domingo, 7 de outubro de 2007

Animais na Conquista; o gado



Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso itinerário, enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances do Continente latino-americano. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, carregando seus pertences, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez a cidade.
 

               As carretas rangem nos seus eixos, as rodas se afundam no barro e mugem os bois, não somente os que arrastavam as carretas como também os que vinham atrás, dispersos na sombra, ocultos nos matos, deslizando-se através dos pântanos, bramando de terror nos precipícios. Acompanham o destino dos homens que os conduzem: gado triste e ferido e aparecem, no relato, principalmente, pelo seu mugir ao puxar as carretas, ao se perder nos desfiladeiros e nas ribanceiras, ao desaparecer na escuridão. Avançando entre as árvores, nelas se roçam; pelos abismos, se despedaçam; e nas noites de chuva e vento, se afogam. Por vezes, fogem espavoridos, levando as rodas das carretas até bem perto das montanhas. Assim, fugaz e diluída, é sua presença para os homens que deles se servem. Estão certos de que os bois, como o silêncio, lhe seguem os passos e que se os homens se perdem nos abismos, com eles se perde, também, o gado. E uma vez que a vida humana, nas andanças da conquista, pouco valor possui, embora imprescindíveis para carregar dos homens suas armas, suas roupas, seus móveis, seus alimentos, pedaços de suas casas, quando as carretas se gastam e as muralhas da cidade são destruídas, o gado é espantado na direção das rochas, na direção das serras.  

               Daí ser possível que soldados açoitem com fúria uma junta de bois; que, ignorando seus flancos esfalfados os puxem pelos chifres e os arrastem até as carretas onde devem ser atrelados; que os olhem fugir cheios de baba, com os olhos desorbitados e tranqüilos, como ignorantes e torpes, sem saber como enfrentar a morte e o desespero[...].

               Assemelham-se, nesse modo cruel com que são tratados, aos soldados doentes ou feridos – maltratados e mortos segundo os desígnios dos capitães – cuja perda, como a do gado, parece pouco importar.

               Ao se aventurar na Conquista, os homens como que repudiam o passado e os valores que, porventura, neles tivessem acreditado ou, apenas, repetem o que haviam sido antes de abandonar o cenário onde viveram, a família que tiveram para enfrentar toda sorte de riscos e traições, no desvario de buscar riquezas, honrarias e poder. Pretendendo um  futuro nesse mundo que lhes é desconhecido, o imaginam promissor e, para consegui-lo, soldados e capitães se igualam ao se abstrair de sentimentos e de razões éticas. Então, também, os animais se tornam vítimas.                         

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