domingo, 12 de outubro de 1997

Os verbos da Conquista: o lembrar


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz, dando-lhe vida e criando uma das mais belas e perfeitas obras da Literatura Hispano-americana. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite vislumbrar o universo desconhecido que os espanhóis cheios de sonhos e, perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.
 

  A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-Rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvar a cidade, mudando-a de lugar. Na primeira mudança deixa a forca e os enforcados, demonstrando ser sua vontade, exercida em nome do Rei da Espanha e de Deus, a Lei. No segundo capítulo da obra, a mudança é um recomeço onde alguns verbos se constituem a expressão de um universo interior que, estreitamente, se entrelaça com as agruras do cotidiano da Conquista.

 

... se não compreendem a necessidade de abandonar o lar que se deseja, os móveis que viveram conosco, a roupa que amassamos no nosso desespero e nossa solidão, se não sabem abandonar virilmente uns vasos de flores, uma dúzia de frutas perfumadas, como entender, senhor, que essa tropa de ladrões e assassinos tenha embarcado na Espanha para vir conquistar a terra? É a pergunta que, indignado, o capitão Guevara faz a Juan Nuñez de Prado ao não entender porque muitos soldados se negam a partir para o novo assentamento da cidade; não entende que desejem se fixar e possuir a terra e que para isso, talvez, tenham saído da Espanha.

Atravessaram o oceano, saindo de Cádiz e Palos e Barcelona e Santander e Vigo, para se embrenhar em terras desconhecidas, propondo-se a lutas desvairadas. São duzentos homens que seguem Juan Nuñez de Prado no seu caminhar pelo Continente. Seres arrancados de suas raízes e elas, no entanto, despontam no traçar das ruas da cidade, no construir das casas, nos lampejos das lembranças que por vezes irrompem.

São cravos, são violetas, são rosas, trazidas da Espanha como as sacadas, os tetos mouriscos. Como essa canção se espalhando, um distante reflexo de Além-Mar, algo semelhante ao bufido do touro a açoitar os cascos contra a areia ensolarada.

Para Juan Nuñez de Prado, por vezes, é um breve recordar: a imagem da sacada de seu quarto em Badajoz; seus dezoito anos, livres, seu falar sozinho pelo campo, chamando os meninos que brincavam nas messes e nos vales, aprontando a funda para atirar pedras que se afundavam no calor, no trigo, nas flores que revoluteavam rotas.

Na narrativa, essa efêmera volta ao que ficara atrás, emerge, de súbito, na canção repentina que é escutada e faz lembrar a praça de touros; nesse dizer dos muitos homens que desejaram partir do Velho Mundo, na volta de uma imagem do passado e, sobretudo, na surpresa dessas flores que falam.

É no texto em que se confundem as vozes de uma primeira pessoa plural: uma pertence ao conquistador (as flores, os cravos, as violetas que trouxemos de Los Reyes são flores da Espanha) e a outra às próprias flores (somos espanholas, Juan, como tu, como as ruas, como as sacadas que desejas edificar. Raro exemplo de um recurso narrativo onde as informações e as vozes se acrescentam sem fronteiras – falam os humanos, falam as flores – num enovelamento que somente irá se elucidar algumas linhas adiante.

Assim, embora no segundo capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades cada lembrança do passado seja rara e breve, sua presença, ainda que passageira se insere no relato, mantendo viva uma relação do passado com o presente certamente delineadora de uma visão de mundo que também irá direcionar este ser e este estar dos espanhóis no Continente.

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