domingo, 22 de dezembro de 1996

Dois mundos

          Houve um momento, na década de 70, em que a busca de um novo instrumento para o estudo do texto literário levou à análise semântica aplicada à descrição da sociedade.

          No seu trabalho publicado na revista Littérature (Paris, 1971), “La description littéraire des structures sociales: essai d’une approche sémantique”, Ulrich Ricken mostra como o código de classificação social não se reduz às palavras como “pobre”, “rico”, “burguês” mas é feito, também, de expressões como “bem vestido”, “maltrapilho”, “faminto”, “o que janta bem”, etc.Num conjunto vocabular assim constituído, os termos referentes aos diversos critérios de classificação social formam sub-códigos que, respectivamente, cobrem zonas equivalentes de diferenciação sócio-hierárquicas.

          No seu romance Perversas famílias (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992), Luiz Antonio de Assis Brasil narra as conflitantes relações de uma abastada família do sul do Brasil que vive num castelo,  cenário de luxo e de requinte.  Um requinte ou um pseudo requinte que é estendido à mesa.
 
          Como era de uso na corte austríaca, de acordo com a baronesa que viera casar-se no Brasil, no castelo do pampa o cardápio mudava de acordo com o idioma permitido nesse dia. Nas terças e sextas feiras, porém, era dada a licença para falar português à mesa e não sendo desdenhada a cultura popular, eram servidos os “gordurosos quartos de ovelha” e o guisado com abóbora, alternando-se com os vol au vent e com os puddings.

          Igualmente, só era permitido apresentar-se com um traje adequado e, assim, Páris, o neto recém chegado, primeiro teve que passar pelas mãos do alfaiate para, então, poder jantar com a família .Recluído no seu quarto, levam-lhe arroz com feijão e um peito de frango numa simplicidade alheia ao que era servido para a família, mas encontrada na fazenda distante onde se comia pirão com um molho graxento ou rabada com batatas; ou, num hotel de cidade pequena em que o cardápio era composto de carne assada, aipim duro e feijão com charque.

          Uma dicotomia que se delineia com clareza: no castelo ou no palacete da cidade servem chocolate, torradas, leite com bolachinha Maria, bolo de milho e arroz doce, docinhos em travessa de porcelana, compotas, fios de ovos, ambrosias, bem casados, refrescos, café, vinho do Porto. Baixelas são usadas e cristais e guardanapos com monogramas presos em argolas de prata, candelabros e um serviço inglês – Wood & Sons Ltd, Burslem – para o cotidiano em que rosas pequenas e margaridas brancas e uma borda fininha e negra marcavam cada peça: a sopeira, as legumeiras, as travessas.Aos domingos, o almoço era servido numa louça da Companhia das Índias onde borboletas adejavam, coloridas, num campo rouge de fer sobre dourado perto do brasão da família a que a louça pertencera antes de ser vendida, num leilão, em Lisboa.

          Fortuna e vida fácil   convivendo com a pobreza e o trabalho. O dono do castelo a se rodear de luxo estrangeiro e de iguarias no sua mesa.  Na cozinha, no pátio da escola pública, num vagão de trem, o cocheiro, a menina pobre, os que viajam nos vagões comuns dos trens , comem mortadela com pão, “mata-fome”, galinha com farofa.  Ainda que em número pequeno e, talvez, até mesmo por isso, tais expressões ajudam a compor o quadro desse mundo de opulência e de ostentação de que é feito o romance de Luiz Antonio de Assis Brasil.

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