domingo, 11 de dezembro de 2005

Recursos de Dyonélio

       
Luiz, Leo e Maneco Manivela saem de Porto Alegre, numa sexta feira, para um curto passeio até a praia. Na volta, devem parar em Águas Claras devido a um grave defeito no pequeno caminhão em que viajavam. Encontros ocasionais se sucedem no hotel onde se hospedam até encontrar a solução para o conserto, fazem crer a Manco Manivela que é perseguido pela polícia política. Sem comentar com ninguém as suas preocupações, ele vai se deixando dominar pelo medo. Sinuoso, o relato, mais do que as aventuras dos amigos na pequena viagem empreendida, se constitui de sua aventura interior. É a partir dela que Maneco Manivela irá se revelando em Desolação, romance de Dyonélio Machado, publicado em 1944 e, neste ano, em nova edição da Planeta do Brasil.

            Presa fácil de sustos, receios, angústias que a sua imaginação incrementa e que se traduzem, por vezes, em sensações físicas, por algum momento, procura dormir, descansar, espichar as pernas e dobrá-las como um polvo espreguiçando-se ou, num relaxamento repentino, sentar-se inclinado para a frente, com as pernas afastadas, as mãos unidas, os seus braços, a pender entre os joelhos que se mostram como dois ramos dum compasso de espessura. Quase sempre, se deixa dominar por um medo súbito como uma emboscada, por um desgosto intenso dolorido, como uma ferida sobre o peito; ou se abisma numa apreensão, como se afundasse lentamente no atoladouro; embaralha suas idéias como se uma coisa qualquer caísse sobre um bando de aves e as assustasse e dispersasse.

            Percebe que as tensões lhe enchem os músculos como o vapor enche uma caldeira e que a inquietação os faz vibrar como se houvesse encostado o corpo num motor em pleno movimento. Diante de uma situação, que presume perigosa, sente como que umas picadas de fogo a queimar-lhe o couro cabeludo e os ossos do crânio. Quando imagina que irão invadir o seu quarto, se apossar de sua pessoa e arrastá-lo, o coração como que perde o ritmo natural, um ritmo tão regular como o trabalho do cilindro num motor.

            Como faz do símil um elemento expressivo e determinante para marcar a figura plena de nuanças de Maneco Manivela, o romancista gaúcho, igualmente, o emprega para assinalar gestos, comportamentos de um personagem/figurante do qual nada mais ou pouco mais é mencionado. O empregado do hotel, ao ser chamado, vai atender como acionado por uma mola. Leo, quando carrega a lata de gasolina e a entrega para Maneco Manivela, faz um movimento como que desenrola alguma coisa. E, ao caminhar pelos cômoros, seus pés afundam como quem vai sendo aos poucos engolido por um sumidouro e ao deixá-los para trás, neles ficam impressas suas pegadas fundas como o rasto dum animal do deserto. O solicitador, cujo interesse pelo pequeno caminhão o leva a permitir que seja guardado no pátio de sua casa , quando o estão levando para lá, vai na frente como um guri entusiasmado, alerta. O chofer do Studebaker que encontram na estrada e lhes vende um pouco de gasolina, atenta para o pequeno caminhão, acha graça e vai lhe passando a mão “como se faz com um animal de montaria. Síntese perfeita a delinear Bagé, o elemento provocador (aquele que incita a confidências ou opiniões politicamente comprometedoras, a serviço da repressão), a seqüência que relata como, após contar na pequena roda, na qual se introduzira, suas peripécias revolucionárias, ele vai embora como veio espiando-se, guinando para um e outro lado, como quem percorre um labirinto invisível, por fim esgueirando-se por uma das portas.

            Considerado um escritor em que, no ideário do conjunto discursivo está o realismo, Dyonélio Machado, ao usar o símil em que o segundo elemento, o termo ideal é constituído, quase sempre, de objetos concretos ou de sensações reais, para dizer de seus personagens, como se não procurasse efeitos estéticos, mas, sobretudo, demonstrar ou explicar em busca da precisão.

 

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