Salvo aqueles
que, ao longo dos anos têm se apropriado, ilegitimamente, das riquezas do
Continente, a maioria de seus habitantes sempre esteve à deriva, dona somente
de ausências. Porque nunca deixou de lhe ser negado esse mínimo que deveria ser
direito de todos para viver com dignidade. Como lhe tem sido, também, negado,
almejar tais direitos. Daí ser muitíssimo sugestivo o título do livro de Celso
Lungaretti que a Geração Editorial de São Paulo lançou em outubro deste ano: Náufrago
da utopia. Pois não apenas expressa o estado de espírito de seu autor como
o de muitos latino-americanos que tentaram mudar o destino do Continente e
foram massacrados pela repressão; ou, poupados, por sorte ou por
circunstâncias, viveram para presenciar os descalabros da miséria, cada vez
maior, que reina nos seus paises e das injustiças como norma, resultado das
supremas incompetências e dos paroxismos da corrupção de seus governantes.
Se,
de certa forma, o sub-título do livro, “Vencer ou morrer na guerrilha aos 18
anos” sintetiza e restringe o seu assunto, o que nele é narrado vai muito além
de uma experiência individual.
Escritor,
poeta, jornalista a construção de seu relato e o escorreito da linguagem
revelam alguém que sabe usar o seu instrumento de trabalho. Dividida em três
partes, a narrativa é feita na terceira e na primeira pessoa. Ao tratar do
movimento estudantil e da luta armada, não lhe pareceu apropriado – assim Celso
Lungaretti o explica – colocar-se como protagonista; ao narrar as torturas
sofridas, não se sentiu à vontade para fazê-lo na primeira pessoa que usa,
então na terceira parte do livro, quando retoma
o controle de sua vida na luta empreendida para esclarecer os episódios
que, em 1970, o transformaram num renegado. Opção pessoal que, instigante, dá
ao texto algo de ficcional tanto quanto o dinamismo do ritmo narrativo,
conferido pelo uso do presente para relatar fatos do passado. Recursos que,
juntamente com a linguagem sóbria (raras vezes cede à emoção e se permite um
comentário mordaz) estão a serviço de uma tocante narrativa: o caminho
percorrido por um jovem que escolhe a luta armada para se opor à ditadura
militar vigente e a suas diretivas e que, preso e torturado, atingiu o limite de resistência e cedeu ao ser
obrigado a escrever uma carta de renúncia as suas convicções e a dar uma
entrevista, dizendo o que lhe ordenavam com armas na mão. E, ainda, ser
considerado um delator pelos companheiros de luta e, como tal, responsável pela
derrota da guerrilha.
Denso
testemunho sobre uma História que a História Oficial quer ignorar, sepultando-a
no silêncio e que Celso Lungaretti torna próxima, mostrando combatentes não
como heróis, mas como pessoas passíveis de grandezas e de fragilidades.
Vislumbram-se os pusilânimes, os medrosos, os oportunistas, os preconceituosos,
os politiqueiros, os temerários, os honestos, os bons companheiros, os
que,verdadeiramente, são movidos por ideais. E, assim, também, um testemunho
sobre as relações humanas com suas invejas e vaidades que o ideal não é
suficiente para vencer. Evidenciam-se, as rivalidades, as bravatas, a
arrogância dos que se acreditam intelectuais. E as retóricas inúteis, as
dissidências, que, juntamente com a falta de organização, o seguimento de modelos
alienígenas, a inexistência, por falta da instrução militar necessária à luta
armada, tornavam mais difícil atingir resultados. E, ainda, o doloroso
testemunho desse tempo que passou nos cárceres da ditadura, em que a
prepotência e o arbítrio, em nome de verdades ou, mais precisamente, em nome de
nada, feriam e ultrajavam e matavam os militantes.
Mas à
juventude é permitido acreditar na utopia. Celso Lungaretti, almejava, como
tantos, construir uma sociedade nova.
Tinha dezoito anos e lhe era inimaginável prever o preço que pelos seus sonhos
ele iria pagar.
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