domingo, 26 de outubro de 1997

Os verbos da Conquista: o temer



Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir da Crônica da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz, dando-lhe vida e criando uma das mais belas e perfeitas obras da Literatura Hispano-americana. Uma expressão rara como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que os espanhóis cheios de sonhos e, perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.
 

A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-Rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvar a cidade, mudando-a de lugar. Na primeira mudança deixa a forca e os enforcados, demonstrando ser sua vontade, exercida em nome do Rei da Espanha e de Deus, da Lei. No segundo capítulo da obra, a mudança é um recomeço onde alguns verbos se constituem a expressão de um universo interior que, estreitamente, se entrelaça com as agruras do cotidiano da Conquista.

 

 
          Tens medo? pergunta o padre. Não, responde Juan Nuñez de Prado. E parece verdade o que diz. Aparentemente, nada o amedronta diante da decisão, sempre renovada, de mudar o assentamento da cidade porque seus medos são inconfessados: teme o próprio padre que lhe fala, teme que o capitão, vindo do Chile, lhe roube a cidade. Sobretudo, não ser capaz de cumprir o que pretende – estabelecer, definitivamente a cidade - é o que mais o atemoriza. Mas, no acampamento, nesse ir da cidade no bojo das carretas, se movem as vítimas das suas vontades. São as ovelhas que fogem espavoridas pelos matos, são os bois que, em meio do terror, se despencam serra abaixo, são os cavalos que se afogam nas torrentes. E são os índios. A multidão deles, movendo-se com passos curtos e nervosos de quem nasceu fugindo. Aquele que esmagado pelo peso da roupa, sob a qual se esconde ri sarcástico ou chora de terror.
          É o medo que sente o padre Cedrón diante do que lhe é pedido: apunhalar um moribundo porque, na opinião de um dos capitães é o que de mais sadio e bondoso se pode fazer. E, somente ele, o padre, poderia ser disso o autor sem que parecesse crime.
          É o temor do soldado coxo de que não o deixem sobreviver. Escondera-se para não morrer – alguém decretara a morte dos doentes, dos velhos, dos aleijados – e, saltando com a perna sã, apoiado na muleta, é descoberto pelos capitães, sob a chuva: era jovem, muito jovem, tinha um rosto audaz, provocador, mas agora estava assustado e passou a mão pela testa para apagar o medo, levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Fugiu sem ver que a mão de Juan Nuñez de Prado havia apertado a espada pronto a eliminá-lo e a todos aqueles que pretendessem intervir nos seus planos. Alguém susta o seu gesto e o jovem coxo é, então, poupado. Não muitos outros.
          Mas, esses crimes, Juan Nuñez de Prado não teme. Porque, mais importante que tudo, para ele, é a empresa na qual se lançou: preservar a cidade, um ser vivo, a alma da Espanha. O que vale dizer do Rei e de Deus. E para eles era feita, a qualquer preço, a Conquista.

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