domingo, 16 de outubro de 2005

Cavalos nas paragens


Juan Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Partiu de Cuzco, numa expedição que percorreu um vasto itinerário no qual enfrentou discórdias, lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial,  relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos.  No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em busca de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade. 

            As portas, as janelas, os pedaços de tetos e de paredes eram transportados nas carretas. E os móveis, tábuas novas, pedaços de sacada e roupas brancas, colheres e facas, ferramentas. Com pressa,  haviam arrancado a cidade de suas ruas e de suas praças para reconstruí-la mais além: Não levamos as ruas porque estão em nós, somos uma rua, um caminho real [...], diz o capitão. E sob as nuvens geladas, a levaram até que os capitães, os soldados, o padre decidiram que a chuva estava a indicar-lhes o lugar  do novo assento. As carretas se detiveram e, com muito frio e sem falar, os soldados começaram a descarregá-las. Apenas nasceu o dia, elevaram-se as vozes e os ruídos do trabalho: bater de tábuas, chiado das serras, golpes de martelo. E o chão foi se cobrindo de madeiras e móveis, montes de roupas, armas, utensílios, frutas e grãos, pedaços de pão atirados no barro, pisados pelos cascos dos cavalos.

            Na cidade deixada para trás, os cavalos  haviam caminhado sobre as primeiras tábuas derrubadas. Caminhavam firme sobre elas, escorregavam um pouco e se mantinham mais dignos, mais perigosos. Haviam marchado sobre os escombros, saltando portas e janelas ou afundando os  cascos nos seus marcos.  A trotar sobre as madeiras, arrastavam as roupas – lençóis pendurados no pescoço e nas garupas  camisas, calças e  borzeguins -  e pedaços de móveis presos nas selas.  Cumpriam, assim, os desígnios de Juan Núñez de Prado, ao argumentar com seu capitão as condições da mudança:   lançaremos punhados da cidade nas nossas montarias, penduraremos alguns restos de roupa, móveis, molduras nos pescoços dos cavalos ou dos índios, levaremos quanto pudermos. Então, deslizavam as vigas que sustentavam os tetos e  desmoronavam as janelas e as portas e os cavalos cheiravam a madeira e sacudiam com medo suas patas. Depois, se detinham   e olhavam para dentro das casas, aguardando algo, um barulho, uma respiração, um soluço, um lamento.

            Porque, assim como da primeira mudança houve aqueles que se negaram a partir e foram enforcados, na segunda, eram muitos os que não podiam partir, minados que estavam pela doença. Entrincheiravam-se nas casas  enquanto Juan Núñez de Prado e seus capitães discutiam se deviam levá-los junto ou abandoná-los a sua sorte: talvez os enforcaremos, talvez os deixemos amarrados na casa do aguazil ou do alcaide, inertes, incapazes de se rebelar e de fazer nada de mal, nem nada de bom [...].

            Soldados lançam seus cavalos contra as paredes; outros tentam defendê-las e são golpeados, amarrados, feridos. Dúvidas  se renovam a cada  uma das decisões entre as certezas que fazem avançar. Algum inesperado argumento questiona verdades e convenções como o do capitão Guevara a respeito do que deixarão para trás: mortos e feridos, casas a meio arrebentar, ainda vivas, gado triste   e ferido, cães meio mortos de fome, cavalos sem freios, trotando loucos nas ruínas.

            Entre as desarmonias do cenário, instauradas pelos homens, e o ritmo intrincado de suas ações a contrastar, por vezes, com a simplicidade das águas do rio, correndo quietas, do cacarejar das galinhas, da quietude dos cavalos. Deitados sobre lençóis, em meio a sacos de trigo e milho esparramados, pareciam mostrar aos homens o enorme erro e desorganização que havia em tudo isso.

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