Designado
pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos
homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso território,
enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da
História Oficial, relatada nas Crônicas de la Conquista, ciudades refaz esse caminho em El
hombre que trasladaba las
(Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances
latino-americanos. No segundo capitulo, o capitão e seus homens avançam no
Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.
Já
cavalgando com os pedaços da cidade carregados nas carretas e no dorso dos
índios, Juan Núñez de Prado pergunta quanto tempo será preciso para encontrar o
lugar que lhes convenha. Um dos capitães responde: antes de oito dias,
estaremos traçando a rua principal e desenhando a praça e, então, vamos
disparar os arcabuzes para saber se há pássaros nos arredores. Na cidade que
deixavam, os índios e os cães e os
pássaros fizeram seus ninhos e tocas
e conciliábulos e, nas vigas dos tetos das casas terminadas, havia arrulhos
nas noites enluaradas. Presença que aqueles cujo desejo era ver a cidade
pronta, almejavam tanto quanto as montanhas, os rios e as cascatas. Quando
destruíam a primeira cidade no ar cálido
sob o céu azul, pelo céu passavam pássaros negros, olhavam sem vontade e
planeavam lentos; ou grasnando como a ferir, espiando-os com hostilidade; no caminho, soavam frescas asas de pássaros e na
cidade construída, pombas voavam em torno da igreja e ao toque dos sinos, se espalhavam pássaros.
Sozinho
na cidade abandonada, um dos capelães,
movido pela revolta, fica para dar sepultura aos mortos, deixados pelos
espanhóis. Passa a noite sentado com os olhos abertos, respirando o ar frio da
noite agradável, polvilhado de perfumes e de tênues ruídos distantes, em algum
galho alto um passarinho cantava. Ao contar o que vivera nesses dias, diz que imaginava o pequeno pássaro fora de seu
ninho para espiar as trevas. Então, adormece. No relato que segue, diz como
enterrou os mortos, sentindo os abutres caminharem na terra e, depois,
levantando vôo, continuarem a dar voltas a seu redor. E como tornou a vê-los,
mais tarde: eram quatro e, diante das forcas vazias e da casa fechada, se
dispuseram, no seu entender, a esperar sobre as vigas do teto, aberto pelos
soldados para disparar contra os donos da casa que não queriam partir, ignorando
as ordens do capitão. Eram dois: um, doente, caído de costas. O outro, dono da
casa, tinha a cabeça caída de lado sobre a mesa e numa das mãos, ainda havia um
pedaço de pão. O padre fechou a janela para protegê-lo dos abutres, mas quando
os tirou da casa e enterrá-los, as aves já estavam a postos, como haviam estado
perto da forca, esperando que ele fosse embora. O padre se acostumou com eles –
eram belos e repelentes – os
descreveu com vagar, dando-lhes nomes, imaginando-lhes sentimentos e, sobretudo
convicto que eles sabiam proceder e tinham paciência. De repente, um deles já
entrara na casa, subira na mesa e picotava o pão que estava entre os dedos do
morto. O outro, pulou no peito do soldado e deu-lhe uma bicada. Nas seqüências
que seguem, intercaladas, entre muitas outras que descrevem e revelam os
sentimentos do capelão, abundam as zonas de sombra, e, muito, deve ser
subentendido nas impressões oriundas da sua impossibilidade de separar o real
do que lhe sugeria o seu estado de exaustão.
Se,
por um lado, na presença dos pássaros no relato, se instala como que um
claro-escuro – pássaros que fazem parte do espaço no qual se adentram os
espanhóis e abutres que vivem dos despojos que esses mesmos espanhóis com seus crimes
propiciam – por outro, se insere um posicionamento crítico sobre os atos dos
espanhóis.
Quando
ele se aproxima da casa onde estavam os espanhóis mortos e olha, temeroso para
dentro, pensa entender o que, talvez, fosse a voz de sua consciência: os
abutres a murmurar num grasnido depreciador e impaciente como
dizendo-se, olha esse frade idiota que esses e esses outros e certamente outros
mais além, sob as portas, entre as roupas, debaixo dos montes de cordas, estão
bem mortos, completamente mortos, é espanhol esse frade pícaro e não sabe como
trabalham seus amigos, seus grasnidos [ele diz] me obrigaram a entrar cheio de
vergonha na casa e eles tinham razão,meus amigos trabalharam bem, sabiam o que
faziam e o fizeram com perfeição.

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