domingo, 18 de dezembro de 2005

"A esperança é de cristal"


             Há trinta anos atrás, prêmio Casa de las Américas, La canción de nosotros vinha à luz, em edição da Editorial Sudamericana, de Buenos Aires. Eduardo Galeano era, então, diretor da revista Crisis e já havia publicado Las venas abiertas de América Latina e um livro de contos, Vagamundo. Depois, se seguiriam Dias y noches de amor y de guerra, Memorias del fuego, Patas arriba e Bocas del tiempo além da sua vasta e constante obra jornalística.


             Mestre da narrativa curta, La canción de nosotros é uma exceção entre os seus textos. Romance, panfleto, testemunho ou documento histórico – desnecessário dar-lhe um rótulo pois seu autor não desejou fazê-lo e, certamente, não faltarão teóricos que disso se ocupem – mais pertinente  é se ater a seus temas ou a seu tema central. Obra escrita num momento cruciante para os países latino-americanos, está em uníssono com uma grande parte da sua ficção, quando descreve caricaturalmente o opressor (Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos) e, tragicamente, o oprimido (José Maria Arguedas,, Manuel Scorza, Carlos Fuentes, Miguel Angel Asturias).

            O livro, dedicado a Montevidéu, se inicia com um poema e se constrói, sobretudo, a partir de dois destinos: Marino e Ganapán. Entre eles, Fierro. Não mais o de José Hernández porque esse levantou a sua voz, mas um Fierro cuja opção política só o pode aniquilar, por irreversível e porque a repressão dificilmente abre mão de sua presa. Ao redor dos três, os famintos, os marginais, os desempregados. E, dominando a cidade nos seus habitantes, “a máquina”: retrato fiel (e/ou melhorado) ou simples herança daquela que dominou a América Latina no século XVI e seguintes e de cujos feitos Eduardo Galeano extraiu a matéria dos capítulos “El Santo oficio de la Inquisición”: A máquina que tortura, que aniquila, que mata e que, se não se constitui o cerne da obra, é expressão convincente do que em muitas reuniões internacionais se define como atentado aos direitos do homem.

            No relato, Mariano, jovem jornalista de parcos recursos, sente-se realizado apenas em escrever a verdade. Esta escolha – desde os tempos imemoriais, rejeitada pelo poder – ou sua amizade com Fierro, levam-no à prisão.

            Ganapán, criado num orfanato, ex-operário sem trabalho e que, segundo ele próprio, veio ao mundo para sofrer (Nasci torto ou me puseram mau-olhado), encontra Mariano ferido entre as macegas, fugitivo da prisão. Esconde-o no seu barraco, o alimenta, dividindo o quase nada que tem e o trata. Recuperado, um dia, Mariano parte sem se despedir. Tempos depois, volta para agradecer.

            As últimas páginas do livro contam do reencontro dos dois marginalizados: um, proibido de pensar; outro, impedido de conseguir condições para viver. Sob um teto cheio de goteiras que deixa passar a chuva, tomam um pouco de vinho e fumam um cigarro feito de xepas, conscientes e convictos de que somente respirar não basta: algo é preciso fazer. Nesta convicção e nas palavras finais do livro As duas sombras gigantes se aproximaram nas paredes de lata, a simbologia otimista a sugerir um entrelaçar de forças, um intuito de luta.

            No conjunto da obra, a riqueza da palavra, a expressão da angústia, as interrogações, a denúncia da repressão. A cidade sugerida, presente no mar, no porto, nas folhas de plátano, nas gaivotas, no detalhe da vida cotidiana. O temor do hoje que, só por sorte, pode se transformar no amanhã; as perguntas que são reflexões (como é que nós éramos?, Quem éramos?, Não voltarão a se juntar nunca os pedaços que nos fizeram possíveis) ou deveriam levar à reflexão. Sobre a palavra ou sobre o poder da palavra e se basta escrever para redimir-se ou redimir. Ou se, unicamente, a ação é redentora porque a canção se esvai, se dilui num testemunho repetido a exaustão na América, mesmo sendo chama e esperança em dias de paz.

            E a esperança do povo, diz o Eduardo Galeano, é feita de cristal.

 

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