domingo, 21 de outubro de 2007

Animais na Conquista:os pássaros


              Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso território, enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas de la Conquista, ciudades refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las  (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capitulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade. 

            Já cavalgando com os pedaços da cidade carregados nas carretas e no dorso dos índios, Juan Núñez de Prado pergunta quanto tempo será preciso para encontrar o lugar que lhes convenha. Um dos capitães responde: antes de oito dias, estaremos traçando a rua principal e desenhando a praça e, então, vamos disparar os arcabuzes para saber se há pássaros nos arredores. Na cidade que deixavam, os índios e os cães e os pássaros fizeram seus ninhos e tocas e conciliábulos e, nas vigas dos tetos das casas terminadas, havia arrulhos nas noites enluaradas. Presença que aqueles cujo desejo era ver a cidade pronta, almejavam tanto quanto as montanhas, os rios e as cascatas. Quando destruíam a primeira cidade no ar cálido sob o céu azul, pelo céu passavam pássaros negros, olhavam sem vontade e planeavam lentos; ou grasnando como a ferir, espiando-os  com hostilidade; no caminho, soavam frescas asas de pássaros e na cidade construída, pombas voavam em torno da igreja  e ao toque dos sinos, se espalhavam pássaros.

            Sozinho na cidade  abandonada, um dos capelães, movido pela revolta, fica para dar sepultura aos mortos, deixados pelos espanhóis. Passa a noite sentado com os olhos abertos, respirando o ar frio da noite agradável, polvilhado de perfumes e de tênues ruídos distantes, em algum galho alto um passarinho cantava. Ao contar o que vivera nesses dias, diz que imaginava o pequeno pássaro fora de seu ninho para espiar as trevas. Então, adormece. No relato que segue, diz como enterrou os mortos, sentindo os abutres caminharem na terra e, depois, levantando vôo, continuarem a dar voltas a seu redor. E como tornou a vê-los, mais tarde: eram quatro e, diante das forcas vazias e da casa fechada, se dispuseram, no seu entender, a esperar sobre as vigas do teto, aberto pelos soldados para disparar contra os donos da casa que não queriam partir, ignorando as ordens do capitão. Eram dois: um, doente, caído de costas. O outro, dono da casa, tinha a cabeça caída de lado sobre a mesa e numa das mãos, ainda havia um pedaço de pão. O padre fechou a janela para protegê-lo dos abutres, mas quando os tirou da casa e enterrá-los, as aves já estavam a postos, como haviam estado perto da forca, esperando que ele fosse embora. O padre se acostumou com eles – eram belos e repelentes – os descreveu com vagar, dando-lhes nomes, imaginando-lhes sentimentos e, sobretudo convicto que eles sabiam proceder e tinham paciência. De repente, um deles já entrara na casa, subira na mesa e picotava o pão que estava entre os dedos do morto. O outro, pulou no peito do soldado e deu-lhe uma bicada. Nas seqüências que seguem, intercaladas, entre muitas outras que descrevem e revelam os sentimentos do capelão, abundam as zonas de sombra, e, muito, deve ser subentendido nas impressões oriundas da sua impossibilidade de separar o real do que lhe sugeria o seu estado de exaustão.

            Se, por um lado, na presença dos pássaros no relato, se instala como que um claro-escuro – pássaros que fazem parte do espaço no qual se adentram os espanhóis e abutres que vivem dos despojos que  esses mesmos espanhóis com seus crimes propiciam – por outro, se insere um posicionamento crítico sobre os atos dos espanhóis.

            Quando ele se aproxima da casa onde estavam os espanhóis mortos e olha, temeroso para dentro, pensa entender o que, talvez, fosse a voz de sua consciência: os abutres a murmurar num  grasnido depreciador e impaciente como dizendo-se, olha esse frade idiota que esses e esses outros e certamente outros mais além, sob as portas, entre as roupas, debaixo dos montes de cordas, estão bem mortos, completamente mortos, é espanhol esse frade pícaro e não sabe como trabalham seus amigos, seus grasnidos [ele diz] me obrigaram a entrar cheio de vergonha na casa e eles tinham razão,meus amigos trabalharam bem, sabiam o que faziam e o fizeram com perfeição.

 

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