Em 1973, a
Noguer de Barcelona, publicou El hombre
que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da
Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica
contida nesse relato oficial, o refaz, dando-lhe vida e criando uma das mais
belas e perfeitas obras da Literatura Hispano americana. Uma expressão rara,
como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos
fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e
repetitivas cujo avançar e recuar permite vislumbrar o universo desconhecido
que os espanhóis cheios de sonhos e, perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.
A cidade de Barco
foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa
incumbência do Vice-Rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura
pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvar a
cidade, mudando-a de lugar. Na primeira mudança deixa a forca e os enforcados,
demonstrando ser sua vontade, exercida em nome do Rei da Espanha e de Deus, da Lei. No
segundo capítulo da obra, a mudança é um recomeço onde alguns verbos se
constituem a expressão de um universo interior que, estreitamente, se entrelaça
com as agruras do cotidiano da Conquista.
No breve texto que antecede
o “Primer traslado”, capítulo que inicia
El hombre que trasladaba las ciudades,
Carlos Droguett diz da primeira medida que irá tomar: descrever seu personagem.
Não falando de sua estatura ou de sua idade, mas de seus estados de alma, de
suas dúvidas, desfalecimentos, brios, vinganças, desejos, realizações.
E, assim, embora, por vezes,
no relato se insinue alguma informação sobre o seu físico – sua cabeça era
loira e pálida, sua silhueta se via envelhecida, estava magro e sujo e seus olhos fundos brilhavam com arrogância e febre – Juan Nuñez de Prado se
apresentará, sempre, como que feito somente de seu sentir.
Em meio a esse movimento que
o conduz, levando a cidade, em meio da sua construção e de seus escombros, a
alegria ou a tristeza o irão definir: alegre
e seguro, desprendido e leve, com
uma felicidade distante e vasta. Mas,
quase sempre, triste e desconsolado, cheio de desassossegos, mergulhado na
melancolia, desamparo, fraqueza, dúvida, desconfiança, angústia. Uma angústia
que se lhe cola nas pálpebras e nos
lábios, que lhe dá desejos de chamar alguém, que o fará quase desmaiar.
Mas, o desejo de pedir
auxílio resulta em silêncios e ele vive na realidade de sua solidão: Frequentemente me sinto sozinho e
acurralado, então pego as armas e saio a procurar um vice-rei que me autorize a
formar expedição ou pego as ferramentas e me perco nos vales e nos desertos a
esmagar uma cidade nas rochas e despovoados.
E, sozinho, deixa as gotas
de chuva molhar-lhe o rosto e tirita de frio e sente sede e cansaço e adoece no
sofrimento que se repete como esse fazer e desfazer da cidade e, sozinho, permanece
cheio de convicções que o fazem ignorar as dores alheias.
Se, por vezes, confessa
malogros (estou tão doente e tão cansado e tão receoso e tão arrependido),
logo os repudia (não, não estou arrependido) para reafirmar o amor
pela cidade que justifica, então, cada uma de suas ações: o levar da cidade
para mais longe, para afastá-la da estrada
de bandidos e traidores. Mesmo que para isso tenha de matar (e imagina o campo de batalha cheio de soldados mortos e ele caminhando sobre eles...),
mesmo que para isso tenha de enforcar os desobedientes ou assassinar quem se
lhe atravesse no caminho. Intui que nasceu para essa triste e misteriosa sina que o enche de satisfação e desespero.
Imaginando o futuro, vê a
praça da cidade com seus chafarizes, crianças correndo, sinos tocando, mulheres
se mostrando nas sacadas, velhas murmurando nos portais, carruagens percorrendo
as ruas. E, vendo-se já grisalho e feliz, esquece as mortes e a desolação que
espalha ao seu redor, o que sente nos momentos de dúvida e de certezas, as
ordens do Rei, os preceitos de Deus.
Mas, como um relâmpago a
iluminá-lo, o sonho se esvai e Juan Nuñez de Prado, outra vez, se submete à
realidade da Conquista e se submerge no seu sentir.
Um sentir que a Crônica
Oficial nunca houve por bem registrar e que, assim, sempre ficou à sombra,
ignorado. Como se humanos não fossem esses homens que vieram para fazer a
Conquista do Continente mas, apenas, instrumento, da vontade poderosa de um
rei.
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