Afonso
Henrique de Lima Barreto nasceu numa segunda feira, 13 de maio de 1881. Por
ironia do destino, no mesmo dia em que anos depois ocorreria a Abolição da
Escravatura o que, como é sabido, não tornou os escravos livres mas os
agrilhoou, na sua maior parte, ao longo do tempo, numa como que intransponível
miséria. Quanto a ele, jamais se libertaria dos sentimentos que a cor de sua
pele fez emergir e que iriam marcar-lhe a vida e, indelevelmente, a obra.
Nos
fragmentos de seu Diário íntimo, que
a Mercado Aberto de Porto Alegre acaba de publicar na “Série pequenas grandes
obras”, a brevíssima amostragem dos textos selecionados é rica em exemplos de
quanto o não ser branco lhe amargurou os dias.
Deveras
melancólico é ver esse debater-se entre a pobreza mesquinha, o sofrimento por
ser mestiço e as aspirações de glória que uma obra de valor poderia lhe dar.
Lima Barreto não suporta sua casa (nela nunca me acomodei), a sua família (Há em minha gente toda uma tendência baixa,
vulgar, sórdida), a doença de seu pai
(O meu pai delira constantemente e seu delírio tem a ironia dos loucos de
Shakespeare), o comportamento da irmã (minha
irmã [...] deve ter um certo recato,
uma certa timidez). Então, cola retratos e figuras nas paredes de seu
quarto para torná-lo mais garrido,
pretende dar ao pai melhores condições de vida, evita dissabores com a irmã por
aceitar toda espécie de namoros mais ou
menos mal intencionados e foge sempre
para a rua, procurando um ambiente menos hostil.
Mas,
embora se fixe na natureza exuberante do Rio de Janeiro – nesses fragmentos
várias vezes nela se detém em descrições onde abundam as cores -, as pessoas
que observa ou com as quais se encontra, igualmente, o importunam. Como,
também, o ambiente militar (onde se sente
deslocado) em que trabalha ou os literatos
(incrível a ignorância dos nossos literatos) e os críticos da época (até que ponto um crítico tem o direito de, a pretexto de crítica, injuriar o autor?).
Mais do que tudo, porém, grandemente, o importunam a
sua condição de mulato – ainda que descubra que seus olhares possam interessar
as damas; ainda que pretenda escrever um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda;
ainda que possa confessar ter amor pela gente
negra – e, a tal ponto, que se permite dizer: É triste não ser branco.
Sobretudo,
se vive numa sociedade que se ufana de não ser racista mas onde aparecem,
constantes, as manhas da segregação.
Quando
Lima Barreto recebeu um convite para assistir à partida da esquadra americana
em visita ao Brasil, a bordo de um navio do Lloyd, se deu conta que, na
prancha, para embarcar, a não ser a ele, não pediam o convite para mais ninguém;
ao ir à Secretaria de Estado das Relações Exteriores tratar de assunto
relacionado com seu trabalho, mesmo acreditando ser um cidadão brasileiro, foi maltratado pelos contínuos enfardelados em amplas sobrecasacas pretas
com botões dourados.
E,
sabendo que a nomeação de um negro para professor do Colégio Militar fora
sustada, ele faz reflexões sobre essa República tão pouco liberal que se proíbe
dar um lugar de professor para um negro. Conclui: É singular essa República.
Que
é, ainda, a República dos brasileiros.

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