domingo, 14 de outubro de 2007

Animais na Conquista: os cães


Juan Nunes de Prado, com duzentos homens,  índios submetidos e animais, percorreu um extenso itinerário enfrentando discórdias e desventuras para fundar uma cidade. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crónicas de la Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades, romance publicado em Barcelona, Noguer, 1973. No segundo capítulo, o capitão e seus homens, avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 
        São muitos e, muitas vezes, mencionados no relato e se revelam pelos seus latidos e seus uivos. Os soldados ou os capitães os escutam nos sons vindos de longe, perdidos na névoa, em meio à mata ou, desesperados, sob o vento da tormenta; principalmente,  pelas relações que se estabelecem entre esses homens que, pela primeira, palmilham as paragens do Continente e os cães que trouxeram consigo  no caminho da Conquista. Ao escutá-los, o capitão conta mentalmente, e conclui que são três os que latem; quando a carreta para, os cães saltam e, latindo, o reconhecem. Ainda assim, ao resolver abandonar a cidade não  hesita em  deixá-los,  embora já estejam meio mortos de fome. Por vezes, os cães se igualam aos índios: com eles, se protegem ao lado dos eixos e das rodas das carretas e, com eles, dormitam sob o sol, na praça rodeada de árvores verdes. Deitam, perto dos soldados,  olhando as chamas com o focinho aberto. Outras vezes, os soldados os têm por companheiros. Brincam com eles ou por eles se preocupam ao perceber a angústia no seu latir e, então, os chamam, os procuram no escuro da noite, como se fossem eles e não os cães os que estivessem perdidos e desesperados.

        No entanto, existe, também, um elo muito forte a ligar os cães a alguns soldados ou ao padre Carvajal. Há o cão que acompanha, latindo, um soldado que foge; outro, persegue um soldado coxo que busca se esconder porque os doentes são deixados para trás quando os espanhóis partem para fundar a cidade em outro lugar. E há aquele que se afeiçoa, escolhe como dono um soldado ou por algum soldado é escolhido. Quando, por entre os escombros da cidade, o prisioneiro, com os braços atados por cordas que lhe cruzam o peito e lhe sobem pelos ombros, caminha depressa,  um cão lhe segue os passos como se estivesse a seguir o seu dono. Assim,  na cidade vazia, o cão  guarda seu amo, já morto. Ao ser abandonado o primeiro assentamento, foram deixados alguns espanhóis sem sepultura. Padre Carvajal, indignado, não segue junto com a expedição, mas fica para enterrá-los. Ao entrar numa casa , encontra um espanhol morto, ainda sentado à mesa e o cão. O padre relata que ele grunhia mais do que tudo com tristeza, com desalento, com desamparo, para me indicar que estava muito triste e sozinho[...]. Por isso, se aproximou do padre e se deixou acariciar e ficou a seus pés enquanto dormia. Depois, lhe acompanhou os passos entre as ruínas e, ao ver os enforcados, uivou devagarzinho. O padre os tirou da forca e os enterrou e quando isso foi feito, o cão se aquietou.

        Nesta presença dos cães junto com os homens da Conquista foi impossível eludir fidelidades e afetos. E, igualmente, impossível, eludir que eles tanto foram vítimas, como testemunhos do mal e da violência que vicejavam, sem freios, entre esses homens que, pela primeira vez, palmilhavam as desconhecidas terras do Continente.

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário