vez em quando, as comparações, igualmente as emprega para exibir as fraquezas de seus próximos. O gosto pela bebida de Janjão Caramujo, o faz beber feito gambá de galinheiro; a falta de coragem de seu capataz Juquinha Cantanilha que, ao ouvir suas histórias de assombração o deixa amarelo e mais parecendo  um rato assustado; no desentendimento entre Totonho e Fontainha em que um teve medo do outro, Totonho foi achado no sótão de seu hotel mais amedrontado do que um gato na água.

            Tais comparações, constituídas de elementos muito próximos do rude universo em que vive e reina o Coronel, ademais de auxiliarem na composição de seu perfil e de alguns daqueles que lhe são próximos e serem indicadores da riqueza de sua linguagem, reafirmam a verossimilhança, ainda que mágica, de um relato em que cenário, personagens, ações e fantasioso se entrelaçam à perfeição.

domingo, 18 de novembro de 2007

Inusitada escala musical

            O espaço no romance O Louco do Cati (Porto Alegre, 1944 e recente edição da Planeta), de Dyonélio Machado, oferece múltiplas possibilidades de aproximações; seja, entre elas, o lugar em que transcorre a ação, extremamente diverso, devido ao longo itinerário  pelo qual é conduzido o personagem, seja pelos, também, diferentes ambientes que é levado a freqüentar. Tanto os lugares indicados pelos topônimos – e são muitos, na viagem empreendida – quanto aqueles, encerrados entre quatro paredes são apenas esboçados pelo narrador. No entanto, como o faz em relação ao tempo do relato ou a seus personagens, uma vez que é deveras parco em propiciar detalhes, serve-se do parênteses com o fito de oferecer uma informação adicional. Considerando os espaços amplos e exteriores (a cidade e a rua) e aqueles fechados (a casa), essas informações mencionam algo referente à ação – isso fora em Porto Alegre, onde se encontrava, de passagem [...], O funcionário informou: -Não se consegue senão uma passagem até a estação do Norte (São Paulo, Num café da praça Tiradentes (para os lados do Recreio), Norberto e o companheiro encontravam sempre um rapaz de Alagoas [...]. Ou explicam a localização, por exemplo da bomba de gasolina (quase defronte da porta principal do hotel), do Mercado de Lages (que ficava numa das faces, no correr mesmo da rua principal da pequena cidade), do hotel de Livramento (situado, não na rua principal mas, mesmo assim, bem no centro)”. Algumas vezes, entre parênteses, adendos referentes à casa: Ao chegarem numa casa de esquina (o vento aí estava forte mesmo: é que o mar se achava perto), O café [...] contava com muitas portas, abertas para duas ruas (era de esquina). Outras vezes, detalhes sobre alguma dependência: a luz avermelhada da varandinha, a peça da casa que era ampliação de um corredor (o desvão para um desafogo, um téte a téte, uma fuga em dias de aglomêro).
 

            E, também, referências a um ou outro móvel. Em relação estreita com ações dos personagens, algumas parecem, ter o objetivo de um indispensável registro: o da experiência na cadeia. Na seqüência em que Norberto, embarcado preso com o Louco do Cati, para o Rio de Janeiro, reflete no seu beliche, segue-se a explicação: “(os beliches eram dispostos em sentido transversal). Em outra, o Louco do Cati, exausto da viagem e do susto ao ser jogado na cela, senta-se sobre uma tarimba.(O cubículo possuía duas camas, estreitas como tarimbas de quartel). Principalmente, a presença do cadeado na porta da prisão de Florianópolis para onde foram levados Norberto e seu companheiro. Ao ser aberto pelo sargento que os acompanhava, fez o barulho cristalino de ferros, em cascata (da corrente que se desprendia) e deixou ouvir, ao ser fechada, com os dois lá dentro, a porta gradeada (outra vez a mesma escala musical e cristalina da corrente deslizando nos ferros).

            Encerrada entre parênteses, uma simplicidade que não mais se mostra inocente.

domingo, 11 de novembro de 2007

Cantares do mar e terra


            Manoel de Andrade é interiorano, nascido em Rio Negrinho. Poeta, perseguido pela ditadura, fugiu do Brasil em 1969 e percorreu quinze paises da América. Sua lírica de combate foi, então, conhecida no Continente em que os sonhos eram perseguidos e, por eles, muitas pessoas ultrajadas. Agora, neste 2007 que está a findar, publica, pela Escritura de São Paulo, seu último livro Cantares: vinte e nove poemas. Dividido em duas partes, Marítimos e Sobreviventes, em ambas é constante a presença do mar e a expressão de seus ideais que, imunes à passagem do tempo, continuam a ser o que sempre foram.

            No primeiro poema do livro “Marítimo”, de 1965, como o indica o título, é do mar que se trata. Nele, o poeta se dirige, na segunda pessoa, a um interlocutor – na verdade, ele próprio – para dar conta de seu estado de espírito diante dos impasses a vida (Teu barco / atrelado à fantasia soçobra nas brechas das calçada), dos sonhos irrealizados de viagens  irrealizadas (Já não ousas sonhar com a fascinante travessia dos fiordes), do sentido de seu canto (e tu cantarás um sol atrás dessa penumbra). Um mar que lhe habita a alma, mas que é o mar de sempre e de todos, de tantos que o cruzaram para o Bem e para o Mal. Esse amado mar continuará a ser presença nos poemas que seguem, lhe ensinando a mágica leitura do infinito, a sonoridade e o silêncio, lhe oferecendo visões de beleza , transparente beleza de flores e de frutos, lhe dando a paz que só ele concede, marcando a passagem do tempo na beleza do amanhecer, nas horas tristes da tarde que se esvai. E, ofertando parâmetro de beleza: todas as tuas medidas eu quisera ter na suprema síntese dos meus versos.

            Na segunda parte, do longo poema “Sobreviventes”, (de 2003), as duas primeiras estrofes se constituem o registro do que acontecia no país, ao ser instaurado o regime de exceção: não haver o nascimento do sol, ser proibido o amanhecer, e nos vinte anos seguintes, as canções caladas, o norte eliminado, as bússolas quebradas, o destino da pátria ancorado nos quartéis. O pronome possessivo nosso a indicar um destino comum – nossas vidas, nossas canções, nosso norte, nossos punhos, nossos sonhos, nossos gritos de protesto amordaçada, nossos lares, nossas almas – que no décimo nono verso da segunda estrofe é substituído pelo destino daquele (esse tu a quem o poeta se dirige) que tentou lutar e foi neutralizado pela repressão, observado, delatado, seguido, algemado, torturado, morto. A terceira estrofe, um intermezzo, dizendo o que acontecia nos anos dourados, e a volta do pronome possessivo, nossos anos de infortúnio, presente na estrofe seguinte onde o interlocutor, agora, é a Resistência, cuja história é a história da própria humanidade. O poeta lembra, homenageando, os resistentes brasileiros e latino-americanos, em versos comovidos que não esquecem dos sobreviventes de tantas lutas abortadas / de tantas trincheiras abertas pela fé de uma bandeira.

            Manoel de Andrade faz versos porque é poeta e o lirismo de seus poemas, se entrelaçando no coletivo, além de expressar emoções se agiganta para reafirmar o que é imprescindível não esquecer.

 

domingo, 4 de novembro de 2007

As riquezas do cofre


            São cinqüenta e duas crônicas, reunidas sob o título O cofre que a Editora Palloti de Santa Maria, lançou neste ano. Segundo livro de Afif Simões Neto – em 2005 publicou Em nome do pai – são páginas feitas de emoção. Emoção, cujo fio condutor é a consciência da passagem do tempo com seus inúmeros significados, por vezes dolorosos, por vezes, permitindo a insinuação de um sorriso e que se enraíza em São Sepé, cidade onde nasceu e para onde sempre volta quanto quer se recriar. No caminho, um olhar de desconsolo diante do que acontece a seu redor: a comida que sobra e é atirada para alguns imundos que tocam a campainha, os meninos vadios que procuram – e acham – na maconha e na cocaína, parceiras perfeitas para aprimorar o ócio nas praças escuras, o mendigo, recostado à parede do velho casarão da esquina, boca repuxada pela fome ardida. Também, um voltar-se para o passado e para o futuro. Em “Um sujeito a cavalo recolhendo meninos”, registra esse momento de sua infância em que a prisão política do pai, decretada pelos desmandos que aconteciam no país a partir de 1964, deixou sua família desamparada. Com cinco anos, não conseguia entender as ausências. O pai fora levado para São Gabriel, local escolhido pelos golpistas para aplicação do corretivo exemplar; a mãe, com a irmã mais velha, seguindo para a cidade vizinha no desejo de ficar (respeitadas as grades ) mais perto do marido. No seu entender, quando os pais sumiam só poderiam ser encontrados no cemitério. E, para o cemitério ele seguia, caminhando firme. Por duas vezes, um amigo e cliente de seu pai que num cavalo bem encilhado e reluzente de gordo costumava andar pela cidade, o encontrou pelas ruas e o levou de volta para o que sobrara da família. Hoje, diz Afif Simões Neto: Passados tantos anos, refaço o mesmo trajeto. Sozinho, como convém aos que ainda crêem na ajuda desinteressada. Levo uma flor solitária à tumba do meu protetor. Um homem a cavalo, com o bondoso costume de restituir crianças desorientadas à casa paterna.
 

            O futuro está cristalizado em “Maria Cecília”, título da crônica dedicada a sua afilhada. Ela tem quatro meses de vida, pequena boca em coração e o privilégio de receber conselhos de um padrinho que acredita não serem eles nem sábios nem demorados mas vindos de alguém que caminhou o suficiente para se arriscar no ofício de ensinar os outros aquilo que aprendeu, por conta da dor plangente, ou obra do acaso. Na verdade, se revelam valiosos pelo que dizem e pelo afeto que deles transborda:  algo de imprescindível como não esquecer o torrão que abrigou a infância, ter a certeza de encontrar, sempre, o aconchego da mãe na hora em que o mundo se mostrar o lobo mau que é, e lançar seus olhos de procela. E aceitar o ritual da família nos natais quando o levantar das taças quer  dizer prece pelos ausentes e o que para ela já está, então, estipulado: repartir abraços e seu olhar de pitanga.

 

domingo, 28 de outubro de 2007

Animais na Conquista:as ovelhas


  Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez Prado, com duzentos homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso território, enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett , sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas de la Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capitulo, o capitão e seus homens avançam no continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            O trato do Vice-rei do Peru com o capitão Juan Núñez de Prado para, no desejo de se apossar mais e mais  das terras do Continente, fundar uma cidade, não foi fácil. O Vice-rei tinha pressa – deu-lhe um prazo de dois meses, nem um dia a mais – e o capitão precisando de recursos informa: prometeram cavalos e gados, bois, cabras, ovelhas, porcos [...] e menciona, também, cães que haviam sido trazidos no barco. Animais que, parte da expedição, igualmente, como os homens, são vítimas dos elementos, dos acidentes topográficos e da crueldade regendo os atos dos que se atribuem todos os poderes. Dos animais do Continente há, uma vez, menção aos uivos dos lobos e dos chacais e às lhamas. Estas, já usadas (como as mulas e os índios) para carregar os pedaços da cidade na mudança e que não se diferenciam dos homens e dos outros animais, pelo seu estado lastimável: secas, esqueléticas, de olhos desolados e flancos trêmulos. Uma vez, fazem parte do cenário, passando ao longe como, também, fazem parte do cotidiano perigoso da trajetória o porco e as galinhas. O porco, movendo-se, solene e medroso entre os soldados ou, caindo nos precipícios sem elegância, ignorantes e desconcertados. As galinhas a saltar de arbusto em arbusto, aborrecidas, protestando fugazmente, se alvoroçando na praça do mercado ou, com tento, entre os cavalos e os cães. E, se afundam na água de um riacho e cacarejam apressadas ou apressadas e dignas, com certa malignidade clarividente pulam nas paredes das casas e desaparecem nos quartos. O galo, quando as carretas pararam sob a chuva, se pôs a cantar com escândalo e o capitão sente suas asas que se agitavam na escuridão e divisa seu peito vermelho, danificado pela chuva. Sente, também, noutra seqüência, o cheiro de leite fresco das cabras e mais adiante, se dá conta da presença das ovelhas. Sem surpresa, olha as cabras e as ovelhas que, sem rumo, correm entre as cadeiras atiradas cá e lá e as outras que se roçam nas carretas. Ouve alguém que lhe chama a atenção para a lã, uma lã manchada. Elas balam no escuro e, como as vacas e os bois, fogem espavoridas pelas ruas e se despencam nos precipícios.

            Como uma síntese do que, nesse incessante caminhar por terras estranhas em meio à agitação dos atos (fazer e desfazer a cidade) e à inquietação dos homens (medo, cansaço, solidão, doenças, ferimentos, mortes), essa ovelha que os soldados vêem balar humilde, parada na escuridão, com sua lã triste a ressaltar na penumbra, e o focinho palpitando assustado e faminto.

 

domingo, 21 de outubro de 2007

Animais na Conquista:os pássaros


              Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso território, enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas de la Conquista, ciudades refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las  (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capitulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade. 

            Já cavalgando com os pedaços da cidade carregados nas carretas e no dorso dos índios, Juan Núñez de Prado pergunta quanto tempo será preciso para encontrar o lugar que lhes convenha. Um dos capitães responde: antes de oito dias, estaremos traçando a rua principal e desenhando a praça e, então, vamos disparar os arcabuzes para saber se há pássaros nos arredores. Na cidade que deixavam, os índios e os cães e os pássaros fizeram seus ninhos e tocas e conciliábulos e, nas vigas dos tetos das casas terminadas, havia arrulhos nas noites enluaradas. Presença que aqueles cujo desejo era ver a cidade pronta, almejavam tanto quanto as montanhas, os rios e as cascatas. Quando destruíam a primeira cidade no ar cálido sob o céu azul, pelo céu passavam pássaros negros, olhavam sem vontade e planeavam lentos; ou grasnando como a ferir, espiando-os  com hostilidade; no caminho, soavam frescas asas de pássaros e na cidade construída, pombas voavam em torno da igreja  e ao toque dos sinos, se espalhavam pássaros.

            Sozinho na cidade  abandonada, um dos capelães, movido pela revolta, fica para dar sepultura aos mortos, deixados pelos espanhóis. Passa a noite sentado com os olhos abertos, respirando o ar frio da noite agradável, polvilhado de perfumes e de tênues ruídos distantes, em algum galho alto um passarinho cantava. Ao contar o que vivera nesses dias, diz que imaginava o pequeno pássaro fora de seu ninho para espiar as trevas. Então, adormece. No relato que segue, diz como enterrou os mortos, sentindo os abutres caminharem na terra e, depois, levantando vôo, continuarem a dar voltas a seu redor. E como tornou a vê-los, mais tarde: eram quatro e, diante das forcas vazias e da casa fechada, se dispuseram, no seu entender, a esperar sobre as vigas do teto, aberto pelos soldados para disparar contra os donos da casa que não queriam partir, ignorando as ordens do capitão. Eram dois: um, doente, caído de costas. O outro, dono da casa, tinha a cabeça caída de lado sobre a mesa e numa das mãos, ainda havia um pedaço de pão. O padre fechou a janela para protegê-lo dos abutres, mas quando os tirou da casa e enterrá-los, as aves já estavam a postos, como haviam estado perto da forca, esperando que ele fosse embora. O padre se acostumou com eles – eram belos e repelentes – os descreveu com vagar, dando-lhes nomes, imaginando-lhes sentimentos e, sobretudo convicto que eles sabiam proceder e tinham paciência. De repente, um deles já entrara na casa, subira na mesa e picotava o pão que estava entre os dedos do morto. O outro, pulou no peito do soldado e deu-lhe uma bicada. Nas seqüências que seguem, intercaladas, entre muitas outras que descrevem e revelam os sentimentos do capelão, abundam as zonas de sombra, e, muito, deve ser subentendido nas impressões oriundas da sua impossibilidade de separar o real do que lhe sugeria o seu estado de exaustão.

            Se, por um lado, na presença dos pássaros no relato, se instala como que um claro-escuro – pássaros que fazem parte do espaço no qual se adentram os espanhóis e abutres que vivem dos despojos que  esses mesmos espanhóis com seus crimes propiciam – por outro, se insere um posicionamento crítico sobre os atos dos espanhóis.

            Quando ele se aproxima da casa onde estavam os espanhóis mortos e olha, temeroso para dentro, pensa entender o que, talvez, fosse a voz de sua consciência: os abutres a murmurar num  grasnido depreciador e impaciente como dizendo-se, olha esse frade idiota que esses e esses outros e certamente outros mais além, sob as portas, entre as roupas, debaixo dos montes de cordas, estão bem mortos, completamente mortos, é espanhol esse frade pícaro e não sabe como trabalham seus amigos, seus grasnidos [ele diz] me obrigaram a entrar cheio de vergonha na casa e eles tinham razão,meus amigos trabalharam bem, sabiam o que faziam e o fizeram com perfeição.

 

domingo, 14 de outubro de 2007

Animais na Conquista: os cães


Juan Nunes de Prado, com duzentos homens,  índios submetidos e animais, percorreu um extenso itinerário enfrentando discórdias e desventuras para fundar uma cidade. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crónicas de la Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades, romance publicado em Barcelona, Noguer, 1973. No segundo capítulo, o capitão e seus homens, avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 
        São muitos e, muitas vezes, mencionados no relato e se revelam pelos seus latidos e seus uivos. Os soldados ou os capitães os escutam nos sons vindos de longe, perdidos na névoa, em meio à mata ou, desesperados, sob o vento da tormenta; principalmente,  pelas relações que se estabelecem entre esses homens que, pela primeira, palmilham as paragens do Continente e os cães que trouxeram consigo  no caminho da Conquista. Ao escutá-los, o capitão conta mentalmente, e conclui que são três os que latem; quando a carreta para, os cães saltam e, latindo, o reconhecem. Ainda assim, ao resolver abandonar a cidade não  hesita em  deixá-los,  embora já estejam meio mortos de fome. Por vezes, os cães se igualam aos índios: com eles, se protegem ao lado dos eixos e das rodas das carretas e, com eles, dormitam sob o sol, na praça rodeada de árvores verdes. Deitam, perto dos soldados,  olhando as chamas com o focinho aberto. Outras vezes, os soldados os têm por companheiros. Brincam com eles ou por eles se preocupam ao perceber a angústia no seu latir e, então, os chamam, os procuram no escuro da noite, como se fossem eles e não os cães os que estivessem perdidos e desesperados.

        No entanto, existe, também, um elo muito forte a ligar os cães a alguns soldados ou ao padre Carvajal. Há o cão que acompanha, latindo, um soldado que foge; outro, persegue um soldado coxo que busca se esconder porque os doentes são deixados para trás quando os espanhóis partem para fundar a cidade em outro lugar. E há aquele que se afeiçoa, escolhe como dono um soldado ou por algum soldado é escolhido. Quando, por entre os escombros da cidade, o prisioneiro, com os braços atados por cordas que lhe cruzam o peito e lhe sobem pelos ombros, caminha depressa,  um cão lhe segue os passos como se estivesse a seguir o seu dono. Assim,  na cidade vazia, o cão  guarda seu amo, já morto. Ao ser abandonado o primeiro assentamento, foram deixados alguns espanhóis sem sepultura. Padre Carvajal, indignado, não segue junto com a expedição, mas fica para enterrá-los. Ao entrar numa casa , encontra um espanhol morto, ainda sentado à mesa e o cão. O padre relata que ele grunhia mais do que tudo com tristeza, com desalento, com desamparo, para me indicar que estava muito triste e sozinho[...]. Por isso, se aproximou do padre e se deixou acariciar e ficou a seus pés enquanto dormia. Depois, lhe acompanhou os passos entre as ruínas e, ao ver os enforcados, uivou devagarzinho. O padre os tirou da forca e os enterrou e quando isso foi feito, o cão se aquietou.

        Nesta presença dos cães junto com os homens da Conquista foi impossível eludir fidelidades e afetos. E, igualmente, impossível, eludir que eles tanto foram vítimas, como testemunhos do mal e da violência que vicejavam, sem freios, entre esses homens que, pela primeira vez, palmilhavam as desconhecidas terras do Continente.

 

 

 

 

 

 

domingo, 7 de outubro de 2007

Animais na Conquista; o gado



Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso itinerário, enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances do Continente latino-americano. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, carregando seus pertences, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez a cidade.
 

               As carretas rangem nos seus eixos, as rodas se afundam no barro e mugem os bois, não somente os que arrastavam as carretas como também os que vinham atrás, dispersos na sombra, ocultos nos matos, deslizando-se através dos pântanos, bramando de terror nos precipícios. Acompanham o destino dos homens que os conduzem: gado triste e ferido e aparecem, no relato, principalmente, pelo seu mugir ao puxar as carretas, ao se perder nos desfiladeiros e nas ribanceiras, ao desaparecer na escuridão. Avançando entre as árvores, nelas se roçam; pelos abismos, se despedaçam; e nas noites de chuva e vento, se afogam. Por vezes, fogem espavoridos, levando as rodas das carretas até bem perto das montanhas. Assim, fugaz e diluída, é sua presença para os homens que deles se servem. Estão certos de que os bois, como o silêncio, lhe seguem os passos e que se os homens se perdem nos abismos, com eles se perde, também, o gado. E uma vez que a vida humana, nas andanças da conquista, pouco valor possui, embora imprescindíveis para carregar dos homens suas armas, suas roupas, seus móveis, seus alimentos, pedaços de suas casas, quando as carretas se gastam e as muralhas da cidade são destruídas, o gado é espantado na direção das rochas, na direção das serras.  

               Daí ser possível que soldados açoitem com fúria uma junta de bois; que, ignorando seus flancos esfalfados os puxem pelos chifres e os arrastem até as carretas onde devem ser atrelados; que os olhem fugir cheios de baba, com os olhos desorbitados e tranqüilos, como ignorantes e torpes, sem saber como enfrentar a morte e o desespero[...].

               Assemelham-se, nesse modo cruel com que são tratados, aos soldados doentes ou feridos – maltratados e mortos segundo os desígnios dos capitães – cuja perda, como a do gado, parece pouco importar.

               Ao se aventurar na Conquista, os homens como que repudiam o passado e os valores que, porventura, neles tivessem acreditado ou, apenas, repetem o que haviam sido antes de abandonar o cenário onde viveram, a família que tiveram para enfrentar toda sorte de riscos e traições, no desvario de buscar riquezas, honrarias e poder. Pretendendo um  futuro nesse mundo que lhes é desconhecido, o imaginam promissor e, para consegui-lo, soldados e capitães se igualam ao se abstrair de sentimentos e de razões éticas. Então, também, os animais se tornam vítimas.                         

domingo, 30 de setembro de 2007

Acácia mimosa


            Há cinqüenta anos atrás, em 1957, aparecia, de Pablo Neruda o seu Tercer libro de las Odas. Como Odas elementales (1954) e Nuevas odas elementales (1956), o Poeta procurava a clareza e a simplicidade, pois quisera a sua poesia dirigida a todos os homens. E canta o que está a seu redor: os elementos (o ar, a chuva, a tormenta), os animais (os peixes, as aves), as quatro estações do ano, os sentimentos, a mulher amada, os poetas, os homens simples. E, entre muitos, os mais surpreendentes como tema poético: o arame farpado, as meias, o fígado, o sabão, a batata, o tomate, a cebola. Guiadas pelos seus sentidos e pelas emoções, há, entre suas odes, como em outros poemas, inclusive de diferentes épocas (exemplo perfeito é o poema “Pájaro” de seu livro póstumo Jardin de invierno), aquelas que fazem parte dos que certos críticos chamam de poesia de circunstância. O que não o impede de nela expressar, algo de muito profundo, enraizado no mais recôndito de seu ser e que emerge diante de uma impressão, de sua facilidade em se comover. Assim, “Ode a uma flor azul ”, flor encontrada num passeio que faz pelo campo, perto do mar. Assim, “Ode à acácia mimosa” árvore se lhe apresenta aos olhos quando se dirigia ao porto, provavelmente, de manhã porque inicia o poema dizendo que o vapor ou névoa ou nuvem o rodeavam e que ia quase dormindo quando uma montanha de luz amarela, / uma torre florida / irrompeu no caminho e tudo / se encheu de perfume. Era uma acácia mimosa. Este último verso da primeira das três estrofes introduz a presença da árvore em expressões que a revelam muito além do simples pavilhão florido como é anunciada na segunda estrofe. Ao longo do poema será catedral do pólen, profunda cidade das abelhas, sol terrestre, explosão de perfume, cascata, catarata, cabeleira de todo o amarelo derramado, torre de luz fragrante, prévia fogueira da primavera. Uma presença que impressiona o Poeta, deixando-o sem fala ao comparar um Chile hibernal à árvore que em meio ao sombrio da estação, dava gritos amarelos; ao ter, diante de si, a árvore amarela, / amarela / como nenhuma coisa pode sê-lo,/ nem o canário. Nem o ouro, / nem a pele do limão, nem a gesta. E a louva por se antepor ao inverno como / um militar valente que, sem roupas e sem armas, enfrenta os batalhões de chuva. E a proclama colméia do mundo. Para então, como já o fizera repetidas vezes, confessar a ânsia  panteísta: ser besouro, ser vespa, ser pavão. E, igualmente, como tantas vezes, exprimir o desejo, usando a primeira pessoa do plural, queremos, incorporando-se a outros homens ou fazendo a sua voz, também ser a de todos na vontade de mergulhar no tremor perfumado da árvore, na sua copa amarela, até ser, apenas, perfume. 

            São mais de cem versos, de uma a dez sílabas, em que o Poeta registra o irromper da magia no seu prosaico andar pela cidade: a visão da árvore florida, o perfume que dela se expande. Também, como é tão próprio dele, pensar no seu país de montanhas geladas onde a árvore, no seu esplendor, lhe concede o direito de lhe determinar um destino – ser colméia do mundo – e de expressar não apenas o seu querer mas o querer de todos.

domingo, 23 de setembro de 2007

Primavera no Chile



[...] fui uma das oito pessoas que com Matilde velamos o poeta durante a noite do 24 ao 25 de setembro de 1973 na La Cascona saqueada e ultrajada. Caminhei pela Avenida La Paz com o cortejo fúnebre ladeado pelas metralhadoras hostis do regime e fui testemunha da cerimônia popular, espontânea e maravilhosa, com que sepultamos ao poeta no Cemitério Geral de Santiago.  Hernán Santiago 

      Em alguns versos, por vezes, Pablo Neruda fala do  mês de setembro no seu país. Em “Primavera no Chile”, inicia o poema que pertence ao livro La Barcarola ( 1967), definindo como belo mês de setembro na sua pátria, coberto com uma coroa de vime e violetas. A estrofe de seis versos muito longos é  toda feita de metáforas em que o mês  possui braços dos quais pendem dons terrestres; possui olhos que matam o inverno; em que o sábado é amável e sexta feira abre suas mãos; e que voam ameixas e caldos de lua e  peixe. A segunda estrofe, igualmente de versos muito longos fala, então, do Chile percorrido na geografia  dos sentidos em que a melancia é feita de fulgor, os pêssegos, redondos de luz e delícia, o orvalho, de aroma de menta. A pátria procurada, em vão, nas outras terras e que se mostra para ele, no seu mar clamoroso nas suas águas pesqueiras, no seu  peito de prata abundante, nas suas montanhas escarpadas. E da emoção que o une a ela, minha pátria, ele repete, expressa numa primeira pessoa que a percebe no paladar, no olfato, no olhar;  a imagina vestida pelo vento e pela pedra;  a deseja dona de si mesma. 

      São versos em que as normas do dizer são desafiadas ( Oh amor na terra que tu percorrerias que eu atravessamos), em que os poucos adjetivos criam o desconhecido ( Sul sigiloso, penetrantes diamantes de menta), em que a comparações querem exemplificar os inigualáveis sabores  da melancia e dos pêssegos chilenos.  Em que  sua presença, revelada nos verbos e nos pronomes de primeira pessoa, sobressai, principalmente,  nos dois últimos versos: e inclinado, arrastando os pés, quando caminho nas montanhas mais altas / eu diviso na neve invencível a razão de tua [chilena] soberania.

      Seis anos se passaram da publicação do poema que, juntamente com outros de La Barcarola registram, auto-biográficos, momentos da vida do Poeta ou de suas emoções. Em 1973, na sua casa junto ao mar, Pablo Neruda, já estava muito doente. E o  último  setembro que lhe coube viver foi, primeiro, desalentador nas  notícias que lhe chegavam pelo rádio depois,  deveras trágico. No dia 11,  o Chile foi privado de sua soberania -  alcançada na ação democrática das urnas -  numa ação programada, como as outras tantas que igualmente ultrajam  os países do Continente.  O poeta, ainda conseguiu escrever as últimas páginas de suas memórias mas, certamente, saber da morte de Salvador Allende e se dar conta que o tempo de terror instaurado seria longo,o  fez, mais depressa,  se deixar morrer.

domingo, 16 de setembro de 2007

O inimigo


 


            Em 1990, a Arca de Montevidéu publicou uma antologia poética de Mario Benedetti cujos poemas, parte de treze de seus livros, se inscrevem entre 1948 e 1981. Longo itinerário de uma aventura literária que expressa os percalços de sua vida, oriundos das opções políticas condenadas pelos desgovernos reinantes nos países latino-americanos, os chamados do amor, o olhar testemunho.

            De seu livro Cotidianas (1978-1979), “De árbol en árbol”( “De árvore em árvore”) é um poema de sete estrofes díspares – dois, três, quatro, cinco, seis, oito versos – que se mostra colmado de perguntas ingênuas, fantasiosas, que dir-se-iam irrespondíveis não fosse um chamado à realidade, o penúltimo verso, a serra das grandes madeireiras,  certamente, razão primeira do poema. Nele, versos pressupõem possíveis sentimentos humanos nas árvores: As árvores / serão, talvez, solidárias?”Nesse caso, elas podem se preocupar com outras, ainda que não da mesma espécie, como consta na terceira estrofe em que o carvalho da Westfália, que sabe, avisará o lariço do Tirol para que administre melhor sua terebentina; ou, eventar a hipótese de que a seringueira do Pará e o Baobá das margens do rio Cuanza, provocarão, finalmente, o fim da grande angústia / daquele cipreste  da mission  Dolores em Frisco, na Califórnia; ou outra, se os cedros do Líbano e os mognos de Corinto terão consciência de que seus inimigos não são as palmeira de Camaguey, nem os eucaliptos da Tasmânia mas elementos estranhos que estão a serviço dos homens ou aqueles inevitáveis que vem da própria natureza. Tais espécies distintas – também se refere ao quebracho, à oliveira, ao umbu, à ceiba, ao agárico – e próprias de regiões geográficas longínquas entre si,  não deixam, igualmente, de estarem a mercê de um destino comum: o machado do lenhador e a cobiça sem fim e sem consciência dos que vivem da exploração das riquezas naturais.


            O poema, de versos brancos ignora, exceção daquela que inicia o primeiro verso, todas as maiúsculas  o que, no que se refere aos topônimos, torna o texto marcado com algo de mistério. Porque, se alguns remetem a lugares conhecidos -  Campos Elíseos , Tirol, Pará, Corinto, Líbano – outros somente são conhecidos de uns poucos: Jaén ( cidade da Espanha), Tacuarembó ( cidade uruguaia), Cuanza ( rio de Luanda), Frisco ( cidade da Califórnia),  Camaguey  ( Cuba), Tasmânia ( Austrália).

            Num ritmo e tom de dizer  prosaico, o lirismo se encontra, então, somente na antropomorfização das árvores e só no que o homem possui de elogiável : a solidariedade, a disposição em ajudar e, talvez, essa ingenuidade que o torna incapaz de perceber de onde provém o Mal. Para as árvores, Mario Benedetti não tergiversa: seus vorazes inimigos – quão fácil é localizá-los  nesse  mundo globalizado onde fronteiras se diluem diante da possibilidade de lucro – são aqueles que usam das serras e dos machados. Eventualmente,  também natureza  pode ser cruel no seu raio  a se mostrar como um látigo da noite.  

 

domingo, 9 de setembro de 2007

O começo


       
                 Era o ano de 1550 quando, a mando do padre La Gasca,Vice-rei do Peru, saíram  de Lima, duzentos espanhóis com seus índios submetidos e um punhado de animais para se adentrar no Continente e fundar uma cidade. Carlos Droguett, romancista chileno, relata esse episódio que se encontra documentado nas Crónica de la Conquista num excepcional romance, El hombre que trasladaba las ciudades ( Noguer, Barcelona, 1975). Ambições, ódios, temores, conduzem os homens para o desconhecido. Junto com eles, o começo da destruição do Continente. No segundo capítulo, “Segundo traslado”, são mencionadas as árvores e seu destino O padre Cedrón, ao se afastar dos escombros da cidade destruída, para ser levada para outro sítio, caminha na direção dos cerros onde ainda estava o campo sozinho, as árvores sozinhas e terríveis, crescendo em desordem e poderosas. Por vezes, elas são  parte do cenário: Os cerros estavam envoltos na penumbra, além das árvores se destacavam as sombras de uns cavalos; das árvores pendiam laranjas, limões pálidos que fugiam na penumbra, as flores ascendiam pelos troncos. Ou, transformadas pelo vento e pela chuva: o vento rumorejava distante, entre as árvores, o céu estava alto e descolorido, se peneirava sobre as árvores e as agitava docemente, soprava com persistência entre as copas das árvores, alto e primaveril, incorporando e levando perfumes e ramos das árvores.  A chuva escorrendo da copa das árvores e de seus ramos, ia lhe deixando gotas de água. Também, se constitui presença junto aos homens: o padre Carvajal acorda e escuta o rumor  de água a escorrer vagarosa e do vento entre as árvores, o ar entre as árvores, descendo entre as folhas. O capitão sente a chuva encharcar-lhe o rosto e como corre pelos ramos das árvores.  Os espanhóis, percebem o cheiro das árvores molhadas  e, também,  como agarrados ao futuro, às portas da cidade que estava longe, aguardando com suas casas abertas, com seus quartos vazios, cheios de montanhas e rios e cascata,   a praça estava rodeada de enormes árvores verdes. Sob o olhar  do capitão, avistadas de sua janela, as casas estão envolvidas pela luz do anoitecer como suas ruas e  a praça da igreja que se erguia, outra vez, cheia de árvores novas. Em meio às ovelhas e cabras, correndo entre  os móveis espalhados, as árvores cresciam com renovada força, espantosamente verdes e frondosas.  Uma luta que se mostraria desigual porque o ímpeto de sobreviver que as fazia irromper, novamente da terra, para se tornar frondosas, se revela muito lenta ou ineficaz  diante da força destruidora de que são vítimas.  O padre Cedrón vindo da primeira cidade onde ficara para enterrar os mortos, chega na segunda cidade  já, também, semi-destruída ao ver   o padre Carvajal extenuado e doente lhe pergunta: padre, quem o havia metido na vida sossegada da religião e depois na vida mortificada  e aventureira dos missionários meio bandidos e sem entranhas que tinham saído para o Novo Mundo junto com a piara de   bandidos que talavam os bosques, rompiam montanhas, fendiam  a terra e matavam os índios ?

 

domingo, 2 de setembro de 2007

O choupo


            O choupo brotou sozinho no meio do campo e, no começo, pensou que era somente um reles capim. Porém, um dia, notou que ultrapassava esse capim que o rodeava e sentiu os galhos. Na primavera, irromperam, muito verdes, suas folhas e, ao anoitecer, o sol atravessando seus ramos o acendo como um lâmpada verde. É’ a hora em que chegam os passarinhos barulhentos, procurando, entre suas folhas, o lugar para dormir. Ele se lembra da primeira vez que sentiu no seu galho um deles, agitado montinho de plumas e da primeira vez que um ninho, pacientemente cortado e enlaçado com pequenos gravetos se pousou numa forquilha. Procurou não se agitar e, para protegê-lo, o rodeou de muitas folhas, mais do que as que haviam crescido no ano anterior. Ao chegar o final do verão, os filhotes pularam do ninho e ele sentiu as finas pequenas patas se movendo nos seus galhos a tomar impulso e por fim se lançar e cair no ar como uma folha. E diz o narrador: Uma árvore no verão é quase um pássaro. Ela se cobre de plumas barulhentas que agita com o vento[...], toda passarinho, ave de madeira na sua verde gaiola de folhagem. E, ainda: que o choupo crescia tanto para cima como subterraneamente, feito, então, de longos e úmidos ramos nacarados que penetravam na morna noite da terra. Um dia, de manhã, vislumbrou o bosque e, ao cair da tarde, as árvores iluminadas como um incêndio. Para elas, dirigiu suas raízes, desejando saber muitas coisas, solitário, se enchendo de tantas perguntas como de pássaros ao entardecer. E o narrador acrescenta: As árvores propriamente não dormem, adormecem sobretudo no inverno quando as altas estrelas deslizam pelos seus galhos despidos como finas gotas de orvalho. É quando sentem com mais força todas aquelas vozes e sinais da terra. E o choupo percebe a vida a seu redor: os animais noturnos que saem de suas tocas e roem a escuridão; o pássaro que voa em direção à luz de uma casa; os grilos que vibram no meio do capim como cordas de cristal; o cão latindo à distância. O narrador também sabe o que significa para o choupo o inverno: ele sente um leve puxão, o cair da primeira folha. Ela voa para o chão. Depois, caem as outras e os galhos mais velhos adormecem e o sono avança sem, contudo, chegar ao coração. A chuva lhe escurece os ramos e a geada os deixa brilhantes como se fossem de amêndoas. Então, chega setembro e um agradável formigamento sobe da escuridão da terra. Sua casca se reanima, os galhos se espreguiçam, irrompem os brotos novos. Logo está, outra vez, coberto de folhas verdes e firmes que brilham ao sol e fazem, parte da sombra que ele projeta no chão.

            Figura central de “La balada del álamo carolina”, relato que dá título ao livro de contos, publicado, em 1975, em Buenos Aires, sua biografia de apurada  e terna delicadeza faz parecer impossível que seu autor, Haroldo Conti, tenha sido assassinado pela repressão de seu país que, certamente, considerou seus escritos perigosos demais para serem lidos pelos argentinos.
 

domingo, 26 de agosto de 2007

As imprecisões do tempo


         Em Porto Alegre, desce do bonde e, por a caso, ao entrar num armazém de fim de linha, para a compra de cigarros, aceita o convite de quatro rapazes que lá estavam e segue junto com eles para a praia, no passeio que deveria durar um  dia e que para ele e para Norberto, acabou resultando num tempo bem maior em que acontecimentos foram surgindo e os levaram até o Rio de Janeiro de onde ele volta para o lugar de sua infância, às margens do Cati, no extremo sul do Rio Grande.
 

            É extremamente numeroso o uso dos parênteses no texto de Dyonélio Machado. Em O Louco do Cati eles são usados como um adendo coloquial que acrescenta uma informação seja em relação ao espaço romanesco, seja em relação aos personagens ou ao tempo do relato. Resulta, porém, curioso que nos casos de referência ao tempo, essa informação resulte sempre imprecisa: O maluco já dormia. ( Era noite). Ao caminhar pelo campo, já nas terras do Cati, só mais tarde (já de noite, uma noite chegada mais cedo), conseguiu sair do vale por onde se embrenhara; ainda,  A chuva não passava.(Eram pouco mais de cinco horas da manhã); quando caminhavam pelas areias do litoral gaúcho,  Aquela hora ( seriam as sete da manhã), acrescentaram à rapadura um naco de queijo[...]. No Rio de Janeiro,  Norberto e Lopo estavam no seu lugar habitual, no café da Praça Tiradentes ( era de manhã);  ao saírem  em busca de uma requisição para conseguir a passagem do maluco para o sul era cedo ainda ( era de manhã). Na menção ao horário do ônibus no qual embarcaram Norberto e o Maluco, com destino a Araranguá, a informação é vaga, à noite e, então, ente parênteses, um dado igualmente vago: (nove horas mais ou menos). Geraldo que hospedara o Maluco em Lages, havia ido para a capital com seu caminhão e já fazia dois dias. Pouco tempo mais ( talvez até no dia seguinte) ele estaria de volta.  No Rio de Janeiro, no centro da cidade, aquela hora muito movimentada certas pessoas que procuravam os bondes ( era quase meio dia). 


            Há vezes, em que e menção ao tempo se entrelaça àquelas que se referem às condições  meteorológicas. Salvo  uma vez em que é descrita a paisagem do Rio de Janeiro, divisada da casa do professor de medicina, é elogiosa: “Da terraça principalmente aquela hora (  anoitecer), era uma beleza [...];  nas  demais, as referências são à chuva, ao vento, ao frio.  Em meio ao diálogo do capitalista e da mulher que o acompanhava - protetores do maluco-  sobre a continuação da viagem, entre parênteses a informação  ( era depois do almoço, dum dia frio e ventoso, mas seco). Casos há, também, em que se acrescem à noção de tempo, elementos subjetivos: ventava furiosamente ( Noite muito feia).; quando rompeu o dia ( quase tão escuro como a noite e tão assombrado como ela [...]); ou, o tempo é definido pela própria palavra  tempo ( talvez naquele dia que iria nascer chuvoso e escuro, talvez na outra noite – num tempo misterioso qualquer) estaria entrando no Cati [...].;  e entre as lembranças do Maluco, o período em que estivera preso com Norberto, em Florianópolis, a síntese do que acontecera: ...Naquele tempo, eles estavam num quarto escuro, lá mesmo...Empenhavam-se numa luta...A tarefa era não comer!. Também, a lembrança daquele par de trilhos que cruzara: mas há muitos meses num dia de calor e dum vento morno que soprava do mar . Ainda,o  demonstrativo que  remete a um tempo indefinido: Aqueles dias ( chuvosos, dissimulados, misteriosos).

            Imprecisões no registro do tempo e algo de tristonho que, por vezes, o acompanha, revelam um narrador que se aproxima do claro-escuro nos meandros de uma narrativa cujo fina, no entanto, é feito da luminosidade de um céu azul e de um sol que brilha.