domingo, 11 de setembro de 2005

Apoiado em Pablo


          Foi escrito entre outubro de 1979 e maio de 1980, em Caracas e Mérida e em Paris, o que foi chamado por Carlos Droguett de um prólogo poético à narrativa que leria no  “Coloquio sobre el Cuento latinoamericano”, realizado na Sorbonne, em 1980,  o que não ocorreu por falta de tempo:  um  poema, gênero inusual no romancista chileno, cujo título “Augusto Pinochet Ugarte viene volando”, foi calcado  em “Alberto Rojas Jimenez viene volando” de Pablo Neruda. Ao título, perfeitamente, reconhecível, Carlos Droguett acrescenta a expressão  “Apoyado en Pablo”,  o que significa ter usado a mesma estrutura de estrofes de três versos e o mesmo estribilho: Vienes volando, em cada uma delas. Porém, enquanto Pablo Neruda expressa, no seu poema, a tristeza que sentiu, ao receber, na Espanha, onde recém havia chegado, a notícia da morte de seu amigo Alberto Rojas Jimenez, o romancista chileno exprime o sofrimento indignado diante dos crimes cometidos pelo militar que usurpou, com indescritível violência, o governo de seu país. Como relata no seu livro de memórias, Confieso que he vivido, Pablo Neruda escreveu as vinte e duas estrofes sob o signo imediato da emoção; ao acrescentar a seu poema datas e lugares, Carlos Droguett registra a duração do tempo em que o poema foi sendo escrito, no exílio, fruto de uma emoção experimentada seis anos antes e que se intensifica com o passar do tempo. Enlaçando-se a figuras precisas – o amigo, o déspota – os poemas revelam, na sua intenção e nos  seus sentimentos ser  um o reverso do outro. Assim, o que há de luminoso na menção à figura do amigo, - Oh! papoula marinha,oh!parente meu / oh guitarreiro vestido de abelhas, celeste voz- é sombrio desprezo nas referências ao verdugo chileno: Vestido de assassino e inteiramente nu, oh! traidorzinho vestido de cadáveres.
 

De claros-escuros é feito o vôo de Alberto Rojas Jimenez, companheiro  de juventude do Poeta que lhe traça o perfil como um elegante, um boêmio, um desprendido, uma figura que tudo ilumina. No poema de Carlos Droguett é um retraçar de caminhos turvos:  Pentágono, Carlos Prats estraçalhado pela bomba de um atentado, o palácio de La Moneda incendiado, dólares, garras, de onde emergem os esquerdistas cegos, as donzelas rotas, os operários desaparecidos, os berços afogados, os estudantes mortos, punhais, túmulos, queixumes, vítimas, a bandeira suja que, indissoluvelmente, se liga aos cenários e aos tempos de horror a que o 11 de setembro de 1973 condenou o Chile; e um percorrer de   labirintos de misérias: sob túmulos e cadáveres, além do sangue, dos ossos, do próprio vômito, sobre saques e farmácias, entre frascos de aspirina morta.

            Na última estrofe, a morte condenando ao aniquilamento – não mais sombra ou nome, não mais açúcar ou roseirais – iguala Alberto Rojas  Jimenez a todos os mortais. Como o iguala a definitiva solidão do ser humano diante da morte que o Poeta presume: Vens voando, sozinho solitário / só entre os mortos, para sempre só.  Versos retomados, na íntegra, por Carlos Droguett, também, na última estrofe do seu poema. Antes, porém, não poupa esse cujo nome não ilude. Nos seus versos, ele  vem  voando sobre um cemitério só dele, onde seus pobres regimentos se extraviam.  Ele vem voando enquanto  seus próprios excrementos caem, enquanto o sangue de seus dedos caem, enquanto o pus de sua família cai, enquanto suas vítimas e suas genuflexões caen. E, se, voando, ele vem liberto de crimes ( dos túmulos e das greves), vem  igualmente privado de consolos ( do açúcar,  do pão, da pátria, dos sapatos). Acompanhado, porém, dos seis mil olhos, fatais, já desfeitos.

            “Augusto Pinochet Ugarte viene volando” não foi lido no auditório da Sorbonne nesse dia de maio. Carlos Droguett voltou a seu exílio na Suiça e não viveu para voltar a pisar a terra de seu país, livre dos esbirros ditatoriais.

 

 

 

 

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