domingo, 27 de novembro de 2005

A pilhagem

       

Em 1987, a Tchê! de Porto Alegre, publicava, numa tradução de Paulo Hecker Filho, O inglês dos ossos de Benito Lynch, uma obra perfeita tanto no que se refere ao fazer literário como à imagem do Continente que oferece. Embora como os demais romances do escritor argentino não tenha merecido minuciosos estudos críticos, não lhe faltam definitivos louvores como os de Anderson Imbert que, ao se deter na sua complexidade interior, no seu espaço, delineado pela cor local e pelo saboroso linguajar rural onde o romancista tece uma hábil teia de circunstâncias e acontecimentos e sutilmente observa o despertar do amor, considera que se trata de uma obra-prima. Porém, mais sutil e nem por isso menos sugestiva, é a imagem esboçada do Continente, a partir dos personagens eixos – Balbina e Mister Gray – e das relações que entre eles se estabelecem.

            Balbina, personagem luminosa, símbolo puro da vida agreste, deixa-se envolver pelo sentimento que pressente no inglês cujos olhos azuis lhe diziam tantas coisas boas e formulavam tantas promessas na sua linguagem sem voz e sem palavras. Mas, as palavras, até um certo momento desnecessárias, terão razão de ser no momento crucial da separação. No monólogo de Balbina e no diálogo de sua mãe com Mister Gray, fica bem claro o antagonismo da visão de mundo de um e de outro.

            Desesperada com a partida do inglês, Balbina se refugia no seu quarto e procura entender o abandono de que foi vítima. Jogada na cama, sem forças, argumenta, busca soluções: mas se ela havia pedido tanto que ele não partisse...mas não se tratava de uma ilusão tola que se fizera pois ele havia falado muito claro que gostava dela...mas ele lhe havia dito que se pudesse evitar nunca a deixaria sofrer...mas por que não dizia, simplesmente, ao patrão que ia ficar um pouco mais... mas,por acaso, não tinha dinheiro suficiente para descansar onde bem lhe aprouvesse...

            James Gray, o universitário inglês continua a trabalhar. Sob o sol e o vento, raspa, sem vontade, uma velha caveira humana e pensa no diálogo que tivera com a mãe de Balbina que o recriminava por a ter desenganado. Mim não promete nunca nada, havia respondido. Mas o que não respondia a si mesmo era como evitar o sofrimento da moça porque, embora a solução  estivesse nas suas mãos, ele não podia ceder. Seu desejo era trabalhar pela Humanidade, por compromisso moral contraído consigo mesmo; seu destino, o de perfazer um longo caminho de progresso escolhido de antemão e marcado pelo cálculo; e como homem prático e sério tinha recorrido ao sistema mais prático e mais sério também, o sistema da verdade inconteste. A vítima assim não padece dúvidas. Ou se resigna, ou morre de dor.

            Na excelente introdução ao romance da edição da Troquel de Buenos Aires, Julio Caillet-Bois diz que Benito Lynch, ao opor a civilização inclemente, determinada por razões práticas, ao livre impulso afetivo, insiste num dos temas do século XIX: o protesto contra as doutrinas materialistas e utilitárias que irão se impor com os avanços científicos.

            Em O inglês dos ossos, esse repúdio, sem dúvida, contém, igualmente, um outro, muito peculiar ao Continente. Ingênuos, os hospedeiros de James Gray não percebem a importância dessas caixas cheias de material arqueológico que ele envia para Londres; por sua vez, o inglês não se detém diante das lágrimas de Balbina. Afinal, não tinha vindo para a América em busca de uma mocinha de rancho para se casar; mas em busca de velhos cemitérios indígenas para cavoucar depressa. Assim, acompanhado de suas caixas, contendo ossos de índios, parte Mister James. Não fora levado a sério ao chegar, montado num petiço e de guarda chuva aberto e houve risos. Sua partida deixa atrás de si a tragédia mas, não ouviu os prantos. Como se o pertencer ao mundo dos civilizados lhe desse o direito de ferir o âmago do Continente: levando embora suas riquezas, impondo, sem contemplações, o sofrimento àqueles que o acolheram de coração aberto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário