domingo, 23 de outubro de 2005

Os cavalos e seus cavaleiros


Juan Núñez de Prado foi designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade. Partiu de Cuzco, numa expedição que percorreu um vasto itinerário no qual enfrentou discórdias, lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em busca de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.


             Dois, três, quatro dias, talvez sete noites, sete madrugadas os viram passar sobre seus cavalos. Dormitavam, por vezes, na sela do cavalo;  apertando as virilhas do animal, golpeando-lhe o peito, ajustando ou apertando a cincha saíam ao trote, ao galope, em disparada. No decorrer da ação – construir e destruir a cidade, transportá-la Continente adentro – Juan Núñez de Prado e seus capitães montam e desmontam, lançam os cavalos sobre os prisioneiros, sobre  as moitas  e empurram-nos contra a parte traseira das carretas; dão-se conta de sua presença pelos relinchos e pelo ruído dos galopes distantes e,  quando passam perto, carregados ou batendo nas madeiras.  Ou, pelas efêmeras imagens que oferecem, inseridos na paisagem, próximo das carretas e dos objetos espalhados pelo campo, ao se encabritar e mostrar,  levantando-se nas patas, seus belos corpos, sua resplandecente saúde; dormindo junto às fogueiras ou nos pátios, deitados sobre suas patas, voltados os focinhos para a noite azul, empapados os belfos no esplendor aveludado da lua[...].

            Para Juan Núñez de Prado é uma presença  captada pelo olhar : assim, o chegarem no extremo da rua, se despencarem pelos cerros,  se afogarem na correnteza, tiritarem na água fria do rio, se mostrarem belos, robustos, feios, doentes, cansados, velhos.  Percebida em todo o seu ser quando lhe parece escutar o som nítido dos cascos dos cavalos trotando em círculo por seus rins, por seu coração, por sua cabeça; sentida, também, no movimento de curta impaciência e nervosismo do cavalo ao mover o pescoço; e nas mãos ao acariciar a cabeça de seu cavalo ou  ao lhe bater, com tranqüilidade, na garupa; mais próxima, ao encostar o rosto no seu pescoço e lhe perceber  o calor ou quando a ele se abraça para não desmaiar. 

 Sugestivos, os registros de percepção dos cavalos em relação a seus cavaleiros. Simples, como referir que alguém assobiava para um cavalo e o cavalo movia as orelhas reconhecendo o chamado. Ou, em seqüências  que se inserem no relato para lhe diminuir o ritmo. Assim no episódio em que um dos soldados é maltratado: ele caminhava sem olhar para ninguém, adivinhando que se parasse o empurrariam outra vez e o golpeariam, tinha desejos de chegar logo, um cavalo desbastava o capim junto das acéquias, levantou a cabeça para se certificar  de que não era o seu dono. Assim,  noutro, em que sob a chuva os soldados gritam entre si enquanto os cavalos empurravam  a terra e relinchavam sem vontade e olhavam para eles espichando os belfos gelados, desejosos de saber que faziam que pretendiam fazer esses miseráveis soldados que maldiziam e suavam e se queixavam e perguntavam pelo fogo, pelas comidas, pelo vinho, onde diabos, sob que lençóis, entre quais cestos e  vasilhas de prata e barro objetos inúteis e tão domésticos , estava o vinho[...].

            Nesse mundo de solidão, angústia, medo  ora nos céus, ora nas terras pelas quais avançam, se mostram, fugazes, imagens alentadoras: em meio ao caos instituído, são verdadeiros acenos de alegria que, igualmente, irrompem no liame estabelecido entre os homens e os cavalos que os conduzem. E que o narrador aponta não apenas como um dos elementos para construir o relato, mas  para revelar os absurdos, as incongruências e as crueldades  resultantes das escolhas dos homens.

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