domingo, 29 de dezembro de 1996

O intruso

 
          A Senhora veste de luto, tem os cabelos presos e o coração perdido entre acentos de exaltação e angústias.

          Move-se num cenário antigo: móveis escuros, relógios de pêndulo, bibelôs, quadros pastoris, a cristaleira, o centro de mesa de faiança, onde o ar está impregnado do odor açucarado que exalam os pastéis de santa clara, os quindins e os fios de ovos.

          Ao Pleyel, a Senhora, por um momento, suspende as mãos sobre as teclas, surpreendida pela voz do aguateiro que, na praça ensolarada, apregoa o que vende.

          A criada, dando-se conta de seu enfado, dá ordens ao homem para que se retire dali e, obedecendo à Senhora, lhe atira uma frágil moeda. O aguateiro se cala e, na praça, continua à espreita de alguém que passe e lhe compre água.

          No Solar dos Leões, o piano se cala e se inicia o ritual: a chegada das visitas, a hospitalidade fidalga, os diálogos, a música que a Senhora, outra vez ao piano, faz elevar-se. Certamente, os sons se escapam pela janela aberta, invadindo a praça como se houvesse uma lei que tal liberdade permitisse.

          Porque hostil é apenas o ruído do exterior, perturbando o mundo fechado do Solar dos Leões, palacete a imperar na praça da cidade mas, dela não suportando presenças.

          Romance de paixões condenadas e nefastas, Perversas famílias (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992) se povoa de personagens que mergulham na opulência. Como que apenas casuais, “os outros” que estão a seu serviço, permitindo-lhes a vida de ócio.

          Romance onde Luiz Antonio de Assis Brasil cria um mundo de classes estanques. Por vezes, nele se instala uma espécie de interrogação diluída numa cena brevíssima como a dessa tarde de verão em que o “clamor” do aguateiro, para vender sua água, é um intruso que rompe o equilíbrio das mãos sobre o teclado.

domingo, 22 de dezembro de 1996

Dois mundos

          Houve um momento, na década de 70, em que a busca de um novo instrumento para o estudo do texto literário levou à análise semântica aplicada à descrição da sociedade.

          No seu trabalho publicado na revista Littérature (Paris, 1971), “La description littéraire des structures sociales: essai d’une approche sémantique”, Ulrich Ricken mostra como o código de classificação social não se reduz às palavras como “pobre”, “rico”, “burguês” mas é feito, também, de expressões como “bem vestido”, “maltrapilho”, “faminto”, “o que janta bem”, etc.Num conjunto vocabular assim constituído, os termos referentes aos diversos critérios de classificação social formam sub-códigos que, respectivamente, cobrem zonas equivalentes de diferenciação sócio-hierárquicas.

          No seu romance Perversas famílias (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992), Luiz Antonio de Assis Brasil narra as conflitantes relações de uma abastada família do sul do Brasil que vive num castelo,  cenário de luxo e de requinte.  Um requinte ou um pseudo requinte que é estendido à mesa.
 
          Como era de uso na corte austríaca, de acordo com a baronesa que viera casar-se no Brasil, no castelo do pampa o cardápio mudava de acordo com o idioma permitido nesse dia. Nas terças e sextas feiras, porém, era dada a licença para falar português à mesa e não sendo desdenhada a cultura popular, eram servidos os “gordurosos quartos de ovelha” e o guisado com abóbora, alternando-se com os vol au vent e com os puddings.

          Igualmente, só era permitido apresentar-se com um traje adequado e, assim, Páris, o neto recém chegado, primeiro teve que passar pelas mãos do alfaiate para, então, poder jantar com a família .Recluído no seu quarto, levam-lhe arroz com feijão e um peito de frango numa simplicidade alheia ao que era servido para a família, mas encontrada na fazenda distante onde se comia pirão com um molho graxento ou rabada com batatas; ou, num hotel de cidade pequena em que o cardápio era composto de carne assada, aipim duro e feijão com charque.

          Uma dicotomia que se delineia com clareza: no castelo ou no palacete da cidade servem chocolate, torradas, leite com bolachinha Maria, bolo de milho e arroz doce, docinhos em travessa de porcelana, compotas, fios de ovos, ambrosias, bem casados, refrescos, café, vinho do Porto. Baixelas são usadas e cristais e guardanapos com monogramas presos em argolas de prata, candelabros e um serviço inglês – Wood & Sons Ltd, Burslem – para o cotidiano em que rosas pequenas e margaridas brancas e uma borda fininha e negra marcavam cada peça: a sopeira, as legumeiras, as travessas.Aos domingos, o almoço era servido numa louça da Companhia das Índias onde borboletas adejavam, coloridas, num campo rouge de fer sobre dourado perto do brasão da família a que a louça pertencera antes de ser vendida, num leilão, em Lisboa.

          Fortuna e vida fácil   convivendo com a pobreza e o trabalho. O dono do castelo a se rodear de luxo estrangeiro e de iguarias no sua mesa.  Na cozinha, no pátio da escola pública, num vagão de trem, o cocheiro, a menina pobre, os que viajam nos vagões comuns dos trens , comem mortadela com pão, “mata-fome”, galinha com farofa.  Ainda que em número pequeno e, talvez, até mesmo por isso, tais expressões ajudam a compor o quadro desse mundo de opulência e de ostentação de que é feito o romance de Luiz Antonio de Assis Brasil.

domingo, 15 de dezembro de 1996

Leontina das Dores


Buçal de prata foi publicado pela Editora Tchê de Porto Alegre em 1981. No dizer dos editores, é um livro de versos que se antecipa, mostrando caminhos: uma recriação poética dos motivos gauchescos.

Andamentos poéticos para toadas e milongas, chamou o autor, Luiz Coronel, a  seu trabalho de dez anos, feito para ser musicado. Mas, independentemente da complementação musical que tenham essas letras, um grande valor poético as alimenta.

Numa temática tradicional do gênero, que se encrava no universo gauchesco, se alinham os elementos exteriores, desenhando esse universo feito, sobretudo, de uma visão de mundo onde prevalece um extremo amor próprio e onde se mostram os ideais de coragem e de liberdade.

No poema “As pilchas” e “Botas de garrão” há todo um léxico da indumentária (esporas, vincha, guaiaca, pala, barbicacho, bombacha, lenço colorado, botas de garrão) que se alia a uma expressão do eu, marcada por possessivos e por verbos na primeira pessoa que vai delineando o tipo altaneiro que estará presente nos demais poemas. Seja quando fala de sofrimentos (Meus pesares e lamentos / levo a outras invernias / dou canto às ventanias / com meus penares me agüento), seja quando fala de seus versos (Pajando sou galo de rinha / e a minha rima é uma faca / que se escapa da bainha), seja quando fala de valentias (Se troveja gritarias / já relampeja minha adaga).

E, entre esses versos, emerge uma voz de mulher, expressando temas inusitados num gênero cuja expressão foi sempre masculina. Versos que se emaranham em verdadeiros achados estilísticos e numa bela simplicidade narrativa para falar do fado, do abandono e da espera submissa nos cinco poemas que compreendem os “Cantos de Leontina das Dores”.

No primeiro, Leontina das Dores se apresenta para dizer da solidão da menina que foi e da solidão que dura para sempre. No segundo, fala das flores, querendo dizer outras coisas: o amor que passou, a condenação à espera amorosa. No  terceiro, é uma expressão de mulher à espera do filho e as ilusões que, sobre esse filho, ela tece. No quarto poema, os versos dizem de amor preterido e de solidão. E no quinto, ela pede ao filho que não vá embora: Meu filho, não olhes pra estrada;meu filho, não olhes pro rio. Lembra para ele que, ao obedecer ao desejo de partir, irá trocar  a carne no prato, a brisa dos eucaliptos, a casa na coxilha por uma marmita fria, pelas fuligens no ar, pelo casebre. A  essas razões objetivas se misturam conceitos enovelados na natureza: Aprende a lição das árvores / ganham o céu pelas folhagens / e o chão pelas raízes diz a última estrofe do poema, reafirmando que a aflição de horários, a angústia dos salários  se contrapõe à vida tranquila de arroio, pesca, mate amargo, sesta, china e baio para montar.

Nos campos o latifúndio. Os homens abandonando o pago. Luiz Coronel acompanha os novos tempos e, nos seus versos, fica evidente que na conhecida trilha da lírica gauchesca ainda há caminhos a palmilhar.

E o poeta a eles não se nega.

domingo, 8 de dezembro de 1996

De pernilongos

             É uma Arca de Noé cheia de palavras: mini-contos, apólogos, fábulas, ou simples historinhas de animais fazem parte do livro de David Sánchez Juliao.

Publicado em 1976, El arca de Noé torna a aparecer em Una década (1973-1983), publicado pela Playa y Janes da Colômbia e que reúne vários livros de quem é um romancista, um comunicador, um jornalista, um sociólogo, um catedrático e um educador popular.

O material de que é feito El Arca de Noé foi encontrado ou já escrito ou simplesmente David Sánchez Juliao transcreveu do que lhe foi contado. Também, ou principalmente, o que fez foi dar rédea solta a sua imaginação. E a tal ponto ele diz, que sobre as teclas da máquina via animaizinhos dançando e fugindo do jogo de seus dedos.

No texto, lá estão – o avestruz, a tartaruga, a aranha, a abelha, a baleia, a cegonha, o coelho, o papagaio, a borboleta – dizendo coisas sempre acertadas.

Não é sem razão que David Sánchez Juliao antes de começar suas histórias, recorda a La Fontaine  quando diz servir-se dos irracionais para instruir os humanos.E, assim, nessa Arca de Noé cabe todo um compêndio de ensinamentos e de constatações. Basta que os homens de Continente os saibam entender.Como o caso do pernilongo, por exemplo. Só ele o gringo não podia vencer: Quando no começo do século os gringos começaram a construir o Canal do Panamá, uma invasão de pernilongos dizimou bandos de operários estrangeiros. Desde então, o pernilongo se converteu em herói latino-americano. Levantaram para ele estátuas de aguilhão inteiro, sua silhueta foi impressa em selos de correio, com seu nome foram batizadas livrarias, jornais e revistas e foi introduzido com honra no índice da História Natural. Quando o gringo voltou, meio século depois, com a intenção de abrir mais canais, submeter mais povos, corromper mais funcionários e controlar mais economias, os pernilongos atacaram de novo, convencidos de sua prepotência, mas de forma com que sempre tinham feito: em nuvens negras, em enxames dispersos, em grupinhos isolados. E lhes foi mal; porque enquanto eles tinham se dedicado a dormir o sono das estátuas, os selos e a história, os gringos haviam se dedicado a inventar o inseticida-spray. E perderam.

domingo, 1 de dezembro de 1996

Promessas e avisos

          “Nosotros habíamos manietado la lástima” é um dos contos de David Sánchez Juliao publicado no livro Una década, 1973-1983 (Plaza y Janes, Colômbia). Inicia com a frase Sim, nós o matamos e a voz narrativa não abandonará a primeira pessoa do plural, esse nós que toma decisões e que é responsável pelos atos praticados.

          O desejo de todos teria sido fuzilar o indivíduo. Mas para que pudesse morrer com a cara intacta, o enforcaram. E como o fizeram se constitui a primeira parte do relato: a casualidade que levou a vítima a chegar onde eles estavam (porque nenhum deles o procurou) e terem sempre uma corda à mão o que lhes facilitou a tarefa.

          Primeiro, experimentaram o galho da árvore à beira do rio e sem a menor prática – nunca haviam enforcado ninguém antes – sem o menor susto ou nervosismo fizeram o nó e o puseram sobre o cavalo. Com uma varinha o espantaram e o animal, disparando, deixou no ar o corpo a se balançar.

          Antes desse seu final,ele havia chorado e havia se exclamado, pedindo piedade. Mas eles (não se sabe quantos), permaneceram impassíveis, a piedade manietada porque falara em sofrimento e isso eles não suportaram, pois de sofrimentos entendiam eles.

          Na segunda parte do conto é esclarecido o porquê da condenação: No começo ele vinha por aqui como todos vêm. Muito de vez em quando nos três primeiros anos de governo, mas a medida que se aproximam as eleições, as visitas vão se aproximando tanto uma da outra que no fim estão por aqui um dia sim e um dia não.

          São os candidatos que tudo e, em grande, prometem. A esse em que (embora sendo gatos escaldados) acreditaram – porque parecia sincero e os convencera o suficiente para levá-los a desprezar o ônibus do adversário e a não se importar em perder os doces e o rum e o dinheiro distribuídos no dia da eleição – eles avisaram que se não cumprisse o prometido seria morto.

          O candidato achava graça e continuava prometendo e foi muito o dinheiro que arrancou deles para comprar votos em outros lugares. E ganhou as eleições. E esqueceu as promessas.

          Se a elas tivesse sido fiel, teria feito do lugar o mais belo da Colômbia porque não ia ficar criança com vermes, nem mulher com dente cariado, nem homem sem terra própria para manter a família. A escola seria grande e com muitos professores para que as crianças e os velhos aprendessem a escrever, a ler e a falar bonito como ele.

          Mas, como todos os outros candidatos ele enganou a todos. Quatro anos depois voltou para tudo recomeçar, prometendo as mesmas coisas sem ter acreditado nos avisos que lhe haviam feito. Então foi muito tarde para se dar conta que a palavra para alguns é coisa séria. E por isso morreu.

          No conto não é dito seu nome. Tampouco o daqueles que o enforcaram, dominando uma, talvez insidiosa piedade. E do anonimato se ergue a ação. E é ela que interessa, pois os homens são sempre os mesmos.

          Numa ditadura, esse conto de David Sánchez Juliao seria (sem dúvida) de leitura proibida; nas democracias do Continente, com certeza, uma lamentável catarse.

domingo, 24 de novembro de 1996

Os retratos

          É um pequeno livro, Prêmio Casa de Las Américas: Alguien tiene que llorar. E o primeiro conto que lhe dá o título, um tecer de vozes, é feito de quatro monólogos que se intercalam para falar de Maritza.        

          O primeiro é o de Daniel que, a partir de uma fotografia, apresenta as donas das demais vozes e aquela sobre a qual serão ditas as palavras: um grupo de adolescentes, Alina, Lázara, Caridad e Maritza, imobilizado pela imagem que ficou. Orgulhosa de sua feminilidade, uma; tímida e medrosa, a outra; plena de uma beleza imperfeita, a terceira.Sobressaindo-se das demais, presença agressiva, a que fora marcada pelo destino ou pela vida.

          De suas vozes emerge um universo feminino esboçando caminhos possíveis: o do casamento, o da busca do amor renovado, o da solidão, o da morte.

          E a morte dando origem a cada uma das narrativas e, a partir delas, aos retratos de mulher: Alina, gorda e realizada mãe de família; Caridad, bela e sem filhos, vivendo a troca de amores; Lázara, miúda e feia, incapaz na sua insegurança de conservar o interesse masculino e Maritza, de rosto perfeito e misterioso, talvez marginal, talvez incompreendida.

          Retratos incompletos que sugerem amores, desacertos, preconceitos, certezas e dúvidas. Sobretudo quando Maritza é delineada.A marca do tempo na foto torna transparentes os seus olhos como se já então, tivesse sido marcada para morrer, diz Daniel. E, anos passados, a encontraram afogada na banheira, o corpo virado, a garrafa quase vazia.Havia sido bela e sagaz. Confidente compreensiva. Bondosa e despojada. Tinha, ainda, o desprezo pelas convenções de quem, para ver o mundo, inova caminhos. E, ao não encontrá-los, procura a morte. Sem filhos, sem marido e com sua patologia. Para que deseja viver? pergunta, então, Alina.

          Alina que ao ser criada para constituir família, não imagina que alguém dela possa prescindir. Na sua convicção de que só a família completa a mulher, não lhe é possível entender a vida das amigas, uma a casar várias vezes, a outra solitária sem o desejar e Maritza um ser anormal, como presume.

          Presunção que, ao se cruzar com o que pensam e com o que sentem Lázara, Caridad e Daniel, institui uma ambigüidade. Ora são insinuações, ora silêncios, ora explicações e, desconhecido, permanece o querer de Maritza e indefinida, a sua opção. Nesse seu drama, percebido pelos demais e no cotidiano drama das três amigas da vida inteira, há um refletir sobre o ser feminino que se expressa em interrogações. Aquela contida no texto da escritora mexicana Rosario Castellanos que aparece em epígrafe: Deve haver outra maneira que não se chame Safo nem Mêsssalina nem Maria Egipciaca nem Madalena nem Clemencia Isaura.

          E as outras que Marilyn Bobes, nascida em La Habana no ano de 1955, astuciosamente, dilui nos quatro monólogos de seu conto.

domingo, 17 de novembro de 1996

Leitura imprescindível

          Em dezembro de 1995, foi publicado, em segunda edição, Para el perfil definitivo del hombre, pela Editorial Letras Cubanas de La Habana. Nele estão reunidos vários trabalhos da produção ensaística do poeta Roberto Fernández Retamar.

         São trabalhos cujos temas apresentam uma certa homogeneidade e, como o próprio autor sintetiza na Nota a esta segunda edição, tratam do pensamento e da obra de José Martí e do Che Guevara; da formação da intelectualidade na nova Cuba; da América Latina em relação aos outros países; do mundo visto a partir da América Latina; de certas idéias sobre teoria literária. Longos e perspicazes, nesses trabalhos sobressai uma coerência ideológica que irá nortear indagações e reflexões.

          Roberto Fernández Retamar não é apenas um incondicional defensor da Revolução cubana, mas um intelectual pleno de convicções cuja obra Abel Enrique Prieto, que assina o prólogo de Para un perfil definitivo del hombre, diz tratar-se de uma das mais apaixonantes trajetórias reflexivas da literatura revolucionária.
         
          Na primeira parte de seu ensaio, “Algunos problemas teóricos de la literatura hispanoamericana”, ele começa chamando a atenção para a incongruência que existe em continuar a abordagem da Literatura latino-americana com o aparato conceitual forjado a partir de outras literaturas.

          E, assim, quando sugere aos homens de letras cubanos que se sintam situados na América hispânica e pensem, trabalhem, escrevam como hispano-americanos, está enunciado uma válida consignação para todos os intelectuais do Continente.
         
          Porque ninguém ignora como a grande maioria deles se submete, prazerosa e sôfrega, às influências forâneas. E no que se refere à aproximação ao texto literário, é notório o atrelamento às teorias críticas importadas.

          Talvez, muitos não se dêem conta que estão sendo colonizados e, talvez, menos, das conseqüências que dessa colonização, certamente, advém.

domingo, 10 de novembro de 1996

E falando de "quitrín"

          É um breve livro encantador, escrito para fixar, ainda que em grandes traços, a história do “quitrin”, essa carruagem eminentemente cubana, indispensável em La Habana das primeiras décadas do século.


          O autor, Idelfonso Estrada y Zenea, que viveu entre 1826 e 1912, além de El quitrin, escreveu poemas e o romance El guajiro.A ele se deve, também,  a introdução dos jardins de infância em Cuba.
         
          El quitrin é construído em quatro partes: a primeira descreve detalhadamente a carruagem com suas imensas rodas e seu forro de diversas cores; na segunda e na terceira, também detalhadamente, aquele que o conduzia, o “calecero” particular e o de aluguel. E, na quarta parte intitulada “episódios”, narra aqueles relacionados com o “quitrin”: um nascimento, um assassinato, uma disparada do cavalo assustando seus viajantes, um padre e um sacristão. E o episódio que estaria perfeito para representar uma comédia de costumes se não fosse feito de pequenos dramas: trata do casal do interior que, enriquecido, se muda para a capital e nesse intuito de ostentação que tão bem caracteriza os novos ricos, acredita ser absolutamente necessária a posse de um “quitrin”. A carruagem é comprada e providenciados os cavalos e os homens para guiá-la. No dia em que seria estreada, porém, sucederam-se os incidentes e os acidentes e, embora cheio de jóias e de luxos e de boas intenções de ir à missa, a dona do “quitrin” teve de se resignar a voltar para casa sem ter ido a lugar algum.

          O texto de Idelfonso Estrada y Zenea, combinando o tragi-cômico com uma jocosa crítica de costumes, se constrói em dois tons. Um deles constituído de rápidas frases informativas que narram a ascenção social de Juana e Liborio e a sua ida para a cidade:

E vieram.
E compraram uma magnífica casa para viver.
E outras várias casas mais eles compraram.
E dom Libório se meteu a ser usurário.
E de tudo aproveitavam.
Mas não tinham “quitrin”.
E Juana disse a dom Liborio que era preciso ter “quitrin”.
E dom Liborio disse que sim.
E comprou o “quitrin”.
Mas, faltavam os cavalos [...]

          Num tom narrativo lento, mas igualmente corrosivo na descrição dos tipos e de suas ações, o texto que completa a história: como eles se vestem – e o casaco e bengala de punho de ouro, e sapatos novos de verniz, e lenço de cambraia encharcado em água de colonia e brincos de brilhante e pregador de ouro e anéis de valor nos dedos – e como agem em relação a seus escravos, parecendo deles ignorar a condição humana.

          E o pequeno livro que se propunha contar a história do “quitrin” e dizer como ele era, também fala de usos correntes na época. E de ambições, de vaidades e de ridículos. E dos pobres que disso tudo sofrem as conseqüências

domingo, 3 de novembro de 1996

A outra Rayuela

          E´muito pequena, clara e alegre. Foi inaugurada, na Casa de las Américas, no dia 9 de outubro de 1995 e, em homenagem a Julio Cortázar se chama “Rayuela”. Nas suas estantes, uma verdadeira riqueza: aqueles sonhados livros que fronteiras culturais intransponíveis impedem a leitura. E é isto que a livraria se propõe, oferecer os títulos que estão no Catálogo Editorial da Casa de las Américas. Várias coleções e em cada uma, um número muito grande de autores. Na sua ficção, poesia, ensaio, testemunho, se mostra a América inteira. Sempre uma produção enraizada neste Continente que, embora se desconhecendo, na típica indiferença de uns em relação aos outros, mantém, no entanto, os olhos voltados para o norte como se ele fosse um definitivo farol. Ou, uma produção feita daquelas obras já conhecidas – também no Brasil onde foram traduzidas -  entre as quais As veias abertas da América Latina, Maluco, Meu nome é Rigoberta Menchu, A morte de Artemio Cruz, Cem anos de solidão; ou, sobretudo, de muitas outras cujas inegáveis qualidades justificariam de per si uma real divulgação. No Brasil, ela não acontece, certamente, devido ao atrelamento cultural ao qual o país se submete; permanece, assim, privado de conhecer uma excelente criação ficcional, uma instigante obra ensaística e testemunhal enquanto nas suas livrarias pululam medíocres best sellers ou obras que pouco tem a ver com uma realidade que está longe de se parecer com aquela tão invejada, a dos países de consumo.

         Então,  na medida em que, no Continente, os países continuarem a se considerar – e o Brasil, inclusive – uma ilha que só tem olhos para aqueles tidos como do Primeiro Mundo, deverá, sem dúvida, ter sentido refletir sobre o quão lamentável é esse desconhecimento de uma Literatura que, pelos seus temas, pelas suas conquistas formais e pelo compromisso que mantém sempre com a realidade circundante, se mostra valiosamente bela, crítica e inspirada.
           Assim, na medida em que, no Continente, os países continuarem a se considerar – e o Brasil, inclusive – uma ilha que só tem olhos para aqueles tidos como do Primeiro Mundo, deverá, sem dúvida, ter sentido refletir sobre o quão lamentável é esse desconhecimento de uma Literatura que, pelos seus temas, pelas suas conquistas formais e pelo compromisso que mantém sempre com a realidade circundante, se mostra valiosamente bela, crítica e inspirada.

            Assim, para aqueles que se dão conta que o universo do Continente difere daqueles outros considerados padrões, para quem a leitura também quer dizer conscientização e aprendizagem, ao invés de uma simples alienação de passa-tempo, conhecer o acervo de Rayuela (em meio ao qual se misturam as camisetas com estampa da Casa de las Américas, os CDs de música cubana, os cassetes com vozes de intelectuais, os cartões postais) é uma descoberta.
           Quase na frente do mar, a poucos metros do Malecón, na esquina da 3ª com a G, “Rayuela” é como um baú de tesouros finalmente encontrado e então, lugar de prazerosa chegada nesta La Habana de mil surpresas.

domingo, 27 de outubro de 1996

Os recursos do dizer . 3


              Em 1973, foi publicado pela Noguer de Barcelona; El Hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett. Faz parte do que a historiadora francesa Jaqueline Covo chamou, a respeito de sua obra, a trilogia da conquista: romances que refazem na ficção a crônica oficial desse adentrar-se dos espanhóis em terra da América, no século XVI. No seu quarto e último capítulo é narrada a chegada do capitão Francisco de Aguirre à cidade de Barco, seu encontro com o governador da cidade, Juan Nuñez de Prado que então é preso e desterrado.
 
          O que então ocorreu ficou registrado na Crônica da Conquista: a fundação de uma cidade e suas quatro mudanças antes de ser Santiago del Estero. No romancista, o propósito de relatar fielmente os fatos, submetido às fontes históricas que o uso de recursos narrativos e estilísticos transformaram numa belíssima obra de ficção.
          Em El hombre que trasladaba las ciudades, os personagens serão fixados em rápidos traços que se referem menos ao físico que a estados de alma. O cenário irá se diluir na neblina e na distância e os ruídos da natureza se mesclarão aos ruídos efêmeros da vida cotidiana dos recém chegados.         

Neste registro de imagens e de vida em movimento, expresso pela conjunção alternativa ou, se fará presente o impreciso. Ele estará nos estados de alma, na indicação de um espaço ou numa notação temporal.A voz narrativa mostrará, por vezes, o personagem entre dois sentimentos, entre duas verdades: furioso ou melancólico; pregando a felicidade ou a desgraça; mostrando desprezo ou restos de doença; suspirando por uma trança ou sorriso ou pezinho; vitimado pelo terror ou frio ou dúvida. Também os mostrará entre duas ações: se eles advertem ou perguntam, se escutam ou relembram, se o padre admoesta, ou absolve ou excomunga.


            Antropomorfizadas, a bandeira e as medalhas do padre Carvajal, igualmente serão regidas pelo signo da alternativa. A bandeira, pressagiando algo de bom ou de terrível; as medalhas que tilintavam quando da agressão por parte dos soldados ao padre, querendo ser punhais ou saquinhos de veneno, isto é, instrumentos de defesa.
          Essa imprecisão se mostrará igualmente na indicação do espaço (no meio do ruído da selva ou das conversas) e do tempo (até a Páscoa ou a próxima Quaresma). Junto com as dúvidas que assaltam Juan Nuñez de Prado (quantas carretas se moviam sob a chuva? Quantos doentes havia na cidade?) e com suas indecisões (enforcar ou não os dissidentes, matar ou não os enfermos), essas imprecisões darão ao texto uma ambigüidade que, sem negá-lo, diluem os contornos do fato histórico, cristalizado pelo linguajar oficial.

          E, assim, colmam de vida, com tudo o que ela tem de transitório, a ação dos primeiros ibéricos no Continente. Ao mostrá-los nas suas inseguranças e fraquezas, nas suas certezas que nem sempre correspondem às verdades, desenham perfis: o dos que foram instrumento da vontade maior ou o dos que dela foram vítimas.

domingo, 20 de outubro de 1996

Os recursos do dizer. 2



              Em 1973, foi publicado pela Noguer de Barcelona; El Hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett. Faz parte do que a historiadora francesa Jaqueline Covo chamou, a respeito de sua obra, a trilogia da conquista: romances que refazem na ficção a crônica oficial desse adentrar-se dos espanhóis em terras da América, no século XVI. No seu quarto e último capítulo é narrada a chegada do capitão Francisco de Aguirre à cidade de Barco, seu encontro com o governador da cidade, Juan Nuñez de Prado que é, então desterrado.
 
Na riquíssima expressão de que é feito o romance El hombre que trasladaba las ciudades, o recurso mais prodigamente usado é a repetição. E de maneira obsessiva como o comprova, nas quarenta e quatro páginas que formam o último capítulo, o número de palavras repetidas: ao redor de cento e oitenta ou seja, uma média de quatro por página.
Carlos Droguett repete adjetivos, advérbios, conjunções, demonstrativos, numerais, preposições, substantivos. Destes, cerca de oitenta. Palavras que se repetem, uma após a outra, na fala de um personagem: rostos,rostos,rostos,olhos,olhos,olhos. Ou que se seguem imediatamente às anteriores, separadas por vírgula, constituindo-se a segunda parte da oração seguinte:viram as luzes, as luzes das tochas passear entre as árvores.

Aparecem expressões repetidas mas separadas por uma oração: Chorava silenciosamente, iria soluçando ainda, afundado na sela, entre a roupa, tiritando de febre e solidão, adormecido entre suas lágrimas, suando de febre e solidão. Ao repetir advérbios, pode fazê-lo de maneira chã ao usar, por exemplo, o advérbio muito na expressão  muito alto e muito só, quando o achado estilístico se mostra em relação ao sujeito e ao predicado da frase:  o sino da igreja se queixava lentamente a essa hora, muito alto e muito só, numa antropomorfização da igreja a se queixar na solidão. Também pode parecer trivial o emprego de advérbios em mente. No entanto ,ainda que modifiquem adjetivos de uso corrente, oferecem significados inusuais ao agrupar elementos díspares: galopavam outros cavalos, cuidadosamente ocupados, cuidadosamente retidos por mãos e por insultos. E existe a repetição de um adjetivo cujo sentido fica mais forte pelo complemento nominal a lhe conferir significados que, embora distintos, completam a situação dos soldados: soldados mortos de fome e mortos de hediondez.

Casos há em que a primeira palavra, no caso um substantivo, é completada por um adjetivo e a segunda por um complemento nominal, mediando, entre elas, sentenças narrativas: sussurro medroso [...] sussurro de alívio. Ainda, a presença do possessivo numa enumeração que pretende dizer do ódio  (talvez) sentido pelo personagem. Ódio que estaria  na sua cabeça, no seu cabelo, na sua memória, na sua garganta, na sua roupa, no seu peito, nas suas coxas, nos seus rins, na sua arrogância, nos seus torpes desejos de ambição ou vingança.

Tais como estas observações, concernentes às categorias gramaticais e ao lugar que elas ocupam na frase sobre as palavras que se repetem, outras podem, igualmente, serem feitas, considerando os sentimentos e as ações de personagens. Muitas vezes, elas são assaz ricas tanto quanto à expressão pleonástica como à nuança psicológica que pelo agir e pelo sentir esboça  perfis. Assim, o capitão  Aguirre, afrontando Ardiles, o outro capitão, lhe toma a espada – teria gostado de embrabecer, teria gostado de embrabecê-lo – e numa expressão verbal repetida, expressa duas vontades: a que lhe seria pertinente e a que desejaria provocar no outro.  Também, ao responder para o capelão que o increpa sobre seus desígnios, pretensamente justos, ele responde:  a alguém matarei, mas não sem justiça e não sem ódio, a ninguém matarei que não mereça ser assassinado. Há casos, ainda, em que a palavra está  na voz do narrador e ao ser repetida, na voz do personagem: Guevara olhou suas mãos e disse olha minhas mãos.

Usado com perfeição, trata-se de um recurso que adquire um maior significado se for considerada a estrutura da obra na qual ele se inscreve: repetitiva nesse fazer e desfazer da cidade que é o tema do romance: uma história louca que o romancista encontrou nas Crônicas da Conquista da América: Juan Nuñez de Prado funda com 60 soldados a cidade de Barco em território que Valdívia pretendia estar sob sua jurisdição. Para fugir a ela, Juan Nuñez de Prado muda a cidade mais para o leste. No entanto, deserções, ataques de índios e más colheitas o levam a efetuar uma nova mudança, levando a cidade para mais longe.

Daí uma estrutura romanesca enlaçada no anseio sempre renovado do capitão Juan Nuñez de Prado de levar a cidade mais adiante.  No repetir-se a sua mudança, mudança que é oriunda do imperativo inescrutável da vontade humana, o dizer do romance, em uníssono com o que narra, se faz igualmente repetitivo.

Um todo, como uma grande metáfora da História do Continente sempre feita das trágicas repetições.

domingo, 13 de outubro de 1996

Os recursos do dizer. 1


              Em 1973, foi publicado pela Noguer de Barcelona; El Hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett. Faz parte do que a historiadora francesa Jaqueline Covo chamou, a respeito de sua obra, a trilogia da conquista: romances que refazem na ficção a crônica oficial desse adentrar-se dos espanhóis em terras da América, no século XVI. No seu quarto e último capítulo é narrada a chegada do capitão Francisco de Aguirre à cidade de Barco, seu encontro com o governador da cidade, Juan Nuñez de Prado que é, então desterrado. 
 
          Alain Sicard, professor da Universidade de Poitiers, França, no Colóquio que essa Universidade realizou em maio de 1982, sobre a obra de Carlos Droguett, ao falar sobre a paixão da escrita que sempre dominou o escritor chileno, o define como um apaixonado louco pelas sinuosidades do idioma.Afirmativa que, sem dúvida, é exata e pertinente para definir o autor de uma expressão lingüística que faz de El hombre que trasladaba las ciudades uma das mais belas e perfeitas obras escritas neste século e cuja riqueza formal, emergindo de cada um dos recursos, ainda que o mais simples e despretensioso, como o uso da comparação, é imenso.



           Nas quarenta e quatro páginas que compõem o quarto, último e o mais breve capítulo do romance, elas se destacam, sobretudo, pelo inusitado da composição.  As comparações que se referem à qualidades ou à ações, como as citadas por Wolfgang Kayser na sua obra Interpretación y análisis de la obra literaria, no romance de Carlos Droguett, por vezes,  são bastante breves : clara e delgada como uma facada,  cavalo inteiramente seco, penteado e lustroso como se o houvessem fabricado para ele. Na verdade, sobressaem aquelas de forma detalhadas, lembrando as comparações épicas, próprias dos longos poemas clássicos. É o caso desta, em que o elemento real, as carretas, se confronta com vários elementos imaginários, ainda que seja possível se tornarem realidade: foi caminhando apressado, olhando com dissimulação as carretas, com duvidoso e vago desassossego, como se estivessem cheias de ameaças visíveis e prováveis, de índios pérfidos, de sujos traidores que surgiriam sigilosos delas, de qualquer noite, quando tivesse se pacificado o medo, a solidão, o silêncio que haviam deixado na cidade a prisão e o destino de Juan Nuñez de Prado.

          De maneira dispar, se constrói a comparação em que um elemento, respiração, é confrontado com: fumaça da terra, perfumes, plantas, flores, raízes ao qual se acrescenta, ainda, uma condição circunstancial: raízes quando vem rompendo alegres ou pesarosos os torrões e empurrando as pedras porque amanhã, dentro de três dias, será primavera.

          Em outro caso, o primeiro elemento algo indefinido, coisas concretas, se confronta, três vezes, sempre introduzido pela palavra como com dois elementos objetivos, reais (carne, sangue) significando corpo e outro elemento abstrato, significando sofrimento. Nessas três vezes, a expressão por exemplo reafirma o coloquial do texto, um fluir da consciência do padre Carvajal ao ser amarrado e golpeado pelos soldados do capitão Francisco de Aguirre que chegou na cidade para exercer a justiça: coisas concretas como tua carne, por exemplo, como teu sangue, por exemplo, como teu sofrimento, por exemplo.

          Verdadeiramente diluídas no texto de El hombre que trasladaba las ciudades, essas comparações não se constituem a marca primeira da escrita de Carlos Droguett. No entanto, em acorde com o todo ao qual pertencem, são prova de uma capacidade inventiva que se alimenta do denso e do afetivo porque nesse escrever da História da América é do homem e de seu trágico destino no Continente que o escritor chileno está a falar.

domingo, 6 de outubro de 1996

Carlos Droguett : In Memoriam

          ... um pouco depois das dez da manhã, manhã inteiramente hibernal e suiça, grande frio, uns cinco graus abaixo de zero, céu na realidade mais cheio de bruma do que de nuvens, esse ambiente implacável e trágico que deixava louco o louco Nietzsche quando magnificamente se queixava... eis aqui o outono que nos fere o coração com sua espada de gelo... escrevia numa carta do dia 7 de dezembro de 1995 o romancista Carlos Droguett.

Desde 1975, ele vivia em Berna num exílio sem retorno. E, nesse espaço alheio, escrevia desesperadamente – nunca escreveu tanto como no exílio – sobre o que acontecera no seu país a partir do dia 11 de setembro de 1973 quando grandes textos seus já haviam sido publicados.


Queria dar voz a esses chilenos que não saíram ou não puderam sair do país e que nos dois anos em que ainda permaneceu no Chile teve o privilégio de conhecer: testemunhas do que então ocorria, alguns desses heróis que, como estava programado pelo fascismo, deveriam morrer na tortura ou se desvanecer na outra morte natural dos gorilas, o desaparecimento.

Em “Literatura do Exílio”, fala desses homens que enfrentaram a delação, a prisão, a tortura, o desaparecimento, o assassinato e que em lugar de se desesperar, de se anular, em lugar de emudecer para sempre, deixaram uma luz, uma palavra, um rastro balbuciado de seu padecimento: os artistas natos que falam, sonham, esperam, escrevem resgatando experiências que não saíram do tinteiro mas dos terríveis e humilhantes sofrimentos das perseguições e dos cárceres. Também, daqueles que, diante da morte, foram levados a usar uma ferramenta que não era a sua, o idioma, para deixar, ainda que escrevendo uma única vez, a marca de sua alma antes de serem conduzidos ao extermínio.

Nesse momento em que refletia sobre a Literatura do exílio que medrava pelo mundo afora e sobre o seu valor, para Carlos Droguett era uma certeza que das palavras originadas do padecimento extra-literário e extra-artístico irão nascer os novos escritores do Chile: vozes sem uso e sem cansaço que irão construir, quando o fascismo já tiver desaparecido, a ressurreição do país.

E os anos se passaram e diluíram-se as esperanças.

No exílio, em Berna, no amado e odiado exílio, Carlos Droguett, que um dia esperara retornar ao Chile, morreu no dia 30 de julho de 1996.

domingo, 29 de setembro de 1996

O diálogo

            O cotidiano de Canudos. As lutas, a fé, os trabalhos, a morte. La Guerra del fin del mundo conta a saga desses deserdados se agrupando em torno de Antonio Conselheiro. Entremeado a esse relato, duro e trágico, a conversa entre o Barão de Cañabrava e o jornalista.

No romance de Mario Vargas Llosa, ele é chamado de o jornalista míope. Trabalhava para o Jornal de Notícias quando pediu para ser enviado a Canudos junto com o Coronel Moreira Cesar.

Após o extermínio da cidade, volta a Salvador mas se recusa a continuar trabalhando para o jornal porque a condição, para que isso acontecesse, era esquecer Canudos. Resta-lhe procurar o Barão, dono do Diário da Bahía.

Um longo diálogo se estabelece entre aquele que é rico e poderoso e o outro, um esquálido e envelhecido jornalista que pede trabalho para ajudar um amigo doente e para poder comer.

Meses já se haviam passado e o Barão só deseja tudo esquecer. O jornalista não quer permitir o esquecimento.

Nesse tempo em que durou o diálogo – o sol iluminava a manhã quando o jornalista chegou e era já noite avançada quando foi embora - o Barão lutou para vê-lo terminado e seu interlocutor para que não se esfacelasse.

Na estrutura do romance, dividido em quatro partes, esse diálogo é o texto que inicia cada um dos capítulos da quarta parte. Interrompido, ele recomeça cada vez com um tema diferente: o esquecimento a que deve ser fadado Canudos, as informações contraditórias ou falsas veiculadas pela imprensa, o destino dado ao cadáver de Antonio Conselheiro, o amor do jornalista por Jurema. E é seguido pelos episódios que relatam os últimos dias de Canudos: as tragédias da luta, suas misérias e suas mortes.

No gabinete do Barão, separado do mundo pelas cortinas fechadas, o tempo transcorrido que esmaece os sentimentos, a emoção de cada um dos interlocutores e o que se passou distante das lutas, diluem a realidade.

Essa alternância do diálogo que procura entender ou explicar com a narrativa dos fatos apresenta-se, então, como um recurso narrativo hábil e pertinente aos instituir em meandros um paralelo entre o que foi chamado de reino do obscurantismo e as idéias dos bem pensantes ou dos que se acreditam como tal.

Evidencia, principalmente, a distância que existe entre o mundo dos deserdados e aquele das palavras e das considerações.

domingo, 22 de setembro de 1996

Convicções

           Galileo Gall é um escocês cujas idéias políticas revolucionárias o levaram a se empenhar em ações pouco tradicionais e a sofrer prisões e a ser condenado à morte. Sempre delas conseguiu fugir e assim chegou às costas da Bahía. Radicado em Salvador, passou a viver de aulas particulares e de efêmeros trabalhos. Para um jornal publicado em Lyon, na França, L’étincelle de la révolte escrevia artigos tratando de sua vivência – a Bahía enfrentava Canudos e ele se entusiasmou pelo que lá se passava – no Novo Mundo.

No primeiro artigo (ou carta), ele comenta algumas das orientações de Antonio Conselheiro a seu grupo,  nele fala de um novo interlocutor, desta vez, um homem que participou das lutas.

O encontro entre eles se deu num povoado perdido. O outro, baixo e maciço, com uma cicatriz no rosto, revelando um passado de capanga, de bandido, de criminoso. Vestido de couro, tinha o chapéu na cabeça e nas mãos a espingarda.

Nas suas certezas, proferiu uma estranha diatribe contra a República. Com profunda segurança, sem assomo de paixão foi afirmando que a República se propõe oprimir a Igreja e os fiéis e acabar com as ordens religiosas, restaurar a escravidão. E prova disso é ter instituído o casamento civil, a cobrança de impostos, o censo.

Diante das considerações que então fez o europeu e diante de suas perguntas, o homem de Canudos recita: os soldados não são a força do governo mas a sua fraqueza; quando tal se torne necessário, as águas do rio Vassa Barris se transformarão em leite e suas margens se transformarão em cuscuz de milho e os jagunços mortos irão ressuscitar para a chegada do exército do rei Dom Sebastião.

Galileo Gall define suas palavras como absurdas. Acabara de lhe dizer que abolir a propriedade e o dinheiro e estabelecer uma comunidade de bens, feita em nome do que seja, ainda que em abstrações, é algo de atrevido e valioso para os deserdados do mundo, um começo de redenção para todos. E que essas medidas, desencadearão contra eles, cedo ou tarde, uma dura repressão pois a classe dominante jamais permitirá que se multiplique semelhante exemplo: neste país há pobres de sobra para tomar todas as fazendas.

Em nenhum momento, porém, o homem de Canudos demonstrou entender o que o europeu, com seu acervo e com suas idéias revolucionárias pretendia lhe dizer. No relato de Mario Vargas Llosa o que pensou dessas palavras que lhe eram dirigidas permanece desconhecido, parte dessas zonas de sombra que abundam em La guerra del fin del mundo; de Galileo Gall, as dúvidas são expressas porque ele as enuncia para os leitores de L’étincelle de la révolte: são os diabos, os imperadores, os fetiches religiosos peças da estratégia utilizada pelo Conselheiro para lançar os humildes no caminho da rebelião contra a base econômica, social e militar da sociedade classista? São os símbolos religiosos, míticos, dinásticos, os únicos capazes de sacudir a inércia das massas submetidas há séculos à tirania da Igreja e por isso os utiliza o Conselheiro? Imagina ele o transtorno histórico que está provocando? Ele é um instintivo ou um astuto?

Sem dúvida, entre Galileu Gall  e seu interlocutore, a distância era muita. E as palavras que trocaram seguiram caminhos paralelos embora em certos momentos possam ter tido um sentido igual ou semelhante: o desejo de paz e de justiça para todos.

domingo, 15 de setembro de 1996

O silêncio.

             Em 1981, foi publicado La guerra del fin del mundo de Mario Vargas Llosa. E´ a guerra de Canudos, uma árvore de histórias. As desses miseráveis que se foram juntando ao grupo de Antonio Conselheiro, as desse viver cotidiano em torno dele – a rezar e a reconstruir cemitérios e igrejas – as das lutas travadas contra o exército da República. Paralelamente, um diálogo de muitas horas entre o Barão de Cañabrava e um jornalista.

Iniciara-se, apenas, por um pedido de emprego e se prolongou pela atração que o assunto Canudos exerceu sobre um, aquele que desejava saber e o outro que precisava contar o que acontecera.

Estão se esquecendo de Canudos, ele disse. Ao que o Barão responde: É um episódio desgraçado, turvo, confuso. Não serve. A história deve ser instrutiva, exemplar. Nessa guerra, ninguém se cobriu de glória. E ninguém entende o que aconteceu. As pessoas decidiram baixar uma cortina. É sábio, é saudável.

Para ele, Barão, no entanto, isso é impossível. O simples olhar para o jornalista e dar-lhe a mão, quando chegou, lhe trouxe à memória o que há meses tratava de esquecer: o incêndio na sua fazenda, a crise de loucura de sua mulher, o abandono da vida pública. Um passado a ressuscitar quando desejava que desaparecesse. Não queria escutar, não queria saber e, por inúmeras vezes, tentou interromper as palavras do outro, olhando para ele duramente, levantando-se para dar por terminada a visita, dizendo nada desejar ouvir sobre Canudos. Mas, ao mesmo tempo, querendo escutar e, submetendo-se à voz do jornalista que tudo presenciara e não queria permitir que fosse esquecido.

Ao voltar de Canudos, onde fora como correspondente, procura respostas para o que lá havia visto e aquelas que encontra nos jornais são monocórdicas: hordas de fanáticos, sanguinários abjetos, canibais do sertão, degenerados da raça, monstros desprezíveis, escória humana, infames lunáticos, filicidas, taradas da alma.

Também percebe na atitude de outras testemunhas a inexplicável incongruência que é não ver o que está diante dos olhos mas somente o que foi dito que deveria ser visto. E percebe essa conspiração da qual todos participaram para negar ou para afirmar o que era de conveniência para a República e do interesse de seus mandatários sobre os homens de Canudos.

Quando esses homens foram vencidos emudeceram-se todos sobre as perdas. E depois de terem sido mortos no grande massacre, eles morreram outra vez condenados pelo silêncio que se instalou. Sábio e saudável, dissera o Barão.

domingo, 8 de setembro de 1996

As palavras.


Mario Vargas Llosa é um autor de romances longos. Resultam de um magma, assim ele chama às centenas de páginas que seleciona, para se tornar a obra efetivamente desejada. Dessa maneira foi escrito La casa verde (um magma de quatro mil páginas) La ciudad y los perros (um magma de mil e quinhentas páginas). Certamente assim deve ter sido com La guerra del fin del mundo, romance de quinhentas páginas que giram em torno da figura de Antonio Conselheiro.

Nele, as paisagens se sucedem em surpreendentes descrições do sertão; as biografias dos discípulos de Antonio Conselheiro (o Leão de Natuba, João Satán, Maria Quadrado) tecem as malhas de destinos que se aglomeram a seu redor; os encontros belicosos traçam um intrincado desenho. Um todo que resulta em universos ricos de conceitos e de paixões, testemunhando o imenso trabalho de pesquisas que o antecedem. Testemunham, também, que só um conhecedor de seu ofício, como Mario Vargas Llosa, quando narra, quando descreve, quando inventa, pode, dar tanta  vida e tanta força ao  fato histórico que refaz na ficção

Suas palavras são combinadas sabiamente e na beleza que a maestria do escritor pode conceber num uso de valiosos recursos estilísticos que lhe permite ignorar fronteiras idiomáticas e desprezar purismos.

Nas páginas de La guerra del fin del mundo em perfeita harmonia com o texto original, estão palavras pertencentes ao léxico português. Relacionam-se com a paisagem (xique-xique, mandacaru, juazeiro, imbuzeiro, caatinga), com a comida (farofa, farinha, angu, cachaça, rapadura) e com os tipos que nessa paisagem imperam (jagunços, caboclos, cangaceiros, capangas).

Talvez elas sejam uma homenagem a esses outros textos que de alguma forma guiaram Mario Vargas Llosa  e, talvez, o tenham influenciado na concepção e na confecção da obra. Ou, a consciência de se constituírem essas palavras elementos imprescindíveis para tratar de um modo ímpar e agreste um mundo que lhe era até então desconhecido.

Sem a marca do grifo ou das aspas, elas se incorporam ao texto como se apenas elas pudessem expressar alguma parte desse mundo. E o autor, então, a elas se submeteu.