domingo, 23 de dezembro de 2007

As águas do Amazonas


              [...] pai Amazonas oceano doce e fugitivo deus supremo dos bosques o mais eterno entre todos os rios. Assim o define Lope de Aguirre ao relatar sua vida desde que saiu de seu povoado espanhol, Oñate e que, de Sanlúcar de Barrameda, embarcado no veleiro Santo Antonio rumo a Cartagena de Índias se aventurou no Novo Mundo disposto a consumir a vida se fosse preciso para dar maior glória à Espanha.

            Se, na História da América ele é um figura controversa, na obra ficcional, Lope de Aguirre, Príncipe de la Libertad  (Seix Barral, 1979) que lhe refaz as andanças, se revela digno personagem desse Continente em que se entrelaçam a grandeza e as atrocidades e as misérias trazidos pelos conquistadores ibéricos. Seu destino foi longo e, principalmente, cruel: enriquecer e perder os bens; possuir poder, e ser humilhado. Revolta-se contra Felipe II, rei da Espanha, escrevendo-lhe uma carta e, depois, lutando contra a sua autoridade no Continente. No seu viver atribulado, percorrendo espaços desconhecidos, enfrenta perigos, perversidades e traições; seu olhar para o universo que descobre é parco e mal registra o que vê: terra lavrada pelos índios, florestas, montanhas, planícies, enormes lagos. E, cursos d’água que servem como caminhos para que os ibéricos se internem, ainda mais, no Continente em embarcações leves e em balsas feitas de troncos. Navegando em rios que desconhecem, se detém horas inteiras em inesperados remansos, avançam entre perigos pelos turbilhões desmedidos, perdem o rumo, levados pela correnteza que os lança contra as margens até chegar à foz do Ucali. No grande encontro das águas, diz Lope de Aguirre é um cataclismo de cega alegria um furacão de vidros e palmeiras um turbilhão de grandes árvores truncadas, uma turva anarquia de peixes e tartarugas um sonâmbulo céu tempestuoso, um cruel reflexo de emplumados infernos [...]. Exatamente aí é onde nasce o rio Amazonas, diz Lope de Aguirre. Segue por ele e, de repente, pela margem esquerda irrompe o rio Canela. Nesse ponto, diz, é que o Amazonas se torna irreparavelmente universal e o navegante, começa a se sentir mínimo ou infinito conforme a opinião que tenha de si mesmo. Ele, embora ciente de já estar velho rengo e desdentado, tem a certeza de valer mais do que todos, na disposição de coroar com  seu braço as façanhas mais incríveis. Não as realizou. Tampouco conseguiu se livrar de um julgamento que o fez vítima de tiros e de ser decapitado. Não sem antes proclamar que Felipe II receberia, na História, o epíteto de tirano e que, ele, Lope de Aguirre, seria proclamado o Príncipe da Liberdade.

            Hoje, ao escrever sua história, o venezuelano Miguel Otero Silva o mostra como uma figura profética a anunciar, para os que vieram depois e almejaram, a liberdade para o Continente.

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