domingo, 23 de setembro de 2007

Primavera no Chile



[...] fui uma das oito pessoas que com Matilde velamos o poeta durante a noite do 24 ao 25 de setembro de 1973 na La Cascona saqueada e ultrajada. Caminhei pela Avenida La Paz com o cortejo fúnebre ladeado pelas metralhadoras hostis do regime e fui testemunha da cerimônia popular, espontânea e maravilhosa, com que sepultamos ao poeta no Cemitério Geral de Santiago.  Hernán Santiago 

      Em alguns versos, por vezes, Pablo Neruda fala do  mês de setembro no seu país. Em “Primavera no Chile”, inicia o poema que pertence ao livro La Barcarola ( 1967), definindo como belo mês de setembro na sua pátria, coberto com uma coroa de vime e violetas. A estrofe de seis versos muito longos é  toda feita de metáforas em que o mês  possui braços dos quais pendem dons terrestres; possui olhos que matam o inverno; em que o sábado é amável e sexta feira abre suas mãos; e que voam ameixas e caldos de lua e  peixe. A segunda estrofe, igualmente de versos muito longos fala, então, do Chile percorrido na geografia  dos sentidos em que a melancia é feita de fulgor, os pêssegos, redondos de luz e delícia, o orvalho, de aroma de menta. A pátria procurada, em vão, nas outras terras e que se mostra para ele, no seu mar clamoroso nas suas águas pesqueiras, no seu  peito de prata abundante, nas suas montanhas escarpadas. E da emoção que o une a ela, minha pátria, ele repete, expressa numa primeira pessoa que a percebe no paladar, no olfato, no olhar;  a imagina vestida pelo vento e pela pedra;  a deseja dona de si mesma. 

      São versos em que as normas do dizer são desafiadas ( Oh amor na terra que tu percorrerias que eu atravessamos), em que os poucos adjetivos criam o desconhecido ( Sul sigiloso, penetrantes diamantes de menta), em que a comparações querem exemplificar os inigualáveis sabores  da melancia e dos pêssegos chilenos.  Em que  sua presença, revelada nos verbos e nos pronomes de primeira pessoa, sobressai, principalmente,  nos dois últimos versos: e inclinado, arrastando os pés, quando caminho nas montanhas mais altas / eu diviso na neve invencível a razão de tua [chilena] soberania.

      Seis anos se passaram da publicação do poema que, juntamente com outros de La Barcarola registram, auto-biográficos, momentos da vida do Poeta ou de suas emoções. Em 1973, na sua casa junto ao mar, Pablo Neruda, já estava muito doente. E o  último  setembro que lhe coube viver foi, primeiro, desalentador nas  notícias que lhe chegavam pelo rádio depois,  deveras trágico. No dia 11,  o Chile foi privado de sua soberania -  alcançada na ação democrática das urnas -  numa ação programada, como as outras tantas que igualmente ultrajam  os países do Continente.  O poeta, ainda conseguiu escrever as últimas páginas de suas memórias mas, certamente, saber da morte de Salvador Allende e se dar conta que o tempo de terror instaurado seria longo,o  fez, mais depressa,  se deixar morrer.

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