domingo, 4 de dezembro de 2005

Em Desolação, as areias e o Borboleta


            Desolação continua a história que se inicia em O Louco do Cati, onde se interrompe no capítulo treze e cujo epílogo, depois da trajetória narrada em Passos perdidos, somente se dará em Nuanças. Publicado, em 1944, terceiro romance de Dyonélio Machado, acaba de ter, neste ano, uma nova edição, desta vez, da Planeta do Brasil. Como O Louco do Cati e Passos perdidos, é um romance de excepcionais qualidades na perfeição de sua estrutura narrativa e de seus recursos formais que a aparente simplicidade parece escamotear.

            Se abundante é o uso das aspas e das palavras em itálico a marcar ironias, a indicar a visão dos personagens sobre o que lhes acontece, a significar, a respeito de algum objeto, uma função diferente daquela que lhe é própria ou de frases entre parênteses a explicar sentimentos ou idéias, a completar dados ou, ainda, o reiterado emprego do pleonasmo, embora em menor número, neste texto do escritor gaúcho, os símiles não são menos expressivos. Muitas poucas vezes, eles se constroem com as expressões semelhante, qual e parecer. Na sua grande totalidade – mais de cinqüenta – são introduzidos pela partícula comparativa como e se relacionam com circunstâncias do relato e com os personagens. Assim, se referem ao cenário: O campo ao redor doestabelecimento” é raso como uma tábua; às árvores, de copa pequena, troncos grossos, retorcidos como forjados entre tenazes, laboriosamente. Outros, a certo momento do dia, um entardecer que se define por esse halo, cujo lilás desmaiado abraça o horizonte, como num vasto anel; às  nuvens que se cruzam rápidas, como tocadas por esses ventos frios de inverno. Ou à areia, elemento dominante de uma  paisagem desértica que se estende, como uma fita enrugada, amarrotada (dos cômoros), perto do mar, de norte a sul por muitas léguas. Uma areia que entra pela fresta da casa, pousa na comida, nos talheres, na louça, nos copos e no fundo das xícaras, como um açúcar mal dissolvido. Que é levantada pelo vento como uma praga daninha, como uma praga assola a região com seu vôo, e, lançada no ar pela brisa é como um borrifo seco. Areias móveis, tênues e finas que envolvem os homens, soterram a vegetação e quase fazem desaparecer o povoado junto ao mar. Soprando dos cômoros, parecem assim fumegar, como se estivessem ardendo num fogo sem combustão. 

            E, assim, muitos símiles esboçam o Borboleta, pequeno caminhão em que os três moços viajavam nesse passeio que desejavam breve e foi prolongado à revelia de todos, devido a problemas no seu motor. Estático, visto de longe, sob os eucaliptos, quando  voltavam da praia, se mostrava inclinado para um dos lados, como essas velhas diligências que os solavancos e a desigualdade das cargas a suportar, acabavam por tirar de sua posição simétrica de equilíbrio, e que assumiam assim um caráter mais degradado, mas também mais íntimo. Rodando pela estrada, no amanhecer, sua sombra, tornada fantasticamente aguda como uma lança, avança rapidamente à sua frente, como se fosse ferir alguém que estivesse lá adiante, longe. Mas, principalmente, revelam as comparações o que  esse pequeno caminhão significa para os seus  ocupantes. Conferindo-lhes traços que soem ser dos humanos, eles o percebem mudo e enigmático, como um ídolo, familiar e dócil como um animal doméstico, fiel como um bicho, à espera, como um ser vivo, paciente, enquanto opinam sobre ele.

            Então, quando presente nas seqüências descritivas, o símil, neste romance de Dyonélio Machado, busca precisar formas e movimentos. Também, na relação  entre os viajantes e o Borboleta – um personagem mais do que um ser inanimado – evidenciar  os liames não enunciados.

E é no uso de um recurso básico da linguagem – desta forma é considerada a comparação pelos teóricos – que Dyonélio Machado demonstra não apenas uma  escolha pelo despojamento estilístico mas, como disse Guilhermino César, saber amassar o seu barro com estilo próprio, inconfundível.                     

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