domingo, 22 de setembro de 1996

Convicções

           Galileo Gall é um escocês cujas idéias políticas revolucionárias o levaram a se empenhar em ações pouco tradicionais e a sofrer prisões e a ser condenado à morte. Sempre delas conseguiu fugir e assim chegou às costas da Bahía. Radicado em Salvador, passou a viver de aulas particulares e de efêmeros trabalhos. Para um jornal publicado em Lyon, na França, L’étincelle de la révolte escrevia artigos tratando de sua vivência – a Bahía enfrentava Canudos e ele se entusiasmou pelo que lá se passava – no Novo Mundo.

No primeiro artigo (ou carta), ele comenta algumas das orientações de Antonio Conselheiro a seu grupo,  nele fala de um novo interlocutor, desta vez, um homem que participou das lutas.

O encontro entre eles se deu num povoado perdido. O outro, baixo e maciço, com uma cicatriz no rosto, revelando um passado de capanga, de bandido, de criminoso. Vestido de couro, tinha o chapéu na cabeça e nas mãos a espingarda.

Nas suas certezas, proferiu uma estranha diatribe contra a República. Com profunda segurança, sem assomo de paixão foi afirmando que a República se propõe oprimir a Igreja e os fiéis e acabar com as ordens religiosas, restaurar a escravidão. E prova disso é ter instituído o casamento civil, a cobrança de impostos, o censo.

Diante das considerações que então fez o europeu e diante de suas perguntas, o homem de Canudos recita: os soldados não são a força do governo mas a sua fraqueza; quando tal se torne necessário, as águas do rio Vassa Barris se transformarão em leite e suas margens se transformarão em cuscuz de milho e os jagunços mortos irão ressuscitar para a chegada do exército do rei Dom Sebastião.

Galileo Gall define suas palavras como absurdas. Acabara de lhe dizer que abolir a propriedade e o dinheiro e estabelecer uma comunidade de bens, feita em nome do que seja, ainda que em abstrações, é algo de atrevido e valioso para os deserdados do mundo, um começo de redenção para todos. E que essas medidas, desencadearão contra eles, cedo ou tarde, uma dura repressão pois a classe dominante jamais permitirá que se multiplique semelhante exemplo: neste país há pobres de sobra para tomar todas as fazendas.

Em nenhum momento, porém, o homem de Canudos demonstrou entender o que o europeu, com seu acervo e com suas idéias revolucionárias pretendia lhe dizer. No relato de Mario Vargas Llosa o que pensou dessas palavras que lhe eram dirigidas permanece desconhecido, parte dessas zonas de sombra que abundam em La guerra del fin del mundo; de Galileo Gall, as dúvidas são expressas porque ele as enuncia para os leitores de L’étincelle de la révolte: são os diabos, os imperadores, os fetiches religiosos peças da estratégia utilizada pelo Conselheiro para lançar os humildes no caminho da rebelião contra a base econômica, social e militar da sociedade classista? São os símbolos religiosos, míticos, dinásticos, os únicos capazes de sacudir a inércia das massas submetidas há séculos à tirania da Igreja e por isso os utiliza o Conselheiro? Imagina ele o transtorno histórico que está provocando? Ele é um instintivo ou um astuto?

Sem dúvida, entre Galileu Gall  e seu interlocutore, a distância era muita. E as palavras que trocaram seguiram caminhos paralelos embora em certos momentos possam ter tido um sentido igual ou semelhante: o desejo de paz e de justiça para todos.

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