domingo, 20 de outubro de 1996

Os recursos do dizer. 2



              Em 1973, foi publicado pela Noguer de Barcelona; El Hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett. Faz parte do que a historiadora francesa Jaqueline Covo chamou, a respeito de sua obra, a trilogia da conquista: romances que refazem na ficção a crônica oficial desse adentrar-se dos espanhóis em terras da América, no século XVI. No seu quarto e último capítulo é narrada a chegada do capitão Francisco de Aguirre à cidade de Barco, seu encontro com o governador da cidade, Juan Nuñez de Prado que é, então desterrado.
 
Na riquíssima expressão de que é feito o romance El hombre que trasladaba las ciudades, o recurso mais prodigamente usado é a repetição. E de maneira obsessiva como o comprova, nas quarenta e quatro páginas que formam o último capítulo, o número de palavras repetidas: ao redor de cento e oitenta ou seja, uma média de quatro por página.
Carlos Droguett repete adjetivos, advérbios, conjunções, demonstrativos, numerais, preposições, substantivos. Destes, cerca de oitenta. Palavras que se repetem, uma após a outra, na fala de um personagem: rostos,rostos,rostos,olhos,olhos,olhos. Ou que se seguem imediatamente às anteriores, separadas por vírgula, constituindo-se a segunda parte da oração seguinte:viram as luzes, as luzes das tochas passear entre as árvores.

Aparecem expressões repetidas mas separadas por uma oração: Chorava silenciosamente, iria soluçando ainda, afundado na sela, entre a roupa, tiritando de febre e solidão, adormecido entre suas lágrimas, suando de febre e solidão. Ao repetir advérbios, pode fazê-lo de maneira chã ao usar, por exemplo, o advérbio muito na expressão  muito alto e muito só, quando o achado estilístico se mostra em relação ao sujeito e ao predicado da frase:  o sino da igreja se queixava lentamente a essa hora, muito alto e muito só, numa antropomorfização da igreja a se queixar na solidão. Também pode parecer trivial o emprego de advérbios em mente. No entanto ,ainda que modifiquem adjetivos de uso corrente, oferecem significados inusuais ao agrupar elementos díspares: galopavam outros cavalos, cuidadosamente ocupados, cuidadosamente retidos por mãos e por insultos. E existe a repetição de um adjetivo cujo sentido fica mais forte pelo complemento nominal a lhe conferir significados que, embora distintos, completam a situação dos soldados: soldados mortos de fome e mortos de hediondez.

Casos há em que a primeira palavra, no caso um substantivo, é completada por um adjetivo e a segunda por um complemento nominal, mediando, entre elas, sentenças narrativas: sussurro medroso [...] sussurro de alívio. Ainda, a presença do possessivo numa enumeração que pretende dizer do ódio  (talvez) sentido pelo personagem. Ódio que estaria  na sua cabeça, no seu cabelo, na sua memória, na sua garganta, na sua roupa, no seu peito, nas suas coxas, nos seus rins, na sua arrogância, nos seus torpes desejos de ambição ou vingança.

Tais como estas observações, concernentes às categorias gramaticais e ao lugar que elas ocupam na frase sobre as palavras que se repetem, outras podem, igualmente, serem feitas, considerando os sentimentos e as ações de personagens. Muitas vezes, elas são assaz ricas tanto quanto à expressão pleonástica como à nuança psicológica que pelo agir e pelo sentir esboça  perfis. Assim, o capitão  Aguirre, afrontando Ardiles, o outro capitão, lhe toma a espada – teria gostado de embrabecer, teria gostado de embrabecê-lo – e numa expressão verbal repetida, expressa duas vontades: a que lhe seria pertinente e a que desejaria provocar no outro.  Também, ao responder para o capelão que o increpa sobre seus desígnios, pretensamente justos, ele responde:  a alguém matarei, mas não sem justiça e não sem ódio, a ninguém matarei que não mereça ser assassinado. Há casos, ainda, em que a palavra está  na voz do narrador e ao ser repetida, na voz do personagem: Guevara olhou suas mãos e disse olha minhas mãos.

Usado com perfeição, trata-se de um recurso que adquire um maior significado se for considerada a estrutura da obra na qual ele se inscreve: repetitiva nesse fazer e desfazer da cidade que é o tema do romance: uma história louca que o romancista encontrou nas Crônicas da Conquista da América: Juan Nuñez de Prado funda com 60 soldados a cidade de Barco em território que Valdívia pretendia estar sob sua jurisdição. Para fugir a ela, Juan Nuñez de Prado muda a cidade mais para o leste. No entanto, deserções, ataques de índios e más colheitas o levam a efetuar uma nova mudança, levando a cidade para mais longe.

Daí uma estrutura romanesca enlaçada no anseio sempre renovado do capitão Juan Nuñez de Prado de levar a cidade mais adiante.  No repetir-se a sua mudança, mudança que é oriunda do imperativo inescrutável da vontade humana, o dizer do romance, em uníssono com o que narra, se faz igualmente repetitivo.

Um todo, como uma grande metáfora da História do Continente sempre feita das trágicas repetições.

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