domingo, 30 de outubro de 2005

O capitão e os cavalos


Juan Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, refaz o itinerário de sua expedição em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura latino-americana. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em busca de um sítio para assentar,  pela segunda vez, a cidade.
 


Juan Núñez de Prado se sentia muito cansado e compreendia, no trabalho dos soldados, sob a noite clara, que não lhes sobrava muito tempo. Reconhecendo-se um deles, diz a si próprio: Antes que já não tenhamos tempo.  E a voz do narrador o mostra num de seus momentos de medo e desalento. Mas, sobretudo,  espectador de ações que ao acontecerem num cenário em que o delicado fluir da água, o suave bulício do vento, o desvanecer das casas na luz leitosa da noite , por seu ritmo e pelo ânimo que as impulsionam,  lhe são antagônicas: no afã de desfazer a cidade, os soldados entram e saem das casas, correm pelas muralhas, sobem pelas escadas, passam  com pressa  pela rua. Juan Núñez de Prado os percebe ansiosos e desesperados como que a esperar dele uma ajuda, desgostosos por não receberem explicações e querendo que entendesse o que ele, no seu desvario febril, imagina entender: se não os ajudasse já não dormiriam, já não trabalhariam e partiriam sobre seus cavalos para o fundo de seus leitos, se afundariam nos seus lençóis e nas cobertas, chorando, relinchando, iriam  se perder e no seu desespero, dariam pontapés, chorando horrorizados, relinchando  horrorizados, olhava os espanhóis dormirem nos quartos solitários, via suas pernas magras e trágicas, as ferraduras novas, as patas novas, trêmulas, surgir sob as roupas, olhava os borzeguins desfeitos no chão, as ferraduras atiradas aos montes sob as cadeiras [...]. A ausência de comunicação entre o que manda e o que obedece, nesta seqüência, revela o desconforto de Juan Núñez de Prado que no seu delírio confunde homens e animais no mesmo sentir descabido, molesto e sofrido.

            Também, a evidenciar os obstáculos que impedem a compreensão entre esses homens que,  atrelados a suas ambições ou a seus sonhos, se submetem à travessia do Continente,  o episódio em que  Juan Núñez  de Prado obedece ao impulso de se dirigir a um prisioneiro: o soldado que passava com  os braços cruzados no peito, as cordas o prendendo  até os ombros,  a caminhar sozinho, apressado, quase alegre,  entre os objetos que o impediam de correr. O capitão sai ao seu  encalço,  querendo lhe falar, perguntar-lhe o nome, convencê-lo do acerto de suas ordens. Porém, o prisioneiro foge;  a cavalo, o capitão o alcança e  golpeando-lhe nas costas o atira sobre uns lençóis  que estavam limpos e frescos[...].  Desmontando,  o capitão se ajoelha a seu lado, faz perguntas que são respondidas a meias e recebe respostas que não o agradam. O soldado se levanta e caminha aos tropeções. Juan Núñez de Prado, com violência, insiste em justificar seus atos Mas, nem o que diz, nem  autoridade que apregoa – sou o capitão – demovem o soldado de suas certezas.  O capitão, corta as cordas que o prendem e, alheio ao gesto de tímida alegria e ressurreição que então esboça, o obriga a se inclinar, caindo sobre  ele. Sente sua mão molhada, vê a camisa nova manchada e o  pescoço aberto ao ar, a cabeça caída em cima dos lençóis . Perto, os cavalos se moveram um pouco e como se desejassem esconder aquilo [...]. Claras e breves palavras inseridas em meio à narrativa a tornar inquestionável o assassinato, eufemisticamente,  revelado nas expressões:  uma de suas mãos se apaga no peito do soldado, a outra lhe acaricia fugazmente o pescoço” E no movimento dos cavalos e na sua presumida intenção de esconder aquilo, o repúdio à injustiça praticada que, sob a proteção mórbida da autoritáriahierarquia ficará, como as outras,impune.  

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