domingo, 5 de outubro de 1997

Os verbos da Conquista : o olhar.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz, dando-lhe vida e criando uma das mais belas e perfeitas obras da Literatura Hispano-americana. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite vislumbrar o universo desconhecido que os espanhóis cheios de sonhos e, perdendo-se no tempo, quiseram conquista.
 

  A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-Rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvar a cidade, mudando-a de lugar. Na primeira mudança deixa a forca e os enforcados, demonstrando ser sua vontade, exercida em nome do Rei da Espanha e de Deus, a Lei. No segundo capítulo da obra, a mudança é um recomeço onde alguns verbos se constituem a expressão de um universo interior que, estreitamente, se entrelaça com as agruras do cotidiano da Conquista.

 

          Juan Nuñez de Prado se move na cidade a meio construir. Escolhera o lugar para assentá-la e já erguiam as casas, já se desenhavam as ruas e praças quando inicia sua nova mudança. Então, diante de seu olhar é um mundo de ação que se mostra, um mundo efêmero: o céu que se ilumina para que ele possa olhar a chuva; o sol a polir as pedras, a deixar brilhantes as bandeirolas e os galhardetes; o vento a açoitar a garupa dos cavalos, a fazer ondear as bandeiras; a água, correndo na mata; os cavalos e seus relinchos desesperados ao serem arrastados pela torrente; as ovelhas, tropeçando nas carretas; a cidade se desfazendo.

         Juan Nuñez de Prado olha os móveis que se afundam na chuva. Brilhando nos charcos, as janelas e as portas e os balcões e a torre da igreja. Olha a cidade, suas casas esfumando-se na luz do crepúsculo, a presença da igreja cheia de árvores novas. Diante dele, se perdendo, os arcabuzes, as laranjas vermelhas e perfumadas, a roupa, os bordados, as fazendas. E, sempre em movimento, carregadas, as carretas indo pelo campo, bamboleando-se docemente, levando pedaços da cidade. E outros, pedaços, Juan Nuñez de Prado bem os vê, são levados nas costas dos índios, são arrancados pelos espanhóis.

          E, momentos são fixados pelo seu olhar: a água escorrendo, lavando, minuciosamente, os pés enormes de um índio; os soldados dormindo perto do fogo, entre as crinas dos cavalos; a escada pela qual desciam e subiam soldados aterrorizados, buscando adagas e punhais; esse miserável soldado coxo a caminhar entre os escombros; os olhos de um outro que fora condenado a morrer.
         
          Quando chega o capitão Miguel Ardiles com o que ele pensara serem os reforços que precisava,Juan Núñez de Prado olha para o soldado ensanguentado que se levantava orgulhoso na sua padiola e no chão, alguém deitado num tugúrio, só os lábios já cárdeos, a mão morta, uns cabelos gelados, via as roupas abastardadas, o braço moído no qual escorria o sangue e a sujeira, os joelhos despedaçados que brilhavam humildemente ao sol, uns pés enormes, tumefactos, se apertavam contra a cintura de um cavalo, as moscas desciam suave sobre eles, viu umas roupas sujas, umas mantas, umas calças chamuscadas, uns borzeguins desfeitos e úmidos, viu os peitos afundados nas armaduras velhas, emboloradas....
         
            É um olhar que se pousa naquilo que o rodeia: o céu, o vento, a água, os animais, a cidade, as carretas, os índios, os soldados – e que por esse olhar é mostrado numa aproximação do espaço e dos seres que o povoam, das misérias e das injustiças as quais eles se acham subjugados que humaniza a História da Conquista ao se afastar do herói para mostrar as vítimas.
          
             Porque foi em vítimas que eles se transformaram, esses soldados do Rei quando se adentraram no Continente em busca de riquezas e de Poder.

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