domingo, 28 de dezembro de 1997

Memórias

           Convidado para falar aos estudantes da Universidade de Siena, na Itália, pensou que era um escritor ignorado e decidiu se apresentar. Mas, na medida em que falava foi se dando conta que não sabia bem quem era. Passou rápido à leitura de seus textos e dois anos mais tarde, na solidão de seu gabinete de trabalho, iniciou o seu livro de memórias para dizer o que não fora dito naquela tarde na Itália. Los buscadores de oro (México, Alfaguara, 1993) é o resultado.
            O título do livro vem da primeira lembrança que ele guarda: brincar com seus amigos na beira do rio, cavando com as mãos entre as pedras esverdeadas, cobertas de musgo ou removendo, suavemente, a areia entre os restos de ferro velho e pequenos pedaços de árvore carcomido em busca de ouro que o rio trazia.
            E de um buscar o ouro serão feitas as páginas que seguem, perseguindo as lembranças que irão ser traços da vida de quem é um dos grandes nomes da Literatura de seu país, a Guatemala.
            Alguma cor (o malva da fachada da casa, o pálido lilás de seu interior), algum cheiro (o da impressora que seu pai havia instalado em casa), alguma paisagem (arroios, pesadas carretas carregadas de cana de açúcar), alguma cena (os camponeses se movendo lentamente com seu boi e seu arado) e essas experiências marcantes que para ele foram a escola e a escolha da Literatura como seu caminho.

            A escola com as dificuldades de que estão cheias a aritmética, a botânica, a geografia e que ele tinha de vencer ou por orgulho ou por vergonha. Os recreios com seus jogos pelos quais nunca pode se interessar e o único oásis: as aulas de música em que aprendia a cantar e a solfejar.

            No capítulo X, referida a lembrança que retorna a cada insônia: a do menino de nove ou dez anos, sentado, tendo um grosso livro sobre os joelhos e olhando ao longe, além do rio, homens que trabalham a terra. Entre a cena real que pode ver e a imaginária inscrita na estampa do livro que sustenta, está se decidindo o caminho na realidade longo e tortuoso mas não necessariamente dramático pelo qual o menino chegará, chegou já sem que ele mesmo o suspeite a duas coisas que serão fundamentais na sua vida: a Literatura e a tomada de partido pelo fraco diante do poderoso.

            Seus livros La oveja negra y demás fábulas (1969), Movimiento perpétuo (1972), Lo demás es silencio (1978), Viaje al centro de la fábula (1981), La palabra mágica (1983) que lhe deram esse merecido lugar de destaque nas letras hispano-americanas que ocupa. O ter se posicionado sempre a favor dos oprimidos, sendo guatemalteco e consciente da uzeira e vezeira intervenção aberta dos Estados Unidos nas repúblicas bananeiras o fez sempre viver no exílio.

            Nascido em 1921, Augusto Monterroso vive desde 1944 no México.

domingo, 21 de dezembro de 1997

Verdade da ficção, mentira da realidade

           O texto de Cien años de soledad diz que José Arcadio Segundo Buendía e outros dirigentes sindicais apareceram num fim de semana e promoveram manifestações nos povoados da zona bananeira. As queixas eram a insalubridade das moradias, o engano dos serviços médicos, a iniqüidade das condições de trabalho, o pagamento com vale das companhias.
           Primeiro, a polícia cuidou da ordem e, depois, na segunda-feira, prendeu os dirigentes e as petições dos trabalhadores ficaram sem ter a quem ser entregues pois os responsáveis se serviram de todos os estratagemas para não serem encontrados. E assim, fracassadas as tentativas de diálogo, se instalou a grande greve e os trabalhadores invadiram os povoados, abandonando a colheita da banana e o carregamento dos trens. Até o dia em que o exército fez saber que fora incumbido de restabelecer a ordem. Logo chegaram os regimentos, desfilando pelas ruas e, embora a lei marcial lhes facultasse funções de arbítrio, não foi realizada nenhuma tentativa de reconciliação.

           O exército realizou as tarefas dos grevistas (e estes lhe sabotavam o trabalho) e posicionou suas armas ao redor da praça onde três mil pessoas esperavam as autoridades anunciadas para interceder no conflito.Mas elas não chegaram e um tenente encarapitado no teto da estação leu o decreto número 4 do Chefe Civil e Militar que, em três artigos, declarava os grevistas um bando de malfeitores e facultava ao exército o direito de matá-los.Leitura feita, foi dado, então, um tempo de cinco minutos para evacuar a praça. Logo, a ordem de fogo.

            Devem ter sido uns três mil, disse José Arcadio Segundo Buendía ao se salvar do trem que levava os cadáveres para serem atirados no mar e encontrar abrigo numa casa. O quê? pergunta a mulher que o recebia. Ele esclarece: Os mortos. Devem ser todos os que estavam na estação. A mulher responde: Aqui não houve mortos. E assim foi dito em outras casas em que esteve. E assim acreditou seu irmão porque lera num informe oficial que os operários haviam obedecido à ordem de evacuar a estação e ido, tranquilamente, para casa.

            Foi a versão que prevaleceu na voz oficial: Em Macondo não aconteceu nada, não está acontecendo nada e não acontecerá nunca nada. Este é um povoado feliz.

            Agora, em 1997, acaba de ser publicado García Márquez, El viaje a la semilla (Alfaguara, Madrid), longa biografia escrita por Dasso Saldívar, um colombiano de 46 anos. Não apenas relata, detalhadamente, a vida de seu biografado como a história de sua gente e da Colômbia. Daí o ter relacionado a vivência de Gabriel García Márquez com a greve da qual, na sua opinião, um dos aspectos que mais chamou a atenção foi o escamoteio oficial de sua estatística do horror: o governo reconheceu nove mortos; as testemunhas e os jornais falaram sempre de centenas e no informe do Cônsul dos Estados Unidos, conhecido muitos anos depois, consta que foram mais de mil.

            Sessenta e quatro anos depois do sucedido, Gabriel García Márquez confessaria ao jornalista Gustavo Tatis Guerra: cresci com a idéia de que os mortos tinham sido muitos, mais de mil. E quando descobri que os expedientes tinham como estatística o número sete, me perguntei de que massacre podia falar com sete mortos. Então, transformei os cachos de banana em mortos e fui enchendo os vagões do trem porque com sete mortos não podia enchê-los. Disse no romance que os mortos do massacre tinham sido três mil e os lancei no mar. Isso jamais existiu. Inventei.

            Diz o seu biógrafo: mas foi uma invenção do povo e, como sempre,t o romancista acertou ao transmutar em verdade de ficção a mentira ou exagero da realidade pois a publicação de Cien años de soledad fez emergir a página mais vergonhosa da história colombiana com sua falsa estatística e desde o ano de 1967 [ano da 1ª edição do romance] a maioria dos colombianos começou a falar dos três mil mortos das bananeiras do Magdalena que é a mesma cifra que apregoa sozinho e até a sua morte em Macondo, José Arcadio Segundo Buendía.

domingo, 14 de dezembro de 1997

Delírios

           Em 1960, foi publicado Hijo de hombre de Augusto Roa Bastos. É um romance de nove capítulos que, embora ligados por um fio condutor, possuem significado próprio o quê faz com que possam ser lidos independentes dos demais.O oitavo capítulo “Misión” narra a heróica viagem do cabo Cristóbal Jara, levando água e socorro médico para um batalhão cercado pelo inimigo.

          O comboio parte lentamente para uma viagem de mais de quinze léguas através do mato e do deserto. Deve suportar bombardeios do inimigo, os terríveis obstáculos dos caminhos, a fragilidade dos velhos caminhões, o assalto de soldados enlouquecidos pela sede. Sobrevêm as perdas humanas pela morte e pela deserção e os veículos também vão se perdendo. Só o de Cristóbal Jara avança, mas já à deriva, com as rodas em chamas, bamboleando, movendo-se em zig-zag até bater numa árvore. Cristóbal Jara com as mãos feridas, que fizera amarrar no volante é vencido pelas ráfagas de metralhadoras quase ao chegar ao seu destino.

         Em 1995, Augusto Roa Bastos publica, na Colômbia, pela editora Presencia, Contravida, narrativa, em primeira pessoa, de um fugitivo das prisões oficiais, buscando uma saída na viagem de trem que o levará para seu povoado natal.Antes de partir, de conseguir se esgueirar no trem, jazera atirado numas sangas, ferido e sem forças, cuidado por mulheres que ali o esconderam e trataram. Nas horas lentas que mal passavam foi recobrando o movimento do corpo e a memória: imagens, fatos difusos, figuras disformes que transcorriam num só dia feito de inumeráveis dias. Acudiram a sua mente outras vidas, outras histórias, outras lembranças: Maria Regalada, filha e neta de coveiros, cuidando dos túmulos no cemitério; o médico russo; Cristóbal Jara, o chefe guerrilheiro; Salu’i, a prostituta transformada em enfermeira de guerra. São todos personagens de Hijo de hombre e a eles se iguala o narrador de Contravida, também criação de Augusto Roa Bastos. Um personagem que, no entanto, se mostra de posse de informações sobre Maria Regalada, sobre o médico russo ou sobre o seu cachorro que não aparecem em Hijo de hombre. Igualmente, possui outras que contradizem o texto de Augusto Roa Bastos.Uma delas, que o rumor popular fez de Cristóbal Jara um herói da Guerra do Chaco, transportando água para a frente de batalha, mas que na verdade, antes disso, ao se esconder no túmulo recém aberto para o Juiz de Paz, morto na noite anterior, pelos guerrilheiros na ação Ñumi, acabou sendo enterrado vivo sob o peso do caixão na hora do enterro; outra, é a afirmação de que os guerrilheiros, protegidos pelos leprosos na festa do santo patrono do povoado, foram presos pelas tropas do exército e os doentes fugiram para o leprosário.
 
          Em Hijo de hombre, no capítulo “Fiesta”, Cristóbal Jara dança na festa em honra do comandante, cercado pelos leprosos e quando a presença deles é notada, o tumulto que se instala permite que o guerrilheiro se afaste sem ser molestado. Quanto ao Juiz de Paz, em Hijo de hombre está muito doente e Maria Regalada é de opinião que Cristóbal Jara, escondido num túmulo do cemitério, deve sair dali sob pena de ser surpreendido caso o juiz venha a falecer. A contradição maior, porém, é quando diz ser Sergio Miskovski o nome do médico russo que em Hijo de hombre se chama Alexis Dubrovski.

            Enganos ou lapsos que talvez se expliquem por serem essas imagens que lhe povoam a mente de ferido, frutos de lembranças febris também responsáveis por fictícias vivências. Afirma, então, ter escrito “Misión”, num possível delírio que o faz confundir o que, talvez, um dia tivesse desejado ter feito com a realidade desse texto que o impressionou, quem sabe, a tal ponto de querer dele se apossar.

            Augusto Roa Bastos não lhe elude o dizer e, nas últimas seqüências do livro, como narrador onisciente, o leva para seu destino: desaparecer nas chamas de uma árvore que se incendeia.

domingo, 7 de dezembro de 1997

Lenço branco

          Tómas Buch, professor da área tecnológica, no ano passado, publicou El tecnoscópio um livro que alcançou um inesperado e grande sucesso. Agora, terminou outro cujo título, ainda não definido, poderia ser “filosofia da tecnologia”. É autor de centenas de artigos de temas muito variados (desde a divulgação científica até o direito ambiental) e, também de uns duzentos contos inéditos.“Esperando al tren” é um deles. Essas duas horas de atraso, expressão com que se inicia o relato serão a gênese da trama: o encontro entre o passageiro que deve esperar o trem e para isso escolhe a confeitaria perto da estação e a moça que ali está para servir.

          A narração se faz a partir do que ele observa, do que pensa, do que faz. Primeiro, o vislumbrar através da janela o que imagina. Interrompe seus pensamentos para pedir um café e pensar que nada do que pedisse ali, duraria duas horas, salvo a própria moça. Constata que é atrativa, que poderia ser sua filha e que seria um aborrecimento pretender uma conquista que durasse duas horas. Preferível ler o livro que trazia. Mas, enquanto ela arruma na bandeja o que ele pediu, se distrai imaginando-lhe o corpo e a vida para concluir que não se trata de uma simples empregada de confeitaria mas que ali deve existir um drama. Inventa-lhe um e logo trata de adivinhar o que ela lê em cima do balcão.Sente-se tentado a perguntar porém se dá conta que os tempos não estão para andar perguntando para os outros o que lêem. Para disfarçar vai ao banheiro e ao voltar surpreende a moça olhando para o livro que havia deixado sobre a mesa. Curiosidade mútua, pois, que lhe permite, com fingida alegria, iniciar uma conversa: “você é daqui?”. Para, então, constatar o nervosismo, a desconfiança e o medo de que ela está tomada.

          No clima que era neutro – um homem diante do café e do livro na confeitaria deserta e a empregada com os olhos na leitura – se instala, agora, a tensão. Pelo que pode significar a presença do homem para ela. Passa, mesmo assim, a dizer dessa vida que ele queria saber e sequer havia pensado: da delação feita por um companheiro de luta, da prisão, da tortura do marido, do desaparecimento de muitos, dessa angústia que a faz falar ainda que temendo ser o seu interlocutor um deles.

          Interlocutor que passa a ser o que consola, o que ampara o choro, o que diz para tranquilizá-la: Minha mulher usa um lenço branco na cabeça. Frase que os irá igualar. Porque se ela tem o marido preso e com o corpo marcado pela tortura, na frase dele está implícita uma terrível ausência.

          A maestria do conto está nessa construção em dois tempos: o ritmo lento e anodino que se apressa e se faz tensão, a tênue relação entre os personagens que se adenssa, os perfis transformados: o homem interessado na conquista (todos os homens somos caçadores), levado ao companheirismo protetor; a simples empregada que serve a mesa confessando-se perseguida política.

          O relato despretensioso de um homem à espera de um trem atrasado, passa a falar de um universo maior onde pessoas são oprimidas e mães em busca de justiça vivem em meio a um cancro social. Que no conto o usar o lenço branco denuncia pois, no Continente, não é ignorada a presença das mães na Plaza de Mayo de Buenos Aires em busca dos filhos desaparecidos, vítimas da repressão.

domingo, 30 de novembro de 1997

Singular República

           Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu numa segunda feira, 13 de maio de 1881. Por ironia do destino, no mesmo dia em que anos depois ocorreria a Abolição da Escravatura o que, como é sabido, não tornou os escravos livres mas os agrilhoou, na sua maior parte, ao longo do tempo, numa como que intransponível miséria. Quanto a ele, jamais se libertaria dos sentimentos que a cor de sua pele fez emergir e que iriam marcar-lhe a vida e, indelevelmente, a obra.
                                 
            Nos fragmentos de seu Diário íntimo, que a Mercado Aberto de Porto Alegre acaba de publicar na “Série pequenas grandes obras”, a brevíssima amostragem dos textos selecionados é rica em exemplos de quanto o não ser branco lhe amargurou os dias.
                                  
           Deveras melancólico é ver esse debater-se entre a pobreza mesquinha, o sofrimento por ser mestiço e as aspirações de glória que uma obra de valor poderia lhe dar.
           Lima Barreto não suporta sua casa (nela nunca me acomodei), a sua família (Há em minha gente toda uma tendência baixa, vulgar, sórdida), a doença de seu pai (O meu pai delira constantemente e seu delírio tem a ironia dos loucos de Shakespeare), o comportamento da irmã (minha irmã [...] deve ter um certo recato, uma certa timidez). Então, cola retratos e figuras nas paredes de seu quarto para torná-lo mais garrido, pretende dar ao pai melhores condições de vida, evita dissabores com a irmã por aceitar toda espécie de namoros mais ou menos mal intencionados e foge sempre para a rua, procurando um ambiente menos hostil.
           Mas, embora se fixe na natureza exuberante do Rio de Janeiro – nesses fragmentos várias vezes nela se detém em descrições onde abundam as cores -, as pessoas que observa ou com as quais se encontra, igualmente, o importunam. Como, também, o ambiente militar (onde se sente deslocado) em que trabalha ou os literatos (incrível a ignorância dos nossos literatos) e os críticos da época (até que ponto um crítico tem o direito de, a pretexto de crítica, injuriar o autor?).
          Mais do que tudo, porém, grandemente, o importunam a sua condição de mulato – ainda que descubra que seus olhares possam interessar as damas; ainda que pretenda escrever um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda; ainda que possa confessar ter amor pela gente negra – e, a tal ponto, que se permite dizer: É triste não ser branco.
                                 
            Sobretudo, se vive numa sociedade que se ufana de não ser racista mas onde aparecem, constantes, as manhas da segregação.
                                  
           Quando Lima Barreto recebeu um convite para assistir à partida da esquadra americana em visita ao Brasil, a bordo de um navio do Lloyd, se deu conta que, na prancha, para embarcar, a não ser a ele, não pediam o convite para mais ninguém; ao ir à Secretaria de Estado das Relações Exteriores tratar de assunto relacionado com seu trabalho, mesmo acreditando ser um cidadão brasileiro, foi maltratado pelos contínuos enfardelados em amplas sobrecasacas pretas com botões dourados.

             E, sabendo que a nomeação de um negro para professor do Colégio Militar fora sustada, ele faz reflexões sobre essa República tão pouco liberal que se proíbe dar um lugar de professor para um negro. Conclui: É singular essa República.

            Que é, ainda, a República dos brasileiros.

domingo, 23 de novembro de 1997

Reflexões de Maximilien

           Professor de Literatura da Universidade de Laval, Quebec, no Canadá, Maximilien Laroche é autor de Sémiologie des apparences, La double scène de la représentation, La découverte de l’Amérique pour les Américains, L’avenemement de la Littérature haitienne. Recentemente, acaba de publicar Bizango, essai de mythologie haitienne, número 14 da coleção Essais, da Grelca, uma edição da Universidade de Laval.

           Um artigo de Jean Pouillon, publicado na Nouvelle Revue de psychanalyse (6, 1972), lhe inspira a estrutura do livro cujos três capítulos tem por título “Manières de table”, “Manières de lit”, “Manières de dire”.  “Manières de table” (Maneiras à mesa), se inicia falando do livro L’année de toutes les duperies de Robert Malval, o atual best-seller da edição haitiana. Como se trata das memórias de um diplomata, a política é o seu tema dominante. Mas, o que atraiu a atenção de Maximilien Laroche foi o que ele chama de um detalhe à primeira vista talvez insignificante ou sem demasiada importância que ele mesmo se questiona não se tratar de uma frivolidade nele se ater: o lugar da refeição, os convites para jantar na estratégia política do diplomata.

             Fixar-se em tal detalhe, porém, se explica muito bem: o Haiti é uma sociedade da fome. A frase é de Claude Souffrant, no seu livro Sociologie prospective d’Haiti. Maximilien Laroche não pode deixar de lembrá-la como tampouco as primeiras páginas do romance Compère genéral soleil, de Jacques Alexis, a evocação alucinante da corrida desesperada de um homem faminto, perseguido por uma matilha de policiais.

            E a relação vem de per si: um país de famintos e que pede o que comer recebendo como resposta apenas palavras vãs; servem-lhe palavras para os ouvidos quando estão privados dos alimentos para o estômago.

           Daí esse refletir de Maximilien Laroche sobre a disparidade das mesas no Haiti: Nós não comemos igual no Haiti, se é que comemos! Porque o critério de classe divide, compartimenta, separa e diferencia os haitianos desde a primeira refeição do dia. Quando, alguns só podem tomar um caldo de milho, grosseiramente moído, outros se deliciam com um arroz cada vez mais fino, cada vez mais Uncle Sam.

             Resta a Maximilien Laroche preconizar uma estética, visando essa unificação que parece tão somente sonho de poetas: que todo mundo tenha seu pão.

            Certamente, é algo muito simples. No entanto, parece ter sido sempre algo de inalcançável, também, no Continente.

domingo, 16 de novembro de 1997

As descobertas


           No verão de 1953 foi criada, em Paris, The Paris review com o objetivo de publicar trabalhos ficcionais e poéticos em vez da escrita sobre a escrita. Além da publicação de trabalhos originais, a proposta era registrar as palavras dos próprios escritores sobre as suas obras o que originou reportagens com mais de duzentos romancistas, poetas e dramaturgos contemporâneos.

          Passados alguns anos, em 1996, a editora El Ateneo de Buenos Aires selecionou as reportagens sobre escritores latino-americanos para publicar Confesiones de escritores, Escritores latinoamericanos, no qual estão presentes Adolfo Bioy Casares, Jorge Luiz Borges, Guillermo Cabrera Infante, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Pablo Neruda, Octávio Paz, Manuel Puig, Mario Vargas Llosa.

           Com exceção da entrevista de Adolfo Bioy Casares, realizada em 1995, as demais são menos recentes. A que foi feita com Jorge Luiz Borges, por exemplo, data de 1966 e, as demais, de 1970, 1981, 1989, 1990 e 1993. Não tratam, então, das últimas obras publicadas, mas determinadas questões – sobre o método de trabalho do escritor, sobre suas leituras, sobre o fenômeno da criação, sobre a gênese de certas obras – conferem à Confesiones de escritores características curiosas e instigantes. Ainda que, por vezes, as perguntas versem a propósito de algo da vida pessoal do escritor (momentos amorosos de Adolfo Bioy Casares ou o que ocasionou a ruptura entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez) ou tenham sido anteriormente respondidas.

           Assim, Mario Vargas Llosa já havia dito antes que La guerra del fin del mundo é a sua obra mais importante. Reitera a afirmação, nessa entrevista de 1990, ao comentar que, na sua origem, o tema não estava destinado a um romance mas a um filme de Rui Guerra que seria produzido pela Paramount de Paris.Foi conversando com o cineasta, cuja idéia era filmar uma história relacionada com Canudos que ouviu, pela primeira vez, falar no assunto. Para realizar o roteiro, que lhe havia sido encomendado, passou a ler sobre a Guerra dos Canudos e uma de suas leituras iniciais foi Os sertões.Essa obra de Euclides da Cunha, diz, foi, para ele, uma das grandes revelações. Como o fora a leitura de Os três mosqueteiros quando criança ou Guerra e Paz, Madame Bovary e Moby Dick já adulto.

          Atônito, se dá conta de ter lido um dos melhores livros já escritos na América Latina e que a ele deve La guerra del fin del mundo. E, então, se deixa fascinar, também, pelas demais obras sobre Canudos. Quando o projeto cinematográfico foi interrompido, continuou pesquisando, num entusiasmo que o fez trabalhar dez a doze horas por dia. O resultado foi o romance que, no seu entender, chegou mais perto do que ele chama o romance total (expressão usada para classificar Cien años de soledad quando, em 1971, escreveu García Márquez: historia de un deicidio), aquele romance que descreve, desde o nascimento até a morte, um mundo fechado e tudo aquilo que o compõe seja o individual, o coletivo, o legendário, o histórico, o cotidiano, o mítico.

          Além disso, confessa que o tema de Canudos lhe propiciou o que sempre desejara: escrever um romance de aventura profundamente ligado às questões históricas e sociais. Sobre elas, Mario Vargas Llosa trabalhou durante quatro anos, partindo, pela primeira vez na sua vida de escritor, de um universo desconhecido. Foi levado não somente a entendê-lo mas a perceber o quanto faz parte da História deste Continente o fanatismo e a intolerância.

           Tal relação, como aquelas feitas, muitas vezes, pelos demais autores entrevistados, contribui para dar vigência a essas confissões que os anos passados, a partir da data em que foram feitas, não alcançaram diluir.

          Até porque já é um fato aceito pelos latino-americanos só tomar conhecimento de certos acontecimentos muitos anos depois de eles terem se passado. Um atraso que também marca a distância entre o Primeiro Mundo, produtor científico, cultural e ideológico e os outros que lhe seguem, colonizadamente, os passos.

domingo, 9 de novembro de 1997

O homem solitário

           Inicia Graciela Mántara o seu livro, Francisco Espínola: época, vida e obra (Ediciones de la Casa del Estudiante, Montevideo, s/d) dizendo que, na curta história da Literatura uruguaia, um número excessivo de escritores foi convertido em mito o que, no seu entender, pode significar algo de positivo ou de negativo: positivo, quando afirma e prova a existência de valores permanentes de uma obra ou da figura humana que a produziu; negativo, ao dizer da existência de valores sem submetê-los à prova ou a revisões periódicas, deixando, assim, os escritores e suas obras congelados como estátuas de bronze que obrigam à homenagem e à reverência como aconteceu com Zorrilla de San Martin, Delmira Agustini, Juana de Ibarbourou, Fernán Silva Valdés pois, embora possam aparecer críticos dispostos a uma revisão séria e objetiva para situar os valores nos seus justos termos, eles acabam por não transcender os círculos intelectuais e o Ensino continua a manter intocados os seus bronzes.

          Para a  autora uruguaia  não foi o que se verificou com Francisco Espínola, igualmente, uma figura-mito da Literatura de seu país. Críticos deslindaram erros e acertos, valores permanentes e elementos perecedouros na sua obra. E retoma essas apreciações para continuar com um trabalho de aproximação crítica cuja qualidade, além da extrema clareza de exposição, é a minuciosa análise de dois contos de Francisco Espínola – “Rodriguez” e “Qué lástima!” – verdadeiramente dignos de figurar nas melhores antologias do gênero. E reconhece, como um paradoxo, não fossem as válidas razões, que a figura de Francisco Espínola como ser humano continua –sendo exemplarmente mítica pois seus amigos e discípulos tanto disseram e tanto escreveram sobre ele que essa gama de testemunhos já se incorporou à memória da comunidade.

          Quando ela fala nessas facetas que em Francisco Espínola coexistiram – o amigo, o professor, o conversador incansável e brilhante, o escritor de vários gêneros, o leitor sensível e penetrante das obras alheias, o militante político – mostra-se, em cada episódio, algo de curioso, de inesperado, de comovente.
          Assim, esse testemunho que Francisco Espínola dá sobre a gênese de um conto; assim, essa tardia adesão ao Partido Comunista; assim, essa experiência de se ver privado de liberdade.
          Foi no Levante contra Gabriel Terra, em janeiro de 1935. Presidente do Uruguai havia assumido quatro anos antes e logo negara a Constituição. Contra ele se posicionou um grupo para destituí-lo do Poder. No Passo Morlán, em Colonia, houve um encontro entre governistas e rebeldes que deixou três baixas e alguns prisioneiros. Um deles, Francisco Espínola.
          Quando, diante da Delegacia desceu da viatura, na calçada, um homem o cumprimenta, reconhecendo nele o autor de Sombras sobre la tierra, romance que havia publicado em 1933.Logo, o deixam sair da cela porque o homem que o reconhecera, confessando-se um admirador, dispõe-se a preparar-lhe uma comida especial. Francisco Espínola se comove com o gesto mas recusa e volta, contente para junto dos companheiros. Diante das perguntas que lhe fazem, responde: Ai, é uma pena que vocês não tenham me ajudado a escrever Sombras sobre la tierra. A esta hora estaríamos todos jantando.

domingo, 2 de novembro de 1997

Sonetos de luz


           Publicou Verde que se oye em 1971 e Palabras cruzadas em 1977. Quinze anos depois, pela Fundación Instituto Superior de Estudios Lingüísticos y Literarios (Buenos Aires), Alumbramiento de los dias, um conjunto de sonetos. Em epígrafe, um texto de Enrique Larreta busca a definição do soneto, esse poema de engenhosa geometria que não tolera o prestígio meramente verbal, mas busca o sentido pleno da espiritualidade.Presos nos quatorze versos, o milagre de um cárcere mais livre que o ar de seus decassílabos, o sentir de Maria Judith Molinari.

          Sentir abrasado pelos pequenos milagres do cotidiano: o cheiro da chuva, o brotar dos jasmins, o bater dos sinos, o círculo de pássaros no céu, a serena claridade da janela, o desfolhar de uma árvore. Sentir onde pulsa a emoção das lembranças. As manhãs, as tristes ausências, a memória da felicidade que perduram onde o desejo do outro se esboça nas expressões que a ele se dirigem: Meu amor te abraça, quando o vento chama teu nome, pensando em ti, desamparada, Eu sei que me traçaste este caminho, As vezes me pergunto dos motivos / que me levam a nomear-te em cada verso.
           Principalmente, um sentir que emerge na busca de si mesma. Maria Judith Molinari se compraz em se procurar, em se encontrar, em se saber poeta. E os jogos de palavras que estabelece são cheios de cores – é o verde, o negro, o azul, o ocre e o marrom, o vermelho. É o branco do lírio e da magnólia, é o amarelo das acácias. Que também remetem à simplicidade de sentidos plenos de um espaço exterior (lua, rosas, laranjais, estrelas, sol, água, crepúsculos de espuma) e a uma paisagem interior plena de fé e de esperança, de um confiar na palavra, de um confiar no poema, oração de cada manhã.

           Nas palavras que antecedem em Alumbramiento de los dias os seus sonetos, Maria Judith Molinari se confessa uma aprendiz indisciplinada. No entanto, é no soneto que ela aprisiona seus versos tão cheios de luz.

domingo, 26 de outubro de 1997

Os verbos da Conquista: o temer



Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir da Crônica da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz, dando-lhe vida e criando uma das mais belas e perfeitas obras da Literatura Hispano-americana. Uma expressão rara como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que os espanhóis cheios de sonhos e, perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.
 

A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-Rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvar a cidade, mudando-a de lugar. Na primeira mudança deixa a forca e os enforcados, demonstrando ser sua vontade, exercida em nome do Rei da Espanha e de Deus, da Lei. No segundo capítulo da obra, a mudança é um recomeço onde alguns verbos se constituem a expressão de um universo interior que, estreitamente, se entrelaça com as agruras do cotidiano da Conquista.

 

 
          Tens medo? pergunta o padre. Não, responde Juan Nuñez de Prado. E parece verdade o que diz. Aparentemente, nada o amedronta diante da decisão, sempre renovada, de mudar o assentamento da cidade porque seus medos são inconfessados: teme o próprio padre que lhe fala, teme que o capitão, vindo do Chile, lhe roube a cidade. Sobretudo, não ser capaz de cumprir o que pretende – estabelecer, definitivamente a cidade - é o que mais o atemoriza. Mas, no acampamento, nesse ir da cidade no bojo das carretas, se movem as vítimas das suas vontades. São as ovelhas que fogem espavoridas pelos matos, são os bois que, em meio do terror, se despencam serra abaixo, são os cavalos que se afogam nas torrentes. E são os índios. A multidão deles, movendo-se com passos curtos e nervosos de quem nasceu fugindo. Aquele que esmagado pelo peso da roupa, sob a qual se esconde ri sarcástico ou chora de terror.
          É o medo que sente o padre Cedrón diante do que lhe é pedido: apunhalar um moribundo porque, na opinião de um dos capitães é o que de mais sadio e bondoso se pode fazer. E, somente ele, o padre, poderia ser disso o autor sem que parecesse crime.
          É o temor do soldado coxo de que não o deixem sobreviver. Escondera-se para não morrer – alguém decretara a morte dos doentes, dos velhos, dos aleijados – e, saltando com a perna sã, apoiado na muleta, é descoberto pelos capitães, sob a chuva: era jovem, muito jovem, tinha um rosto audaz, provocador, mas agora estava assustado e passou a mão pela testa para apagar o medo, levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Fugiu sem ver que a mão de Juan Nuñez de Prado havia apertado a espada pronto a eliminá-lo e a todos aqueles que pretendessem intervir nos seus planos. Alguém susta o seu gesto e o jovem coxo é, então, poupado. Não muitos outros.
          Mas, esses crimes, Juan Nuñez de Prado não teme. Porque, mais importante que tudo, para ele, é a empresa na qual se lançou: preservar a cidade, um ser vivo, a alma da Espanha. O que vale dizer do Rei e de Deus. E para eles era feita, a qualquer preço, a Conquista.

domingo, 19 de outubro de 1997

Os verbos da Conquista: o sentir


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz, dando-lhe vida e criando uma das mais belas e perfeitas obras da Literatura Hispano americana. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite vislumbrar o universo desconhecido que os espanhóis cheios de sonhos e, perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.

 

  A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-Rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvar a cidade, mudando-a de lugar. Na primeira mudança deixa a forca e os enforcados, demonstrando ser sua vontade, exercida em  nome do Rei da Espanha e de Deus, da Lei. No segundo capítulo da obra, a mudança é um recomeço onde alguns verbos se constituem a expressão de um universo interior que, estreitamente, se entrelaça com as agruras do cotidiano da Conquista.

 
          No breve texto que antecede o “Primer  traslado”, capítulo que inicia El hombre que trasladaba las ciudades, Carlos Droguett diz da primeira medida que irá tomar: descrever seu personagem. Não falando de sua estatura ou de sua idade, mas de seus estados de alma, de suas dúvidas, desfalecimentos, brios, vinganças, desejos, realizações.
          E, assim, embora, por vezes, no relato se insinue alguma informação sobre o seu físico – sua cabeça era loira e pálida, sua silhueta se via envelhecida, estava magro e sujo e seus olhos fundos brilhavam com arrogância e febre – Juan Nuñez de Prado se apresentará, sempre, como que feito somente de seu sentir.
          Em meio a esse movimento que o conduz, levando a cidade, em meio da sua construção e de seus escombros, a alegria ou a tristeza o irão definir: alegre e seguro, desprendido e leve, com uma felicidade distante e vasta. Mas, quase sempre, triste e desconsolado, cheio de desassossegos, mergulhado na melancolia, desamparo, fraqueza, dúvida, desconfiança, angústia. Uma angústia que se lhe cola nas pálpebras e nos lábios, que lhe dá desejos de chamar alguém, que o fará quase desmaiar.
          Mas, o desejo de pedir auxílio resulta em silêncios e ele vive na realidade de sua solidão: Frequentemente me sinto sozinho e acurralado, então pego as armas e saio a procurar um vice-rei que me autorize a formar expedição ou pego as ferramentas e me perco nos vales e nos desertos a esmagar uma cidade nas rochas e despovoados.
          E, sozinho, deixa as gotas de chuva molhar-lhe o rosto e tirita de frio e sente sede e cansaço e adoece no sofrimento que se repete como esse fazer e desfazer da cidade e, sozinho, permanece cheio de convicções que o fazem ignorar as dores alheias.
          Se, por vezes, confessa malogros (estou tão doente e tão cansado e tão receoso e tão arrependido), logo os repudia (não, não estou arrependido) para reafirmar o amor pela cidade que justifica, então, cada uma de suas ações: o levar da cidade para mais longe, para afastá-la da estrada de bandidos e traidores. Mesmo que para isso tenha de matar (e imagina o campo de batalha cheio de soldados mortos e ele caminhando sobre eles...), mesmo que para isso tenha de enforcar os desobedientes ou assassinar quem se lhe atravesse no caminho. Intui que nasceu para essa triste e misteriosa sina que o enche de satisfação e desespero.
          Imaginando o futuro, vê a praça da cidade com seus chafarizes, crianças correndo, sinos tocando, mulheres se mostrando nas sacadas, velhas murmurando nos portais, carruagens percorrendo as ruas. E, vendo-se já grisalho e feliz, esquece as mortes e a desolação que espalha ao seu redor, o que sente nos momentos de dúvida e de certezas, as ordens do Rei, os preceitos de Deus.
          Mas, como um relâmpago a iluminá-lo, o sonho se esvai e Juan Nuñez de Prado, outra vez, se submete à realidade da Conquista e se submerge no seu sentir.
          Um sentir que a Crônica Oficial nunca houve por bem registrar e que, assim, sempre ficou à sombra, ignorado. Como se humanos não fossem esses homens que vieram para fazer a Conquista do Continente mas, apenas, instrumento, da vontade poderosa de um rei.

domingo, 12 de outubro de 1997

Os verbos da Conquista: o lembrar


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz, dando-lhe vida e criando uma das mais belas e perfeitas obras da Literatura Hispano-americana. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite vislumbrar o universo desconhecido que os espanhóis cheios de sonhos e, perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.
 

  A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-Rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvar a cidade, mudando-a de lugar. Na primeira mudança deixa a forca e os enforcados, demonstrando ser sua vontade, exercida em nome do Rei da Espanha e de Deus, a Lei. No segundo capítulo da obra, a mudança é um recomeço onde alguns verbos se constituem a expressão de um universo interior que, estreitamente, se entrelaça com as agruras do cotidiano da Conquista.

 

... se não compreendem a necessidade de abandonar o lar que se deseja, os móveis que viveram conosco, a roupa que amassamos no nosso desespero e nossa solidão, se não sabem abandonar virilmente uns vasos de flores, uma dúzia de frutas perfumadas, como entender, senhor, que essa tropa de ladrões e assassinos tenha embarcado na Espanha para vir conquistar a terra? É a pergunta que, indignado, o capitão Guevara faz a Juan Nuñez de Prado ao não entender porque muitos soldados se negam a partir para o novo assentamento da cidade; não entende que desejem se fixar e possuir a terra e que para isso, talvez, tenham saído da Espanha.

Atravessaram o oceano, saindo de Cádiz e Palos e Barcelona e Santander e Vigo, para se embrenhar em terras desconhecidas, propondo-se a lutas desvairadas. São duzentos homens que seguem Juan Nuñez de Prado no seu caminhar pelo Continente. Seres arrancados de suas raízes e elas, no entanto, despontam no traçar das ruas da cidade, no construir das casas, nos lampejos das lembranças que por vezes irrompem.

São cravos, são violetas, são rosas, trazidas da Espanha como as sacadas, os tetos mouriscos. Como essa canção se espalhando, um distante reflexo de Além-Mar, algo semelhante ao bufido do touro a açoitar os cascos contra a areia ensolarada.

Para Juan Nuñez de Prado, por vezes, é um breve recordar: a imagem da sacada de seu quarto em Badajoz; seus dezoito anos, livres, seu falar sozinho pelo campo, chamando os meninos que brincavam nas messes e nos vales, aprontando a funda para atirar pedras que se afundavam no calor, no trigo, nas flores que revoluteavam rotas.

Na narrativa, essa efêmera volta ao que ficara atrás, emerge, de súbito, na canção repentina que é escutada e faz lembrar a praça de touros; nesse dizer dos muitos homens que desejaram partir do Velho Mundo, na volta de uma imagem do passado e, sobretudo, na surpresa dessas flores que falam.

É no texto em que se confundem as vozes de uma primeira pessoa plural: uma pertence ao conquistador (as flores, os cravos, as violetas que trouxemos de Los Reyes são flores da Espanha) e a outra às próprias flores (somos espanholas, Juan, como tu, como as ruas, como as sacadas que desejas edificar. Raro exemplo de um recurso narrativo onde as informações e as vozes se acrescentam sem fronteiras – falam os humanos, falam as flores – num enovelamento que somente irá se elucidar algumas linhas adiante.

Assim, embora no segundo capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades cada lembrança do passado seja rara e breve, sua presença, ainda que passageira se insere no relato, mantendo viva uma relação do passado com o presente certamente delineadora de uma visão de mundo que também irá direcionar este ser e este estar dos espanhóis no Continente.

domingo, 5 de outubro de 1997

Os verbos da Conquista : o olhar.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz, dando-lhe vida e criando uma das mais belas e perfeitas obras da Literatura Hispano-americana. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite vislumbrar o universo desconhecido que os espanhóis cheios de sonhos e, perdendo-se no tempo, quiseram conquista.
 

  A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-Rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvar a cidade, mudando-a de lugar. Na primeira mudança deixa a forca e os enforcados, demonstrando ser sua vontade, exercida em nome do Rei da Espanha e de Deus, a Lei. No segundo capítulo da obra, a mudança é um recomeço onde alguns verbos se constituem a expressão de um universo interior que, estreitamente, se entrelaça com as agruras do cotidiano da Conquista.

 

          Juan Nuñez de Prado se move na cidade a meio construir. Escolhera o lugar para assentá-la e já erguiam as casas, já se desenhavam as ruas e praças quando inicia sua nova mudança. Então, diante de seu olhar é um mundo de ação que se mostra, um mundo efêmero: o céu que se ilumina para que ele possa olhar a chuva; o sol a polir as pedras, a deixar brilhantes as bandeirolas e os galhardetes; o vento a açoitar a garupa dos cavalos, a fazer ondear as bandeiras; a água, correndo na mata; os cavalos e seus relinchos desesperados ao serem arrastados pela torrente; as ovelhas, tropeçando nas carretas; a cidade se desfazendo.

         Juan Nuñez de Prado olha os móveis que se afundam na chuva. Brilhando nos charcos, as janelas e as portas e os balcões e a torre da igreja. Olha a cidade, suas casas esfumando-se na luz do crepúsculo, a presença da igreja cheia de árvores novas. Diante dele, se perdendo, os arcabuzes, as laranjas vermelhas e perfumadas, a roupa, os bordados, as fazendas. E, sempre em movimento, carregadas, as carretas indo pelo campo, bamboleando-se docemente, levando pedaços da cidade. E outros, pedaços, Juan Nuñez de Prado bem os vê, são levados nas costas dos índios, são arrancados pelos espanhóis.

          E, momentos são fixados pelo seu olhar: a água escorrendo, lavando, minuciosamente, os pés enormes de um índio; os soldados dormindo perto do fogo, entre as crinas dos cavalos; a escada pela qual desciam e subiam soldados aterrorizados, buscando adagas e punhais; esse miserável soldado coxo a caminhar entre os escombros; os olhos de um outro que fora condenado a morrer.
         
          Quando chega o capitão Miguel Ardiles com o que ele pensara serem os reforços que precisava,Juan Núñez de Prado olha para o soldado ensanguentado que se levantava orgulhoso na sua padiola e no chão, alguém deitado num tugúrio, só os lábios já cárdeos, a mão morta, uns cabelos gelados, via as roupas abastardadas, o braço moído no qual escorria o sangue e a sujeira, os joelhos despedaçados que brilhavam humildemente ao sol, uns pés enormes, tumefactos, se apertavam contra a cintura de um cavalo, as moscas desciam suave sobre eles, viu umas roupas sujas, umas mantas, umas calças chamuscadas, uns borzeguins desfeitos e úmidos, viu os peitos afundados nas armaduras velhas, emboloradas....
         
            É um olhar que se pousa naquilo que o rodeia: o céu, o vento, a água, os animais, a cidade, as carretas, os índios, os soldados – e que por esse olhar é mostrado numa aproximação do espaço e dos seres que o povoam, das misérias e das injustiças as quais eles se acham subjugados que humaniza a História da Conquista ao se afastar do herói para mostrar as vítimas.
          
             Porque foi em vítimas que eles se transformaram, esses soldados do Rei quando se adentraram no Continente em busca de riquezas e de Poder.

domingo, 28 de setembro de 1997

O índio pássaro


           É um romanceiro de nossos dias. Publicado em 1984, doze anos depois teve a sua segunda edição. Um pequeno exemplar de delicada diagramação, cuja capa traz um belo desenho da autora: paisagem de ruas que se encontram, de tetos amontoados sobre os quais reinam as torres brancas da igreja.



          Romancero de sur y viento encerra treze romances, dedicados aqueles que foram a semente do que fomos. Inscrevem-se nas falas populares, resgatadas por María Cristina Casadei que os transforma em versos feitos de ritmos perfeitos e harmonias. Neles se sucedem amores e tristezas. Desenham-se as silhuetas de personagens que fizeram a História de Carmen de Patagones, breve cidade do extremo sul do Continente. A história que fica à margem dos manuais e perdura nesse contar que se renova em cada geração diante das paixões infelizes, das mortes que ceifam vidas recém começadas.

          Paixões que se querem completas como as de Mariquita e Edundo, como a de Adolfo e Isaura; sentimentos que submergem em penas de ausência e solidão; morte que busca o pescador no seu ofício, a mulher vítima do ciúme e busca na guerra o guitarrista e leva o índio insubmisso a procurá-la.

          Das vozes coletivas se alimenta María Cristina Casadei e sua ímpar veia poética faz desabrochar, outra vez, a vida. Cada verso que escreve transborda de um lirismo que, sobretudo, se enraiza nessa natureza de ventos e de mar onde se encrava Carmen de Patagones. Esboços de salgueiro, de tília, de malva, de grilos, de frutas. O vento, a lua, o sol, alguma estrela e se desenha o espaço, se instituem os ritos. De beleza triste o de Cumpa, índio-pássaro.

          A conquista está finda e o espaço indígena já vazio, Cumpa vai para o mundo dos brancos. Já nunca mais será livre. / Alguém o esvaziou por dentro. / Mudaram-lhe a paisagem. / Amordaçaram seus ossos. / E a pele foi mortalha / de um ontem que já é lembrança.

          Na imensidão da estância não é um homem livre como fora noutros tempos. Peão, sobre seus ombros cavalga / a dor de um povo inteiro. Para libertar-se, quer voar e se lança de qualquer lugar, dos montes, dos barrancos, cada lugar é uma excusa para remontar ao céu. Ninguém entende esse afã e, chamado de louco, vaga entre o mundo perdido e o mundo que não entende, desejando em insanos vôos, reconquistar a identidade que os que lhe queimaram o grito, lhe roubaram o deserto, os donos da conquista tinham violentado. E ali fica, vencido e pungente com sua dor.

          Nos versos de María Cristina Casadei que o relembram é como se muitos dos homens do Continente encontrassem ali, também, desenhado o seu destino: esse estar perdido em meio às usurpações.t
  

domingo, 21 de setembro de 1997

Surpresas

           Três rústicas pautas desenhadas sobre um fundo claro. Na do meio, uma clave de sol e uma clave de fá e, entre a primeira e a terceira linha superiores, do lado esquerdo, um amanhecer que vai se tornando dia até se transformar em noite. No centro, um minúsculo umbu. É a discreta e sugestiva capa, autoria de Caulos, de Concerto campestre.

           Como os outros romances de Luis Antonio de Assis Brasil, exceção feita de O homem amoroso (1986), a ação se passa em tempos passados, entre a Revolução Farroupilha e a Revolução Federalista. Um período de paz nos campos gaúchos que fez possível a existência dessa orquestra, a Lira Santa Cecília, na fazenda do Major Antônio Eleutério de Fontes. Rico dono de terras e charqueada, ao perceber o imenso prazer que a música lhe proporcionava, decidiu-se a manter os músicos e um maestro. Ouvia-os, embevecido, compartilhando com os seus e os amigos, especialmente convidados para os concertos festivos, sob o umbu.

           Mas os sons que o Maestro consegue tirar das inábeis mãos dos músicos e de seus rudes instrumentos que o encantam, também encantam a sua filha Clara Vitória. Ela se deixa prender de paixão pelo homem que é tão diferente daqueles que a rodeiam.

           Um amor tão impossível – castas, preconceitos medeiam entre eles – quanto impedi-lo de existir. E a sua história se apresenta cheia de fascínio porque a arte de bem narrar é muito própria de Luiz Antonio de Assis Brasil.

           Flui mansa a narrativa de Concerto campestre e, surpreendentes, nela se inserem informações, indicando que muitas outras haviam sido, até então, subtraídas. Anunciam, em fim de capítulo, uma situação de crise que irá determinar a continuação do relato sem que, no entanto, ocorram mudanças no seu ritmo.

           O primeiro capítulo dá conta da chegada do Maestro na fazenda e de seus progressos frente à orquestra; brevemente, de suas relações com a família do estancieiro. Nas últimas linhas, informa, e quase nada o fizera prever, da paixão de Clara Vitória por ele.

           O segundo capítulo retoma o dia em que o Maestro chegou para narrar dos primeiros interesses de Clara Vitória: espiara pela fresta da cortina enquanto ele, sentado, esperava que o fazendeiro lesse a carta que trazia.

           Os repetidos encontros e as palavras trocadas e o perceber-lhe os movimentos no quarto ao lado vão arquitetando os sentimentos. Nas últimas linhas do segundo capítulo, a inesperada revelação: o esgueirar-se de Clara Vitória fora de casa para entrar no quarto do Maestro e lá ficar até de madrugada. Então, novamente, a volta da narrativa para um momento anterior e, assim completar o que não fora dito e, outra vez, tratar dos sucessos da orquestra para terminar o terceiro capítulo com uma nova revelação.

           São três momentos da narrativa em que, primeiramente, ex-abrupto, é anunciado um fato inesperado, como que um relâmpago em céu tranqüilo, levando a um retorno no tempo e a um relato linear que o irá completar, mostrando o quanto Concerto campestre é um romance de exímia construção. Também feita de alguma graça, de alguma crítica, do sábio dizer dessa música que se eleva nos campos, da sedução do personagem feminino, buscando seu destino para, então, aceitar-lhe os desígnios.

 
           Iniciando-se, como romancista, em 1976, com Um quarto de légua em quadro, nesses vinte e um anos passados, Luiz Antonio de Assis Brasil publicou mais onze romances. Cada um deles, reafirmando qualidades de narrador sempre a se renovarem. Concerto campestre que a L&PM de Porto Alegre acaba de lançar, bem o comprova.