domingo, 9 de outubro de 2005

Cavalos nas paragens



Juan Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Partiu de Cuzco, numa expedição que percorreu um vasto itinerário no qual enfrentou discórdias,  lutas,  e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades ( Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente empós de um sitio para assentar, pela segunda vez, a cidade. 
            Serras, torrentes, bosques e rios se sucedem nesse percurso em que a cidade é transportada nas carretas e nas costas dos índios. Nas paragens, se inscrevem, então, novos sons, novos movimentos, novas silhuetas. Sob céus cambiantes,  escuros e imensos, espalham-se, no fundo das planícies e dos charcos, ora plangentes, ora enfastiados, os relinchos dos cavalos. Deixam, também, ouvir o seu claro galopar, o barulho de seus cascos entremeado às vozes, ao ruído da água. Movem-se com elegância, lentos, adormecidos ou trotam ágeis, livres e desenvoltos e leves na frente da multidão de índios carregados, algum sai em disparada. Por vezes, apenas suas sombras se destacam além das árvores, por vezes, deslizam misteriosos na escuridão e sua presença nada mais é do que o registro de um ir e vir dos ginetes ou da corrida de um cão entre suas patas, ou apenas uma nota indicativa de lugar: os soldados tinham desaparecido atrás dos cavalos; o capitão escutava o crepitar do fogo, do outro lado dos cavalos; na direção das carretas onde se amontoavam os cavalos.

            Mostram-se, também, ora tranqüilos, a pastar perto dos soldados, ignorando-os, como se ainda estivessem nos velhos campos da Europa ora  perto dos arroios, sob a copa das árvores, sensíveis  ao  barulho do vento que faz com que parem as orelha e as agitem antes de  afundar o focinho na água, bebendo longamente.  Friorentos, se aproximam das fogueiras; surpreendidos pela força da torrente, se batem com fúria, relincham com desespero: parecia que estavam lutando com a água, mordendo-a atirando as patas, não  colhidos por ela e pela morte mas brigando, ferindo-a num ódio certeiro e sem trégua.

            Assim, ajudando a compor o cenário de El hombre que trasladaba las ciudades e o animando com suas expressões de vida, os cavalos se constituem,  também,  um dos elementos que conferem ao romance o constante dinamismo no qual ele se constrói. São, igualmente, o motivo de pequenas sequências descritivas que matizam o ritmo narrativo com brevíssimas pausas.

              um  momento em que  Juan Núñez de Prado, entre  seus soldados e capitães, se deixa dominar pelo medo. Como ocorre, tantas vezes, neste romance de Carlos Droguett,  o relato da ação se interrompe e entre o  sentimento do personagem e as palavras de seu interlocutor,  se interpõem as palavras do narrador se referindo  ao céu onde   nuvens translúcidas faziam ressaltar mais bela a tarde de verão, as flores se inclinavam cerimoniosas na direção das carretas para espiar os cavalos cansados, os índios cansados.  Outro, em que são enumerados os caixotes, as caixas, os cestos repletos que seguem nas carretas junto com ornamentos, fazendas douradas, cálices, crucifixos, a referência a um anjo [que] abria suas asas na garupa de um cavalo,   e às flores, às  flores vermelhas que pendiam para fora, para o alto e batiam suave os focinhos dos cavalos e [...] os seus flancos.

            Nestas seqüências não são esquecidas as agruras, companheiras certas dos ibéricos, como a religiosidade, na desmesurada aventura da Conquista do Continente quando o fado dos cavalos é similar aqueles dos índios. Tampouco o serem depositárias – ainda que os homens disso pouco se apercebam – de um fugaz instante de beleza que o luminoso de uma tarde ou o movimento  das flores pode oferecer.

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