domingo, 14 de dezembro de 1997

Delírios

           Em 1960, foi publicado Hijo de hombre de Augusto Roa Bastos. É um romance de nove capítulos que, embora ligados por um fio condutor, possuem significado próprio o quê faz com que possam ser lidos independentes dos demais.O oitavo capítulo “Misión” narra a heróica viagem do cabo Cristóbal Jara, levando água e socorro médico para um batalhão cercado pelo inimigo.

          O comboio parte lentamente para uma viagem de mais de quinze léguas através do mato e do deserto. Deve suportar bombardeios do inimigo, os terríveis obstáculos dos caminhos, a fragilidade dos velhos caminhões, o assalto de soldados enlouquecidos pela sede. Sobrevêm as perdas humanas pela morte e pela deserção e os veículos também vão se perdendo. Só o de Cristóbal Jara avança, mas já à deriva, com as rodas em chamas, bamboleando, movendo-se em zig-zag até bater numa árvore. Cristóbal Jara com as mãos feridas, que fizera amarrar no volante é vencido pelas ráfagas de metralhadoras quase ao chegar ao seu destino.

         Em 1995, Augusto Roa Bastos publica, na Colômbia, pela editora Presencia, Contravida, narrativa, em primeira pessoa, de um fugitivo das prisões oficiais, buscando uma saída na viagem de trem que o levará para seu povoado natal.Antes de partir, de conseguir se esgueirar no trem, jazera atirado numas sangas, ferido e sem forças, cuidado por mulheres que ali o esconderam e trataram. Nas horas lentas que mal passavam foi recobrando o movimento do corpo e a memória: imagens, fatos difusos, figuras disformes que transcorriam num só dia feito de inumeráveis dias. Acudiram a sua mente outras vidas, outras histórias, outras lembranças: Maria Regalada, filha e neta de coveiros, cuidando dos túmulos no cemitério; o médico russo; Cristóbal Jara, o chefe guerrilheiro; Salu’i, a prostituta transformada em enfermeira de guerra. São todos personagens de Hijo de hombre e a eles se iguala o narrador de Contravida, também criação de Augusto Roa Bastos. Um personagem que, no entanto, se mostra de posse de informações sobre Maria Regalada, sobre o médico russo ou sobre o seu cachorro que não aparecem em Hijo de hombre. Igualmente, possui outras que contradizem o texto de Augusto Roa Bastos.Uma delas, que o rumor popular fez de Cristóbal Jara um herói da Guerra do Chaco, transportando água para a frente de batalha, mas que na verdade, antes disso, ao se esconder no túmulo recém aberto para o Juiz de Paz, morto na noite anterior, pelos guerrilheiros na ação Ñumi, acabou sendo enterrado vivo sob o peso do caixão na hora do enterro; outra, é a afirmação de que os guerrilheiros, protegidos pelos leprosos na festa do santo patrono do povoado, foram presos pelas tropas do exército e os doentes fugiram para o leprosário.
 
          Em Hijo de hombre, no capítulo “Fiesta”, Cristóbal Jara dança na festa em honra do comandante, cercado pelos leprosos e quando a presença deles é notada, o tumulto que se instala permite que o guerrilheiro se afaste sem ser molestado. Quanto ao Juiz de Paz, em Hijo de hombre está muito doente e Maria Regalada é de opinião que Cristóbal Jara, escondido num túmulo do cemitério, deve sair dali sob pena de ser surpreendido caso o juiz venha a falecer. A contradição maior, porém, é quando diz ser Sergio Miskovski o nome do médico russo que em Hijo de hombre se chama Alexis Dubrovski.

            Enganos ou lapsos que talvez se expliquem por serem essas imagens que lhe povoam a mente de ferido, frutos de lembranças febris também responsáveis por fictícias vivências. Afirma, então, ter escrito “Misión”, num possível delírio que o faz confundir o que, talvez, um dia tivesse desejado ter feito com a realidade desse texto que o impressionou, quem sabe, a tal ponto de querer dele se apossar.

            Augusto Roa Bastos não lhe elude o dizer e, nas últimas seqüências do livro, como narrador onisciente, o leva para seu destino: desaparecer nas chamas de uma árvore que se incendeia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário