domingo, 18 de setembro de 2005

O Poeta e a morte


            Pablo Neruda, recém havia chegado em Barcelona, na década de trinta, quando recebeu a notícia da morte de seu amigo Alberto Rojas Giménez,  figura ímpar que ele descreveu em Confieso que he vivido e cuja morte,  ocasionando-lhe uma dor muito intensa,  foi motivo da elegia que, então, escreveu: “Alberto Rojas Giménez viene volando”, longo poema de vinte e duas estrofes, publicado na Revista Ocidente e, que faz parte, também, de Residencia en la tierra.  Como observa Emir Rodriguez Monegal em El viajero inmóvil, a notícia, recebida através de um telegrama, chegou, para Pablo Neruda, como se o  próprio Alberto Rojas Giménez  viesse voando - daí esse estribilho que acompanha cada uma das estrofes -  e com ele, todo o seu mundo, arrastado como por um furacão de poesia. Um mundo onde as violetas, as magnólias, os lírios, a papoula suavizam o prosaico de um cenário urbano cujos contornos se oferecem na enumeração que mescla dentistas, advogados, aviadores, notários, mulheres que desfazem tranças com farmácias, cinema, canais, túneis, caracóis congelados e peixes sujos, meninas submergidas e plantas cegas. Sobretudo, um espaço intensamente relacionado com Alberto Rojas Giménez e com o que a sua perda significou para o Poeta. Assim, as palavras indicativas de lugar, nas primeiras treze estrofes – entre, sob, mais abaixo, mais além, sobre, perto, enquanto conduzem  o amigo desaparecido, através dos mares, num percurso situado  entre a realidade e o sonho. É o inverno chuvoso, como poucos, até então, no Chile, em que Alberto Rojas énez atravessou a cidade, sem agasalho, loucura  que resultou na broncopneumonia que o iria matar dois dias depois; e é a  chuva torrencial caindo sobre a cidade durante o seu velório e que inundaria o cemitério, que leva Pablo Neruda a falar do “cemitério sem paredes”, da chuva a cair dos dedos do amigo,  de seus ossos, de seu “coração caindo em gotas”. Aniquilamento  que  ele quer refutar  (“Não estás ali rodeado de cimento”, “Não é verdade tanta sombra”, “Não é verdade tanta sombra em teus cabelos”)  mas que,  inelutável,  deve  ser aceito ainda que  no eufemismo  do verso “com traje novo e olhos extinguidos/vens voando”.

            As últimas estrofes da elegia dizem de uma natureza sombria, marcada por  “andorinhas mortas”,  “vento negro”,  “peixes sujos”,  “mar morto”, “um cheiro de manhãs chovendo”. E da tristeza que o invade na alma onde chora, na solidão do “nada” e do “ninguém”, somente povoada de “uma escada degraus quebrados” e de um “guarda chuva”.   

            Nesse alternar de expressões que remetem ao trivial com as que,  ricamente sugestivas, beiram o alucinatório –  nelas,talvez,  já esteja o prenúncio da poesia “sem pureza” que Pablo Neruda postulará no primeiro editorial da revista Caballo verde para la poesia, publicada em Madrid no mês de outubro de 1935 – se formam matizes cambiantes nos quais se inscreve, igualmente, a ilusão do Poeta. Porque do amigo possui, somente, o que presume ouvir ( as suas asas  e o seu lento vôo)  e, de certo, apenas, esse golpear da “água dos mortos”.

 Em meio aos versos da última estrofe,  ainda a falar das perdas – Alberto Rojas Giménez vem voando “sem açúcar, sem boca, sem roseirais”- advém a compreensão do Poeta. Seu amigo vem voando  “ sozinho entre  mortos, para sempre sozinho” a cumprir o fado dos humanos.

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