domingo, 25 de dezembro de 2005

O preço da utopia


Salvo aqueles que, ao longo dos anos têm se apropriado, ilegitimamente, das riquezas do Continente, a maioria de seus habitantes sempre esteve à deriva, dona somente de ausências. Porque nunca deixou de lhe ser negado esse mínimo que deveria ser direito de todos para viver com dignidade. Como lhe tem sido, também, negado, almejar tais direitos. Daí ser muitíssimo sugestivo o título do livro de Celso Lungaretti que a Geração Editorial de São Paulo lançou em outubro deste ano: Náufrago da utopia. Pois não apenas expressa o estado de espírito de seu autor como o de muitos latino-americanos que tentaram mudar o destino do Continente e foram massacrados pela repressão; ou, poupados, por sorte ou por circunstâncias, viveram para presenciar os descalabros da miséria, cada vez maior, que reina nos seus paises e das injustiças como norma, resultado das supremas incompetências e dos paroxismos da corrupção de seus governantes. 

            Se, de certa forma, o sub-título do livro, “Vencer ou morrer na guerrilha aos 18 anos” sintetiza e restringe o seu assunto, o que nele é narrado vai muito além de uma experiência individual.

            Escritor, poeta, jornalista a construção de seu relato e o escorreito da linguagem revelam alguém que sabe usar o seu instrumento de trabalho. Dividida em três partes, a narrativa é feita na terceira e na primeira pessoa. Ao tratar do movimento estudantil e da luta armada, não lhe pareceu apropriado – assim Celso Lungaretti o explica – colocar-se como protagonista; ao narrar as torturas sofridas, não se sentiu à vontade para fazê-lo na primeira pessoa que usa, então na terceira parte do livro, quando retoma o controle de sua vida na luta empreendida para esclarecer os episódios que, em 1970, o transformaram num renegado. Opção pessoal que, instigante, dá ao texto algo de ficcional tanto quanto o dinamismo do ritmo narrativo, conferido pelo uso do presente para relatar fatos do passado. Recursos que, juntamente com a linguagem sóbria (raras vezes cede à emoção e se permite um comentário mordaz) estão a serviço de uma tocante narrativa: o caminho percorrido por um jovem que escolhe a luta armada para se opor à ditadura militar vigente e a suas diretivas e que, preso e torturado, atingiu o limite de resistência e cedeu ao ser obrigado a escrever uma carta de renúncia as suas convicções e a dar uma entrevista, dizendo o que lhe ordenavam com armas na mão. E, ainda, ser considerado um delator pelos companheiros de luta e, como tal, responsável pela derrota da guerrilha.

            Denso testemunho sobre uma História que a História Oficial quer ignorar, sepultando-a no silêncio e que Celso Lungaretti torna próxima, mostrando combatentes não como heróis, mas como pessoas passíveis de grandezas e de fragilidades. Vislumbram-se os pusilânimes, os medrosos, os oportunistas, os preconceituosos, os politiqueiros, os temerários, os honestos, os bons companheiros, os que,verdadeiramente, são movidos por ideais. E, assim, também, um testemunho sobre as relações humanas com suas invejas e vaidades que o ideal não é suficiente para vencer. Evidenciam-se, as rivalidades, as bravatas, a arrogância dos que se acreditam intelectuais. E as retóricas inúteis, as dissidências, que, juntamente com a  falta de organização, o seguimento de modelos alienígenas, a inexistência, por falta da instrução militar necessária à luta armada, tornavam mais difícil atingir resultados. E, ainda, o doloroso testemunho desse tempo que passou nos cárceres da ditadura, em que a prepotência e o arbítrio, em nome de verdades ou, mais precisamente, em nome de nada, feriam e ultrajavam e matavam os militantes.

            Mas à juventude é permitido acreditar na utopia. Celso Lungaretti, almejava, como tantos, construir uma sociedade nova. Tinha dezoito anos e lhe era inimaginável prever o preço que pelos seus sonhos ele iria pagar.

domingo, 18 de dezembro de 2005

"A esperança é de cristal"


             Há trinta anos atrás, prêmio Casa de las Américas, La canción de nosotros vinha à luz, em edição da Editorial Sudamericana, de Buenos Aires. Eduardo Galeano era, então, diretor da revista Crisis e já havia publicado Las venas abiertas de América Latina e um livro de contos, Vagamundo. Depois, se seguiriam Dias y noches de amor y de guerra, Memorias del fuego, Patas arriba e Bocas del tiempo além da sua vasta e constante obra jornalística.


             Mestre da narrativa curta, La canción de nosotros é uma exceção entre os seus textos. Romance, panfleto, testemunho ou documento histórico – desnecessário dar-lhe um rótulo pois seu autor não desejou fazê-lo e, certamente, não faltarão teóricos que disso se ocupem – mais pertinente  é se ater a seus temas ou a seu tema central. Obra escrita num momento cruciante para os países latino-americanos, está em uníssono com uma grande parte da sua ficção, quando descreve caricaturalmente o opressor (Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos) e, tragicamente, o oprimido (José Maria Arguedas,, Manuel Scorza, Carlos Fuentes, Miguel Angel Asturias).

            O livro, dedicado a Montevidéu, se inicia com um poema e se constrói, sobretudo, a partir de dois destinos: Marino e Ganapán. Entre eles, Fierro. Não mais o de José Hernández porque esse levantou a sua voz, mas um Fierro cuja opção política só o pode aniquilar, por irreversível e porque a repressão dificilmente abre mão de sua presa. Ao redor dos três, os famintos, os marginais, os desempregados. E, dominando a cidade nos seus habitantes, “a máquina”: retrato fiel (e/ou melhorado) ou simples herança daquela que dominou a América Latina no século XVI e seguintes e de cujos feitos Eduardo Galeano extraiu a matéria dos capítulos “El Santo oficio de la Inquisición”: A máquina que tortura, que aniquila, que mata e que, se não se constitui o cerne da obra, é expressão convincente do que em muitas reuniões internacionais se define como atentado aos direitos do homem.

            No relato, Mariano, jovem jornalista de parcos recursos, sente-se realizado apenas em escrever a verdade. Esta escolha – desde os tempos imemoriais, rejeitada pelo poder – ou sua amizade com Fierro, levam-no à prisão.

            Ganapán, criado num orfanato, ex-operário sem trabalho e que, segundo ele próprio, veio ao mundo para sofrer (Nasci torto ou me puseram mau-olhado), encontra Mariano ferido entre as macegas, fugitivo da prisão. Esconde-o no seu barraco, o alimenta, dividindo o quase nada que tem e o trata. Recuperado, um dia, Mariano parte sem se despedir. Tempos depois, volta para agradecer.

            As últimas páginas do livro contam do reencontro dos dois marginalizados: um, proibido de pensar; outro, impedido de conseguir condições para viver. Sob um teto cheio de goteiras que deixa passar a chuva, tomam um pouco de vinho e fumam um cigarro feito de xepas, conscientes e convictos de que somente respirar não basta: algo é preciso fazer. Nesta convicção e nas palavras finais do livro As duas sombras gigantes se aproximaram nas paredes de lata, a simbologia otimista a sugerir um entrelaçar de forças, um intuito de luta.

            No conjunto da obra, a riqueza da palavra, a expressão da angústia, as interrogações, a denúncia da repressão. A cidade sugerida, presente no mar, no porto, nas folhas de plátano, nas gaivotas, no detalhe da vida cotidiana. O temor do hoje que, só por sorte, pode se transformar no amanhã; as perguntas que são reflexões (como é que nós éramos?, Quem éramos?, Não voltarão a se juntar nunca os pedaços que nos fizeram possíveis) ou deveriam levar à reflexão. Sobre a palavra ou sobre o poder da palavra e se basta escrever para redimir-se ou redimir. Ou se, unicamente, a ação é redentora porque a canção se esvai, se dilui num testemunho repetido a exaustão na América, mesmo sendo chama e esperança em dias de paz.

            E a esperança do povo, diz o Eduardo Galeano, é feita de cristal.

 

domingo, 11 de dezembro de 2005

Recursos de Dyonélio

       
Luiz, Leo e Maneco Manivela saem de Porto Alegre, numa sexta feira, para um curto passeio até a praia. Na volta, devem parar em Águas Claras devido a um grave defeito no pequeno caminhão em que viajavam. Encontros ocasionais se sucedem no hotel onde se hospedam até encontrar a solução para o conserto, fazem crer a Manco Manivela que é perseguido pela polícia política. Sem comentar com ninguém as suas preocupações, ele vai se deixando dominar pelo medo. Sinuoso, o relato, mais do que as aventuras dos amigos na pequena viagem empreendida, se constitui de sua aventura interior. É a partir dela que Maneco Manivela irá se revelando em Desolação, romance de Dyonélio Machado, publicado em 1944 e, neste ano, em nova edição da Planeta do Brasil.

            Presa fácil de sustos, receios, angústias que a sua imaginação incrementa e que se traduzem, por vezes, em sensações físicas, por algum momento, procura dormir, descansar, espichar as pernas e dobrá-las como um polvo espreguiçando-se ou, num relaxamento repentino, sentar-se inclinado para a frente, com as pernas afastadas, as mãos unidas, os seus braços, a pender entre os joelhos que se mostram como dois ramos dum compasso de espessura. Quase sempre, se deixa dominar por um medo súbito como uma emboscada, por um desgosto intenso dolorido, como uma ferida sobre o peito; ou se abisma numa apreensão, como se afundasse lentamente no atoladouro; embaralha suas idéias como se uma coisa qualquer caísse sobre um bando de aves e as assustasse e dispersasse.

            Percebe que as tensões lhe enchem os músculos como o vapor enche uma caldeira e que a inquietação os faz vibrar como se houvesse encostado o corpo num motor em pleno movimento. Diante de uma situação, que presume perigosa, sente como que umas picadas de fogo a queimar-lhe o couro cabeludo e os ossos do crânio. Quando imagina que irão invadir o seu quarto, se apossar de sua pessoa e arrastá-lo, o coração como que perde o ritmo natural, um ritmo tão regular como o trabalho do cilindro num motor.

            Como faz do símil um elemento expressivo e determinante para marcar a figura plena de nuanças de Maneco Manivela, o romancista gaúcho, igualmente, o emprega para assinalar gestos, comportamentos de um personagem/figurante do qual nada mais ou pouco mais é mencionado. O empregado do hotel, ao ser chamado, vai atender como acionado por uma mola. Leo, quando carrega a lata de gasolina e a entrega para Maneco Manivela, faz um movimento como que desenrola alguma coisa. E, ao caminhar pelos cômoros, seus pés afundam como quem vai sendo aos poucos engolido por um sumidouro e ao deixá-los para trás, neles ficam impressas suas pegadas fundas como o rasto dum animal do deserto. O solicitador, cujo interesse pelo pequeno caminhão o leva a permitir que seja guardado no pátio de sua casa , quando o estão levando para lá, vai na frente como um guri entusiasmado, alerta. O chofer do Studebaker que encontram na estrada e lhes vende um pouco de gasolina, atenta para o pequeno caminhão, acha graça e vai lhe passando a mão “como se faz com um animal de montaria. Síntese perfeita a delinear Bagé, o elemento provocador (aquele que incita a confidências ou opiniões politicamente comprometedoras, a serviço da repressão), a seqüência que relata como, após contar na pequena roda, na qual se introduzira, suas peripécias revolucionárias, ele vai embora como veio espiando-se, guinando para um e outro lado, como quem percorre um labirinto invisível, por fim esgueirando-se por uma das portas.

            Considerado um escritor em que, no ideário do conjunto discursivo está o realismo, Dyonélio Machado, ao usar o símil em que o segundo elemento, o termo ideal é constituído, quase sempre, de objetos concretos ou de sensações reais, para dizer de seus personagens, como se não procurasse efeitos estéticos, mas, sobretudo, demonstrar ou explicar em busca da precisão.

 

domingo, 4 de dezembro de 2005

Em Desolação, as areias e o Borboleta


            Desolação continua a história que se inicia em O Louco do Cati, onde se interrompe no capítulo treze e cujo epílogo, depois da trajetória narrada em Passos perdidos, somente se dará em Nuanças. Publicado, em 1944, terceiro romance de Dyonélio Machado, acaba de ter, neste ano, uma nova edição, desta vez, da Planeta do Brasil. Como O Louco do Cati e Passos perdidos, é um romance de excepcionais qualidades na perfeição de sua estrutura narrativa e de seus recursos formais que a aparente simplicidade parece escamotear.

            Se abundante é o uso das aspas e das palavras em itálico a marcar ironias, a indicar a visão dos personagens sobre o que lhes acontece, a significar, a respeito de algum objeto, uma função diferente daquela que lhe é própria ou de frases entre parênteses a explicar sentimentos ou idéias, a completar dados ou, ainda, o reiterado emprego do pleonasmo, embora em menor número, neste texto do escritor gaúcho, os símiles não são menos expressivos. Muitas poucas vezes, eles se constroem com as expressões semelhante, qual e parecer. Na sua grande totalidade – mais de cinqüenta – são introduzidos pela partícula comparativa como e se relacionam com circunstâncias do relato e com os personagens. Assim, se referem ao cenário: O campo ao redor doestabelecimento” é raso como uma tábua; às árvores, de copa pequena, troncos grossos, retorcidos como forjados entre tenazes, laboriosamente. Outros, a certo momento do dia, um entardecer que se define por esse halo, cujo lilás desmaiado abraça o horizonte, como num vasto anel; às  nuvens que se cruzam rápidas, como tocadas por esses ventos frios de inverno. Ou à areia, elemento dominante de uma  paisagem desértica que se estende, como uma fita enrugada, amarrotada (dos cômoros), perto do mar, de norte a sul por muitas léguas. Uma areia que entra pela fresta da casa, pousa na comida, nos talheres, na louça, nos copos e no fundo das xícaras, como um açúcar mal dissolvido. Que é levantada pelo vento como uma praga daninha, como uma praga assola a região com seu vôo, e, lançada no ar pela brisa é como um borrifo seco. Areias móveis, tênues e finas que envolvem os homens, soterram a vegetação e quase fazem desaparecer o povoado junto ao mar. Soprando dos cômoros, parecem assim fumegar, como se estivessem ardendo num fogo sem combustão. 

            E, assim, muitos símiles esboçam o Borboleta, pequeno caminhão em que os três moços viajavam nesse passeio que desejavam breve e foi prolongado à revelia de todos, devido a problemas no seu motor. Estático, visto de longe, sob os eucaliptos, quando  voltavam da praia, se mostrava inclinado para um dos lados, como essas velhas diligências que os solavancos e a desigualdade das cargas a suportar, acabavam por tirar de sua posição simétrica de equilíbrio, e que assumiam assim um caráter mais degradado, mas também mais íntimo. Rodando pela estrada, no amanhecer, sua sombra, tornada fantasticamente aguda como uma lança, avança rapidamente à sua frente, como se fosse ferir alguém que estivesse lá adiante, longe. Mas, principalmente, revelam as comparações o que  esse pequeno caminhão significa para os seus  ocupantes. Conferindo-lhes traços que soem ser dos humanos, eles o percebem mudo e enigmático, como um ídolo, familiar e dócil como um animal doméstico, fiel como um bicho, à espera, como um ser vivo, paciente, enquanto opinam sobre ele.

            Então, quando presente nas seqüências descritivas, o símil, neste romance de Dyonélio Machado, busca precisar formas e movimentos. Também, na relação  entre os viajantes e o Borboleta – um personagem mais do que um ser inanimado – evidenciar  os liames não enunciados.

E é no uso de um recurso básico da linguagem – desta forma é considerada a comparação pelos teóricos – que Dyonélio Machado demonstra não apenas uma  escolha pelo despojamento estilístico mas, como disse Guilhermino César, saber amassar o seu barro com estilo próprio, inconfundível.                     

domingo, 27 de novembro de 2005

A pilhagem

       

Em 1987, a Tchê! de Porto Alegre, publicava, numa tradução de Paulo Hecker Filho, O inglês dos ossos de Benito Lynch, uma obra perfeita tanto no que se refere ao fazer literário como à imagem do Continente que oferece. Embora como os demais romances do escritor argentino não tenha merecido minuciosos estudos críticos, não lhe faltam definitivos louvores como os de Anderson Imbert que, ao se deter na sua complexidade interior, no seu espaço, delineado pela cor local e pelo saboroso linguajar rural onde o romancista tece uma hábil teia de circunstâncias e acontecimentos e sutilmente observa o despertar do amor, considera que se trata de uma obra-prima. Porém, mais sutil e nem por isso menos sugestiva, é a imagem esboçada do Continente, a partir dos personagens eixos – Balbina e Mister Gray – e das relações que entre eles se estabelecem.

            Balbina, personagem luminosa, símbolo puro da vida agreste, deixa-se envolver pelo sentimento que pressente no inglês cujos olhos azuis lhe diziam tantas coisas boas e formulavam tantas promessas na sua linguagem sem voz e sem palavras. Mas, as palavras, até um certo momento desnecessárias, terão razão de ser no momento crucial da separação. No monólogo de Balbina e no diálogo de sua mãe com Mister Gray, fica bem claro o antagonismo da visão de mundo de um e de outro.

            Desesperada com a partida do inglês, Balbina se refugia no seu quarto e procura entender o abandono de que foi vítima. Jogada na cama, sem forças, argumenta, busca soluções: mas se ela havia pedido tanto que ele não partisse...mas não se tratava de uma ilusão tola que se fizera pois ele havia falado muito claro que gostava dela...mas ele lhe havia dito que se pudesse evitar nunca a deixaria sofrer...mas por que não dizia, simplesmente, ao patrão que ia ficar um pouco mais... mas,por acaso, não tinha dinheiro suficiente para descansar onde bem lhe aprouvesse...

            James Gray, o universitário inglês continua a trabalhar. Sob o sol e o vento, raspa, sem vontade, uma velha caveira humana e pensa no diálogo que tivera com a mãe de Balbina que o recriminava por a ter desenganado. Mim não promete nunca nada, havia respondido. Mas o que não respondia a si mesmo era como evitar o sofrimento da moça porque, embora a solução  estivesse nas suas mãos, ele não podia ceder. Seu desejo era trabalhar pela Humanidade, por compromisso moral contraído consigo mesmo; seu destino, o de perfazer um longo caminho de progresso escolhido de antemão e marcado pelo cálculo; e como homem prático e sério tinha recorrido ao sistema mais prático e mais sério também, o sistema da verdade inconteste. A vítima assim não padece dúvidas. Ou se resigna, ou morre de dor.

            Na excelente introdução ao romance da edição da Troquel de Buenos Aires, Julio Caillet-Bois diz que Benito Lynch, ao opor a civilização inclemente, determinada por razões práticas, ao livre impulso afetivo, insiste num dos temas do século XIX: o protesto contra as doutrinas materialistas e utilitárias que irão se impor com os avanços científicos.

            Em O inglês dos ossos, esse repúdio, sem dúvida, contém, igualmente, um outro, muito peculiar ao Continente. Ingênuos, os hospedeiros de James Gray não percebem a importância dessas caixas cheias de material arqueológico que ele envia para Londres; por sua vez, o inglês não se detém diante das lágrimas de Balbina. Afinal, não tinha vindo para a América em busca de uma mocinha de rancho para se casar; mas em busca de velhos cemitérios indígenas para cavoucar depressa. Assim, acompanhado de suas caixas, contendo ossos de índios, parte Mister James. Não fora levado a sério ao chegar, montado num petiço e de guarda chuva aberto e houve risos. Sua partida deixa atrás de si a tragédia mas, não ouviu os prantos. Como se o pertencer ao mundo dos civilizados lhe desse o direito de ferir o âmago do Continente: levando embora suas riquezas, impondo, sem contemplações, o sofrimento àqueles que o acolheram de coração aberto.

domingo, 20 de novembro de 2005

O labirinto


            Por intuição e desconfiança, Aluízio Palmar não aceitou o convite feito, em Buenos Aires, para retornar ao Brasil e fazer parte do grupo de militantes da esquerda armada que pretendia continuar a luta contra o governo militar. Mais tarde, viria a saber que se tratara de uma cilada, cujo intuito era atrair os brasileiros que viviam no exílio para áreas fictícias de guerrilha e matá-los, porque, segundo os governantes do país, representavam um perigo para as instituições; e que o autor da proposta, um “cachorro”, militante cooptado pela repressão (consta no livro de Élio Gáspari, A ditadura escancarada que um “cachorro” recebia, por mês, o equivalente ao soldo de capitão) fizera seis adeptos e, entre eles, Onofre Pinto, um dos fundadores e dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária. Teriam saído no dia 11 de julho de 1974, de Buenos Aires e entrado no Brasil por Santo Antonio do Sudeste, chegando ao sítio que, pretensamente, seria uma base camponesa de organização revolucionária, após uma viagem de mais de vinte e quatro horas. No anoitecer do dia seguinte, cinco deles saíram juntamente com os considerados companheiros – um deles era o “cachorro”, o outro, membro do Centro de Inteligência do Exército – para a primeira ação revolucionária. Não concretizada pois, conduzidos pela Estrada do Colono, após rodar uns seis quilômetros, o veículo parou. Desceram todos e mal caminharam alguns passos, foram atingidos pelas balas que partiam de entre as árvores e, sem vida, jogados na vala já preparada para recebê-los. Onofre Pinto foi morto no dia seguinte e seu corpo atirado no Rio São Francisco Falso que, seis anos depois, desapareceria com a inundação para formar o Lago de Itaipu.

            A reconstituição desses fatos foi feita por Aluízio Palmar. Não compareceu ao encontro, em Buenos Aires, conforme combinara com o militante que o abordara e partiu, no mesmo dia, para Posadas onde residia. Já havia cortado todos os laços com Onofre Pinto, não mais acreditava na luta armada e, tampouco, teve confiança nessa estrutura que lhe era oferecida na região de Santo Antonio do Sudeste. Ao saber que Onofre Pinto e mais seis companheiros haviam desaparecido quis saber as circunstâncias em que ocorreram as mortes e o lugar onde haviam sido sepultados e, em 1979, ao voltar ao Brasil, inicia a busca – um percurso longo e trabalhoso – que relata em Onde vocês esconderam nossos mortos, publicado, neste ano, pela Travessa dos Editores de Curitiba.

            Muito do tempo que despendeu nessa busca resultou em vão: suposições errôneas sobre a morte do grupo e o lugar onde teriam sido enterrados e não menores os obstáculos advindos de assassinatos de pessoas que, eventualmente, poderiam dar informações, indicando o objetivo de eliminar pistas, os documentos desaparecidos por incúria ou destruídos para apagar evidências, as informações truncas ou desencontradas, o silêncio das pessoas que, talvez, pudessem ajudar a esclarecer e que, no entanto, arredias e desconfiadas se calavam.

            Um verdadeiro labirinto marcado pela ignomínia dos que infiltrados nos grupos militantes os entregavam para a tortura e para a morte. E dos que eram os executantes cegos do extermínio realizado sob o império do arbítrio. Razões que, certamente, mantiveram a tenacidade de Aluízio Palmar em não desistir quando os fios que o conduziam por esse labirinto se rompiam ou se exauriam. Assim, ele chegou ao que pretendia saber: como morreram e onde foram enterrados os últimos guerrilheiros que ousaram pegar em armas contra a ditadura militar. Porém, nesse trabalho que empreendeu, também se deparou com informações e com fatos, tanto no que se refere aos auxílios prestados ao sistema repressivo usado pelos governantes, como no que se refere às violências sofridas pelos trabalhadores de fazendas que poderão se constituir matéria de sérios trabalhos de pesquisa para que nem o esquecimento persista e nem a memória seja negada.

domingo, 13 de novembro de 2005

A imposição




             Um dos mistérios do mundo literário é a aceitação, inclusive por várias gerações, de determinadas obras e o esquecimento de centenas de outras que se perdem, para sempre, nas estantes das bibliotecas; ou, o destino brilhante de algumas que elogiadas pela crítica, reinam por uns tempos para, depois, desaparecerem, definitivamente, do panorama artístico. Ou, ainda, o de outras que permanecem na obscuridade até o dia em que surgem para um reconhecimento tardio. Tal fenômeno, que a metodologia de um capítulo da Literatura Comparada (o destino de uma obra) ajuda a estudar e a entender, é explicado, em parte, nos dias atuais, pelas leis que regem a produção e comercialização de livros.


            Ninguém ignora que, nos Estados Unidos, livros de sucesso se fabricam e o caso do romance Scarlett de Alexandra Ripley é disso um exemplo. A partir da idéia que fez nascer o livro, até as operações de promoção que precederam o seu lançamento, tudo foi produto da mercadologia editorial norte-americana e resultou no maior best-seller de 1991. O ter sido lançado, simultaneamente, em quarenta países com uma primeira tiragem de 1.500.000 de exemplares, acompanhado das apreciações críticas, submissas ao esquema promocional, evidentemente, lhe conferiu, no entender dos menos avisados, um valor excepcional.

            Então, é de interesse inegável, o testemunho da autora, publicado na revista Ler do Circulo de Leitores de Portugal (número 17, 1992). Falando durante a primeira apresentação pública do livro para trezentos editores, quando da Convenção da American Booksellers Association, ela testemunha sobre a situação da edição norte-americana, uma indústria que impede os escritores de escrever, onde quase toda gente com experiência em edição tem de abandonar os lugares em que trabalha e dedicar-se a uma carreira free-lancers. Seus lugares são ocupados por pessoas com o título de editores, mas cuja experiência e objetivos foram adquiridos apenas em vendas, marketing e promoção. Assim, os livros tornam-se somente produtos, como flocos de cereais, perfumes ou desodorantes. E acrescenta: É difícil discutir com alguém que está sinceramente orgulhoso de sua opinião formada na ignorância. O verdadeiro crime é que esses editores abusam da inteligência do público leitor. Há muitos milhares de pessoas no mundo fora de Manhattan com apetite por bons livros para ler. E que estão obrigados a uma dieta pelos próprios editores norte-americanos.

            Ou seja, um depoimento corajoso da própria beneficiada da situação vantajosa que essa política editorial torna possível e que pode significar mais um lance promocional para Scarlett, pois, afinal, Alexandra Ripley já assinara, então, um outro contrato para novo livro e com a mesma editora.

            Evidentemente, é preciso não esquecer que tais criadores do gosto não agem apenas nos Estados Unidos, mas, também, nos países em que encontram a receptividade que se origina da tradicional convicção de que o Hemisfério Norte é, sem dúvida, o pólo irradiador de todas as verdades.

            Embora a dizer, outra vez, o que já é deveras sabido – não poucos dos livros publicados no Brasil são os mesmos que encabeçam a lista dos mais vendidos nos Estados Unidos – é conveniente repeti-lo. E, ainda, lembrar que, ao longo do tempo, por diversas e, quase sempre, induzidas razões, o Brasil, embora a eles se irmanando por um destino semelhante, tem se mantido alheio aos demais países do Continente. A não ser as exceções – autores consagrados pela crítica do Hemisfério Norte – não lhe é dado a conhecer uma produção literária cuja qualidade, é, por vezes, inigualável. Tampouco, poder compará-la com a que lhe é imposta pela opção editorial que somente visa o lucro. E, então, se dar conta de que o ônus oriundo de um atrelamento cultural, no qual se inscreve grande parte da produção de livros do país resulta excessivo e com o agravante de não ter sido, ainda, devidamente mensurados nos seus malefícios.

domingo, 6 de novembro de 2005

A sangria


Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal se tem acumulado e se acumula nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e seus profundidades ricas em mionerias, os homens e sua capacidade de trabalho e consumo, os recursos naturais  e os recursos humanos.  Eduardo Galeano.
 

O título era sobremodo pertinente, quando foi publicado há trinta e cinco anos: Las venas abiertas de América Latina, um livro que deveria ter sido lido por todos os habitantes do Continente. Hoje, continua, mais do que nunca, uma extraordinária síntese do que tem sido o fado dessa América ao sul do rio Bravo. Interpelado, recentemente, se o tempo que passou, desde o final de 1970, em que deu por encerrado o livro, até os dias de hoje, lhe modificou a maneira de entender o território da América Latina, Eduardo Galeano respondeu que o seu texto continua correto e que a realidade lhe dera razão: o abismo que separa os que têm dos que necessitam é hoje muito maior do que quando escrevi o livro.  

            Na verdade, embora só excepcionalmente, no Brasil se tenham notícias do que ocorre nos outros países latino ou sul-americanos, esse mínimo que, vez ou outra, os meios de comunicação registram, é suficiente para evidenciar que a situação de pobreza e descalabros norteadores de sua História, continua a mesma que sempre foi ou pior.

            Nas páginas que se referem ao Brasil, cuja trajetória pouco difere daquela dos demais países do Continente, constam informações que não deveriam ter sido negadas a seus habitantes. Porque os livros didáticos, ao relacionar os ciclos econômicos do Brasil, em geral, não mencionam o que determinou a contínua e persistente submissão aos interesses estrangeiros, cujo resultado foi retardar o seu desenvolvimento. E porque um grande número de fatos, de suma importância, como a concessão de riquezas a grupos ou a países estrangeiros, foram – ainda que tivessem existido raras exceções, como os artigos do Correio da Manhã do Rio de Janeiro – parcialmente divulgados ou mantidos em questionável sigilo.

            Eduardo Galeano relaciona alguns: entre 1946 e 1951, a permissão para a Bethlehem Steel extrair o manganês do Amapá; a concessão das jazidas de ferro do Vale do Paraopeba em 1964, com toda a gentileza para a Hanna Mining Co: a licença para a venda a estrangeiros – a sete centavos o acre – de uma imensa superfície na Amazônia que fora, previamente, em virtude do acordo firmado, em 1964, fotografada pela Força Aérea dos Estados Unidos, com vistas a detectar as jazidas de minérios; a propriedade da jazida de nióbio em Araxá em mãos de uma filial da Niobium Corporation de Nova Iorque; a sociedade da US Steel, ainda na década de sessenta , detendo 49% das ações e recebendo a concessão das jazidas de ferro da serra dos Carajás com a Companhia do Vale do Rio Doce.

            Sem dúvida, o suficiente para indignar quem possua o mínimo de discernimento em relação aos princípios que devem orientar as decisões tomadas, visando o futuro do país. O suficiente para lastimar que num país, onde grande parte da população é analfabeta (pois não basta reconhecer meia dúzia de sinais gráficos e escrever com garranchos o próprio nome para se tornar alguém que sabe ler) e, onde, aqueles que sabem ler nem sempre dispões de fontes de informação e, ainda, onde a ausência de hábitos de leitura incapacita, não apenas para a compreensão de um texto como também para estabelecer relações e entender os significados contidos nas entrelinhas.

            Assim, ler Las venas abiertas de América Latina, no Brasil e, provavelmente em toda a América Latina, continua sendo um privilégio reservado a alguns. Como, também, obter um lugar ao sol para uma vida digna. Porque, nestas paragens estas terras esplêndidas – diz Eduardo Galeano – poderiam oferecer a todos o que a quase todos negam.

domingo, 30 de outubro de 2005

O capitão e os cavalos


Juan Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, refaz o itinerário de sua expedição em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura latino-americana. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em busca de um sítio para assentar,  pela segunda vez, a cidade.
 


Juan Núñez de Prado se sentia muito cansado e compreendia, no trabalho dos soldados, sob a noite clara, que não lhes sobrava muito tempo. Reconhecendo-se um deles, diz a si próprio: Antes que já não tenhamos tempo.  E a voz do narrador o mostra num de seus momentos de medo e desalento. Mas, sobretudo,  espectador de ações que ao acontecerem num cenário em que o delicado fluir da água, o suave bulício do vento, o desvanecer das casas na luz leitosa da noite , por seu ritmo e pelo ânimo que as impulsionam,  lhe são antagônicas: no afã de desfazer a cidade, os soldados entram e saem das casas, correm pelas muralhas, sobem pelas escadas, passam  com pressa  pela rua. Juan Núñez de Prado os percebe ansiosos e desesperados como que a esperar dele uma ajuda, desgostosos por não receberem explicações e querendo que entendesse o que ele, no seu desvario febril, imagina entender: se não os ajudasse já não dormiriam, já não trabalhariam e partiriam sobre seus cavalos para o fundo de seus leitos, se afundariam nos seus lençóis e nas cobertas, chorando, relinchando, iriam  se perder e no seu desespero, dariam pontapés, chorando horrorizados, relinchando  horrorizados, olhava os espanhóis dormirem nos quartos solitários, via suas pernas magras e trágicas, as ferraduras novas, as patas novas, trêmulas, surgir sob as roupas, olhava os borzeguins desfeitos no chão, as ferraduras atiradas aos montes sob as cadeiras [...]. A ausência de comunicação entre o que manda e o que obedece, nesta seqüência, revela o desconforto de Juan Núñez de Prado que no seu delírio confunde homens e animais no mesmo sentir descabido, molesto e sofrido.

            Também, a evidenciar os obstáculos que impedem a compreensão entre esses homens que,  atrelados a suas ambições ou a seus sonhos, se submetem à travessia do Continente,  o episódio em que  Juan Núñez  de Prado obedece ao impulso de se dirigir a um prisioneiro: o soldado que passava com  os braços cruzados no peito, as cordas o prendendo  até os ombros,  a caminhar sozinho, apressado, quase alegre,  entre os objetos que o impediam de correr. O capitão sai ao seu  encalço,  querendo lhe falar, perguntar-lhe o nome, convencê-lo do acerto de suas ordens. Porém, o prisioneiro foge;  a cavalo, o capitão o alcança e  golpeando-lhe nas costas o atira sobre uns lençóis  que estavam limpos e frescos[...].  Desmontando,  o capitão se ajoelha a seu lado, faz perguntas que são respondidas a meias e recebe respostas que não o agradam. O soldado se levanta e caminha aos tropeções. Juan Núñez de Prado, com violência, insiste em justificar seus atos Mas, nem o que diz, nem  autoridade que apregoa – sou o capitão – demovem o soldado de suas certezas.  O capitão, corta as cordas que o prendem e, alheio ao gesto de tímida alegria e ressurreição que então esboça, o obriga a se inclinar, caindo sobre  ele. Sente sua mão molhada, vê a camisa nova manchada e o  pescoço aberto ao ar, a cabeça caída em cima dos lençóis . Perto, os cavalos se moveram um pouco e como se desejassem esconder aquilo [...]. Claras e breves palavras inseridas em meio à narrativa a tornar inquestionável o assassinato, eufemisticamente,  revelado nas expressões:  uma de suas mãos se apaga no peito do soldado, a outra lhe acaricia fugazmente o pescoço” E no movimento dos cavalos e na sua presumida intenção de esconder aquilo, o repúdio à injustiça praticada que, sob a proteção mórbida da autoritáriahierarquia ficará, como as outras,impune.  

domingo, 23 de outubro de 2005

Os cavalos e seus cavaleiros


Juan Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Partiu de Cuzco, numa expedição que percorreu um vasto itinerário no qual enfrentou discórdias, lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em busca de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.


             Dois, três, quatro dias, talvez sete noites, sete madrugadas os viram passar sobre seus cavalos. Dormitavam, por vezes, na sela do cavalo;  apertando as virilhas do animal, golpeando-lhe o peito, ajustando ou apertando a cincha saíam ao trote, ao galope, em disparada. No decorrer da ação – construir e destruir a cidade, transportá-la Continente adentro – Juan Núñez de Prado e seus capitães montam e desmontam, lançam os cavalos sobre os prisioneiros, sobre  as moitas  e empurram-nos contra a parte traseira das carretas; dão-se conta de sua presença pelos relinchos e pelo ruído dos galopes distantes e,  quando passam perto, carregados ou batendo nas madeiras.  Ou, pelas efêmeras imagens que oferecem, inseridos na paisagem, próximo das carretas e dos objetos espalhados pelo campo, ao se encabritar e mostrar,  levantando-se nas patas, seus belos corpos, sua resplandecente saúde; dormindo junto às fogueiras ou nos pátios, deitados sobre suas patas, voltados os focinhos para a noite azul, empapados os belfos no esplendor aveludado da lua[...].

            Para Juan Núñez de Prado é uma presença  captada pelo olhar : assim, o chegarem no extremo da rua, se despencarem pelos cerros,  se afogarem na correnteza, tiritarem na água fria do rio, se mostrarem belos, robustos, feios, doentes, cansados, velhos.  Percebida em todo o seu ser quando lhe parece escutar o som nítido dos cascos dos cavalos trotando em círculo por seus rins, por seu coração, por sua cabeça; sentida, também, no movimento de curta impaciência e nervosismo do cavalo ao mover o pescoço; e nas mãos ao acariciar a cabeça de seu cavalo ou  ao lhe bater, com tranqüilidade, na garupa; mais próxima, ao encostar o rosto no seu pescoço e lhe perceber  o calor ou quando a ele se abraça para não desmaiar. 

 Sugestivos, os registros de percepção dos cavalos em relação a seus cavaleiros. Simples, como referir que alguém assobiava para um cavalo e o cavalo movia as orelhas reconhecendo o chamado. Ou, em seqüências  que se inserem no relato para lhe diminuir o ritmo. Assim no episódio em que um dos soldados é maltratado: ele caminhava sem olhar para ninguém, adivinhando que se parasse o empurrariam outra vez e o golpeariam, tinha desejos de chegar logo, um cavalo desbastava o capim junto das acéquias, levantou a cabeça para se certificar  de que não era o seu dono. Assim,  noutro, em que sob a chuva os soldados gritam entre si enquanto os cavalos empurravam  a terra e relinchavam sem vontade e olhavam para eles espichando os belfos gelados, desejosos de saber que faziam que pretendiam fazer esses miseráveis soldados que maldiziam e suavam e se queixavam e perguntavam pelo fogo, pelas comidas, pelo vinho, onde diabos, sob que lençóis, entre quais cestos e  vasilhas de prata e barro objetos inúteis e tão domésticos , estava o vinho[...].

            Nesse mundo de solidão, angústia, medo  ora nos céus, ora nas terras pelas quais avançam, se mostram, fugazes, imagens alentadoras: em meio ao caos instituído, são verdadeiros acenos de alegria que, igualmente, irrompem no liame estabelecido entre os homens e os cavalos que os conduzem. E que o narrador aponta não apenas como um dos elementos para construir o relato, mas  para revelar os absurdos, as incongruências e as crueldades  resultantes das escolhas dos homens.

domingo, 16 de outubro de 2005

Cavalos nas paragens


Juan Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Partiu de Cuzco, numa expedição que percorreu um vasto itinerário no qual enfrentou discórdias, lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial,  relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos.  No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em busca de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade. 

            As portas, as janelas, os pedaços de tetos e de paredes eram transportados nas carretas. E os móveis, tábuas novas, pedaços de sacada e roupas brancas, colheres e facas, ferramentas. Com pressa,  haviam arrancado a cidade de suas ruas e de suas praças para reconstruí-la mais além: Não levamos as ruas porque estão em nós, somos uma rua, um caminho real [...], diz o capitão. E sob as nuvens geladas, a levaram até que os capitães, os soldados, o padre decidiram que a chuva estava a indicar-lhes o lugar  do novo assento. As carretas se detiveram e, com muito frio e sem falar, os soldados começaram a descarregá-las. Apenas nasceu o dia, elevaram-se as vozes e os ruídos do trabalho: bater de tábuas, chiado das serras, golpes de martelo. E o chão foi se cobrindo de madeiras e móveis, montes de roupas, armas, utensílios, frutas e grãos, pedaços de pão atirados no barro, pisados pelos cascos dos cavalos.

            Na cidade deixada para trás, os cavalos  haviam caminhado sobre as primeiras tábuas derrubadas. Caminhavam firme sobre elas, escorregavam um pouco e se mantinham mais dignos, mais perigosos. Haviam marchado sobre os escombros, saltando portas e janelas ou afundando os  cascos nos seus marcos.  A trotar sobre as madeiras, arrastavam as roupas – lençóis pendurados no pescoço e nas garupas  camisas, calças e  borzeguins -  e pedaços de móveis presos nas selas.  Cumpriam, assim, os desígnios de Juan Núñez de Prado, ao argumentar com seu capitão as condições da mudança:   lançaremos punhados da cidade nas nossas montarias, penduraremos alguns restos de roupa, móveis, molduras nos pescoços dos cavalos ou dos índios, levaremos quanto pudermos. Então, deslizavam as vigas que sustentavam os tetos e  desmoronavam as janelas e as portas e os cavalos cheiravam a madeira e sacudiam com medo suas patas. Depois, se detinham   e olhavam para dentro das casas, aguardando algo, um barulho, uma respiração, um soluço, um lamento.

            Porque, assim como da primeira mudança houve aqueles que se negaram a partir e foram enforcados, na segunda, eram muitos os que não podiam partir, minados que estavam pela doença. Entrincheiravam-se nas casas  enquanto Juan Núñez de Prado e seus capitães discutiam se deviam levá-los junto ou abandoná-los a sua sorte: talvez os enforcaremos, talvez os deixemos amarrados na casa do aguazil ou do alcaide, inertes, incapazes de se rebelar e de fazer nada de mal, nem nada de bom [...].

            Soldados lançam seus cavalos contra as paredes; outros tentam defendê-las e são golpeados, amarrados, feridos. Dúvidas  se renovam a cada  uma das decisões entre as certezas que fazem avançar. Algum inesperado argumento questiona verdades e convenções como o do capitão Guevara a respeito do que deixarão para trás: mortos e feridos, casas a meio arrebentar, ainda vivas, gado triste   e ferido, cães meio mortos de fome, cavalos sem freios, trotando loucos nas ruínas.

            Entre as desarmonias do cenário, instauradas pelos homens, e o ritmo intrincado de suas ações a contrastar, por vezes, com a simplicidade das águas do rio, correndo quietas, do cacarejar das galinhas, da quietude dos cavalos. Deitados sobre lençóis, em meio a sacos de trigo e milho esparramados, pareciam mostrar aos homens o enorme erro e desorganização que havia em tudo isso.

domingo, 9 de outubro de 2005

Cavalos nas paragens



Juan Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Partiu de Cuzco, numa expedição que percorreu um vasto itinerário no qual enfrentou discórdias,  lutas,  e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades ( Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente empós de um sitio para assentar, pela segunda vez, a cidade. 
            Serras, torrentes, bosques e rios se sucedem nesse percurso em que a cidade é transportada nas carretas e nas costas dos índios. Nas paragens, se inscrevem, então, novos sons, novos movimentos, novas silhuetas. Sob céus cambiantes,  escuros e imensos, espalham-se, no fundo das planícies e dos charcos, ora plangentes, ora enfastiados, os relinchos dos cavalos. Deixam, também, ouvir o seu claro galopar, o barulho de seus cascos entremeado às vozes, ao ruído da água. Movem-se com elegância, lentos, adormecidos ou trotam ágeis, livres e desenvoltos e leves na frente da multidão de índios carregados, algum sai em disparada. Por vezes, apenas suas sombras se destacam além das árvores, por vezes, deslizam misteriosos na escuridão e sua presença nada mais é do que o registro de um ir e vir dos ginetes ou da corrida de um cão entre suas patas, ou apenas uma nota indicativa de lugar: os soldados tinham desaparecido atrás dos cavalos; o capitão escutava o crepitar do fogo, do outro lado dos cavalos; na direção das carretas onde se amontoavam os cavalos.

            Mostram-se, também, ora tranqüilos, a pastar perto dos soldados, ignorando-os, como se ainda estivessem nos velhos campos da Europa ora  perto dos arroios, sob a copa das árvores, sensíveis  ao  barulho do vento que faz com que parem as orelha e as agitem antes de  afundar o focinho na água, bebendo longamente.  Friorentos, se aproximam das fogueiras; surpreendidos pela força da torrente, se batem com fúria, relincham com desespero: parecia que estavam lutando com a água, mordendo-a atirando as patas, não  colhidos por ela e pela morte mas brigando, ferindo-a num ódio certeiro e sem trégua.

            Assim, ajudando a compor o cenário de El hombre que trasladaba las ciudades e o animando com suas expressões de vida, os cavalos se constituem,  também,  um dos elementos que conferem ao romance o constante dinamismo no qual ele se constrói. São, igualmente, o motivo de pequenas sequências descritivas que matizam o ritmo narrativo com brevíssimas pausas.

              um  momento em que  Juan Núñez de Prado, entre  seus soldados e capitães, se deixa dominar pelo medo. Como ocorre, tantas vezes, neste romance de Carlos Droguett,  o relato da ação se interrompe e entre o  sentimento do personagem e as palavras de seu interlocutor,  se interpõem as palavras do narrador se referindo  ao céu onde   nuvens translúcidas faziam ressaltar mais bela a tarde de verão, as flores se inclinavam cerimoniosas na direção das carretas para espiar os cavalos cansados, os índios cansados.  Outro, em que são enumerados os caixotes, as caixas, os cestos repletos que seguem nas carretas junto com ornamentos, fazendas douradas, cálices, crucifixos, a referência a um anjo [que] abria suas asas na garupa de um cavalo,   e às flores, às  flores vermelhas que pendiam para fora, para o alto e batiam suave os focinhos dos cavalos e [...] os seus flancos.

            Nestas seqüências não são esquecidas as agruras, companheiras certas dos ibéricos, como a religiosidade, na desmesurada aventura da Conquista do Continente quando o fado dos cavalos é similar aqueles dos índios. Tampouco o serem depositárias – ainda que os homens disso pouco se apercebam – de um fugaz instante de beleza que o luminoso de uma tarde ou o movimento  das flores pode oferecer.

domingo, 2 de outubro de 2005

O rei precisa de cavalos


Juan  Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Partiu de Cuzco,   numa expedição que  percorreu um extenso itinerário no qual  enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial,  relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades ( Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em  busca de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade. 

            Eles não se dão conta do tempo  em meio à fome, ao sono, ao cansaço e ao desalento, levando a cidade nas carretas para fugir dos espanhóis do Chile que a pretendem. Juan Núñez de Prado,  partira com cavalos e  com os cavaleiros empobrecidos e sonhadores, lustrosos pela miséria, perseguidos e solitários, com os índios,  três frades e umas tantas promessas de receber além dos cavalos, roupas, alimentos e bois, cabras, ovelhas e porcos. Argumentara com o vice-rei que apressava a sua partida ( quero te escutar galopar antes de sete dias) ter apenas sete cavalos e precisar de  duzentos,  números que não constarão do relato ainda que, em certo momento, um soldado conte os cavalos;  ainda que, antes de partir,  Juan Núñez de Prado mencione as intenções do Padre Gomar: iria comprar todos os cavalos do Reino para que subissem as serras  a espiar entre as nuvens do sol crepuscular as primeiras estrelas, os rios    esmagados contra o horizonte, as boas terras. Já ao procurar um outro lugar  para a cidade, Juan Núñez de Prado constata ter somente três carretas com suas rodas muito velhas e gastas e poucos cavalos” e escuta um dos capitães lhe dizer que tem, apenas, uma centena de cavalos gastos, feridos e doentes e que dom Francisco, sob as ordens dos espanhóis do Chile,   havia levado embora  os outros quando da sua incursão  ao primeiro assento da cidade. O que então fizera e  dissera, é relatado,no primeiro capítulo do romance, pelo capitão, mas é, somente quando estão a caminho da mudança da cidade  que surgem as menções aos cavalos que  ele trazia ao chegar (vem o dom Francisco trás muitos cavalos gritavam) e aqueles que levou – os melhores. Como sempre, no relato de El hombre que trasladaba las ciudades, as informações se mostram difusas, ambíguas.  Assim, a surpresa do capitão que,  ao ver cavalos lutando contra a torrente, percebe que dom Francisco não tinha lhe roubado tudo pois deixara cavalos não sendo, portanto, tão mau. O que,tampouco se esclarece no romance pois não são identificados os que disseram que ele tinha roubado todos os animais ( como diziam estes desalmados) e, permanece desconhecida a razão de ter presenteado Juan Núñez de Prado com um belo cavalo branco e de não ter se apossado de todos os animais, pois, como  rival do capitão,  saberia da importância de possuir cavalos para efetuar a conquista dos territórios.


 Quando se trata de , mais uma vez, mudar o assento da cidade, um dos capitães logo concorda, dizendo: vivo a cavalo, o cavalo é para mim a minha casa e meu caminho [..]. E um dos soldados,  apegado  à casa que edificara e às árvores que plantara o acusa: tu queres somente soldados a cavalo, agarrados aos arcabuzes e as adagas, somente queres soldados. Juan Núñez de Prado responde que é disto  que o rei precisa:  soldados, cavalos e cruzes. Afirmativa que não convence seu interlocutor e, então,  é levado ao surpreendente argumento dos que acreditam nas divindades ou que dela se sevem par justificar os seus desígnios : Jesus é  saúde e força e desafio, vem conosco, está  demolindo a cidade para edificá-la mais firme e mais potente [...] Jesus está a cavalo conosco[...]  

domingo, 25 de setembro de 2005

O Poeta e a vida


            “Oda a la vida” é o penúltimo poema de Odas elementales, livro publicado em Buenos Aires, no ano de 1954, no qual Pablo Neruda inicia o seu cantar das coisas simples  num intuito didático que se expressa no desejo de mostrar, descrever, doutrinar, corrigir, estimular como enumera Emir Rodríguez Monegal em El viajero inmóvil. Nos primeiros versos de “Oda a la vida”  Pablo Neruda  se mostra um ser humano como todos, a mercê dos sofrimentos que tornam as noites brancas: com um machado me golpeou a dor. Mas, sobrevindo o sono, com poderes de purificação, passou lavando como uma água escura / pedras ensanguentadas e, assim,  o novo dia estabelece, outra vez, a resistência. Na segunda estrofe, o Poeta se dirige à vida, chamando-a de taça clara a conter os repentinos senões que pode e que,  metaforicamente, designa de  água suja, vinho morto,  teias de aranha, além do  já conhecido – a agonia, as perdas – que alguns, constata,  podem considerar como perenes. O que, no entanto,  ele rebate, com firmeza, na estrofe seguinte, feita, o que é assaz raro neste livro, de um único verso. Prosaico, afirmativo na sua negação – Não é verdade.- a introduzir  os argumentos que afirmam o efêmero dos males  pois basta uma noite ou um minuto para que se instale  a vitória da limpidez, contida no cálice da vida, do trabalho amplo, desse movimento que faz nascer as pombas e estabelecer a luz sobre a terra. Apologia que irá se completar nos versos em que o Poeta compara a vida  com a  mulher amada, com a vinha e naqueles em que ,  justapondo palavras concretas e abstratas, torna a defini-la, conferindo lhe um dinamismo inesperado: guardas a luz e a repartes. Porém,  somente depois de lembrar os poetas ( os pobres poetas)  que sem lutar, a percebem amarga.


            A última estrofe, a  mais longa do poema, conduz ao ensinamento, calcado na sua visão de mundo,    dirigido aqueles que da vida renegam, que recebem os golpes sem resistir e se afogam no luto de um poço solitário.  Didático, Pablo Neruda repete que os males são passageiros, que basta esperar um minuto, uma noite, um ano . Que não importa o tempo necessário para que  a mudança se faça e sim o ato de abandonar a solidão, de perseguir respostas, de pretender suas mão  em outras mãos, de não adotar nem bajular a desdita mas, com ela se fortalecer.

            Ainda que o Poeta busque a simplicidade  o que na verdade, quase sempre,  procurou fazer, e  nas odes  foi uma intenção primeira  e que nesta “Oda a la vida” ela esteja presente  na menção de fatos corriqueiros ( não saíram contigo / da cama, corte a desdita / e se faça com ela / calças) ; na discrição das imagens (cor do inferno, entre os seios tens cheiro de menta);  na simplicidade dos símiles (como  uma vinha, dando-lhe forma de muro como à pedra os pedreiros) ; na combinação de palavras do cotidiano que desabrocham, sugestivas ( ternura de azeite delicado, som de tormenta) ,  ele não se deixa iludir ao enunciar suas verdades.  

             Assim, na afirmação final, a completar as palavras de ordem que pregam o repúdio da solidão mentirosa e da infelicidade,  como que inconteste, se erige a crença do Poeta nesse destino comum a todos os homens: a vida nos espera / a todos [..] . Mas a ressalva que se lhe segue,  a impor restrições, – a todos / os que amamos / o selvagem perfume de mar e menta / que [ a vida]  tem entre os seios -    revela,   a sabedoria de aceitar que, nem sempre,  a palavra cai em terreno fértil; que, nem sempre, tampouco, todos são os que as entendem. 

domingo, 18 de setembro de 2005

O Poeta e a morte


            Pablo Neruda, recém havia chegado em Barcelona, na década de trinta, quando recebeu a notícia da morte de seu amigo Alberto Rojas Giménez,  figura ímpar que ele descreveu em Confieso que he vivido e cuja morte,  ocasionando-lhe uma dor muito intensa,  foi motivo da elegia que, então, escreveu: “Alberto Rojas Giménez viene volando”, longo poema de vinte e duas estrofes, publicado na Revista Ocidente e, que faz parte, também, de Residencia en la tierra.  Como observa Emir Rodriguez Monegal em El viajero inmóvil, a notícia, recebida através de um telegrama, chegou, para Pablo Neruda, como se o  próprio Alberto Rojas Giménez  viesse voando - daí esse estribilho que acompanha cada uma das estrofes -  e com ele, todo o seu mundo, arrastado como por um furacão de poesia. Um mundo onde as violetas, as magnólias, os lírios, a papoula suavizam o prosaico de um cenário urbano cujos contornos se oferecem na enumeração que mescla dentistas, advogados, aviadores, notários, mulheres que desfazem tranças com farmácias, cinema, canais, túneis, caracóis congelados e peixes sujos, meninas submergidas e plantas cegas. Sobretudo, um espaço intensamente relacionado com Alberto Rojas Giménez e com o que a sua perda significou para o Poeta. Assim, as palavras indicativas de lugar, nas primeiras treze estrofes – entre, sob, mais abaixo, mais além, sobre, perto, enquanto conduzem  o amigo desaparecido, através dos mares, num percurso situado  entre a realidade e o sonho. É o inverno chuvoso, como poucos, até então, no Chile, em que Alberto Rojas énez atravessou a cidade, sem agasalho, loucura  que resultou na broncopneumonia que o iria matar dois dias depois; e é a  chuva torrencial caindo sobre a cidade durante o seu velório e que inundaria o cemitério, que leva Pablo Neruda a falar do “cemitério sem paredes”, da chuva a cair dos dedos do amigo,  de seus ossos, de seu “coração caindo em gotas”. Aniquilamento  que  ele quer refutar  (“Não estás ali rodeado de cimento”, “Não é verdade tanta sombra”, “Não é verdade tanta sombra em teus cabelos”)  mas que,  inelutável,  deve  ser aceito ainda que  no eufemismo  do verso “com traje novo e olhos extinguidos/vens voando”.

            As últimas estrofes da elegia dizem de uma natureza sombria, marcada por  “andorinhas mortas”,  “vento negro”,  “peixes sujos”,  “mar morto”, “um cheiro de manhãs chovendo”. E da tristeza que o invade na alma onde chora, na solidão do “nada” e do “ninguém”, somente povoada de “uma escada degraus quebrados” e de um “guarda chuva”.   

            Nesse alternar de expressões que remetem ao trivial com as que,  ricamente sugestivas, beiram o alucinatório –  nelas,talvez,  já esteja o prenúncio da poesia “sem pureza” que Pablo Neruda postulará no primeiro editorial da revista Caballo verde para la poesia, publicada em Madrid no mês de outubro de 1935 – se formam matizes cambiantes nos quais se inscreve, igualmente, a ilusão do Poeta. Porque do amigo possui, somente, o que presume ouvir ( as suas asas  e o seu lento vôo)  e, de certo, apenas, esse golpear da “água dos mortos”.

 Em meio aos versos da última estrofe,  ainda a falar das perdas – Alberto Rojas Giménez vem voando “sem açúcar, sem boca, sem roseirais”- advém a compreensão do Poeta. Seu amigo vem voando  “ sozinho entre  mortos, para sempre sozinho” a cumprir o fado dos humanos.