domingo, 21 de dezembro de 1997

Verdade da ficção, mentira da realidade

           O texto de Cien años de soledad diz que José Arcadio Segundo Buendía e outros dirigentes sindicais apareceram num fim de semana e promoveram manifestações nos povoados da zona bananeira. As queixas eram a insalubridade das moradias, o engano dos serviços médicos, a iniqüidade das condições de trabalho, o pagamento com vale das companhias.
           Primeiro, a polícia cuidou da ordem e, depois, na segunda-feira, prendeu os dirigentes e as petições dos trabalhadores ficaram sem ter a quem ser entregues pois os responsáveis se serviram de todos os estratagemas para não serem encontrados. E assim, fracassadas as tentativas de diálogo, se instalou a grande greve e os trabalhadores invadiram os povoados, abandonando a colheita da banana e o carregamento dos trens. Até o dia em que o exército fez saber que fora incumbido de restabelecer a ordem. Logo chegaram os regimentos, desfilando pelas ruas e, embora a lei marcial lhes facultasse funções de arbítrio, não foi realizada nenhuma tentativa de reconciliação.

           O exército realizou as tarefas dos grevistas (e estes lhe sabotavam o trabalho) e posicionou suas armas ao redor da praça onde três mil pessoas esperavam as autoridades anunciadas para interceder no conflito.Mas elas não chegaram e um tenente encarapitado no teto da estação leu o decreto número 4 do Chefe Civil e Militar que, em três artigos, declarava os grevistas um bando de malfeitores e facultava ao exército o direito de matá-los.Leitura feita, foi dado, então, um tempo de cinco minutos para evacuar a praça. Logo, a ordem de fogo.

            Devem ter sido uns três mil, disse José Arcadio Segundo Buendía ao se salvar do trem que levava os cadáveres para serem atirados no mar e encontrar abrigo numa casa. O quê? pergunta a mulher que o recebia. Ele esclarece: Os mortos. Devem ser todos os que estavam na estação. A mulher responde: Aqui não houve mortos. E assim foi dito em outras casas em que esteve. E assim acreditou seu irmão porque lera num informe oficial que os operários haviam obedecido à ordem de evacuar a estação e ido, tranquilamente, para casa.

            Foi a versão que prevaleceu na voz oficial: Em Macondo não aconteceu nada, não está acontecendo nada e não acontecerá nunca nada. Este é um povoado feliz.

            Agora, em 1997, acaba de ser publicado García Márquez, El viaje a la semilla (Alfaguara, Madrid), longa biografia escrita por Dasso Saldívar, um colombiano de 46 anos. Não apenas relata, detalhadamente, a vida de seu biografado como a história de sua gente e da Colômbia. Daí o ter relacionado a vivência de Gabriel García Márquez com a greve da qual, na sua opinião, um dos aspectos que mais chamou a atenção foi o escamoteio oficial de sua estatística do horror: o governo reconheceu nove mortos; as testemunhas e os jornais falaram sempre de centenas e no informe do Cônsul dos Estados Unidos, conhecido muitos anos depois, consta que foram mais de mil.

            Sessenta e quatro anos depois do sucedido, Gabriel García Márquez confessaria ao jornalista Gustavo Tatis Guerra: cresci com a idéia de que os mortos tinham sido muitos, mais de mil. E quando descobri que os expedientes tinham como estatística o número sete, me perguntei de que massacre podia falar com sete mortos. Então, transformei os cachos de banana em mortos e fui enchendo os vagões do trem porque com sete mortos não podia enchê-los. Disse no romance que os mortos do massacre tinham sido três mil e os lancei no mar. Isso jamais existiu. Inventei.

            Diz o seu biógrafo: mas foi uma invenção do povo e, como sempre,t o romancista acertou ao transmutar em verdade de ficção a mentira ou exagero da realidade pois a publicação de Cien años de soledad fez emergir a página mais vergonhosa da história colombiana com sua falsa estatística e desde o ano de 1967 [ano da 1ª edição do romance] a maioria dos colombianos começou a falar dos três mil mortos das bananeiras do Magdalena que é a mesma cifra que apregoa sozinho e até a sua morte em Macondo, José Arcadio Segundo Buendía.

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