domingo, 4 de setembro de 2005

O chapéu perdido


 
            Ele ocupa um lugar no bonde e chama a atenção do cobrador e dos passageiros ao dar o centenário, um dinheiro falso, para pagar a passagem e, também, pelo chapéu que usava. E’ o homem do chapéu, magistral figura do romance O Louco do Catí de Dyonélio Machado. No fim da linha, vê, ao longe, o armazém e para lá se dirige. Outra vez, o impasse com o seu centenário que acaba negociado pelos cigarros que fora comprar. Os fósforos, pagos por um dos rapazes que ali estavam preparando uma viagem breve até o mar. A eles, se incorpora. Parecia ser meio louco (o que não tinha importância) e sem recursos (somente daria despesas), mas, Norberto que apressava os companheiros para a partida, concluiu que empenhariam o seu chapéu. E, assim, se iniciou, para ele, a viagem que resultaria bem mais longa do que a anunciada. 

 Se, na ida até o Rio de Janeiro e no Rio de Janeiro as circunstâncias e Norberto lhe determinaram o cotidiano, na sua volta para o sul, o itinerário, os meios de transporte, o alojamento, o traje, algum lazer foram decididos por aqueles que aceitaram dele se fazer cargo. Além de sua iniciativa de entrar no bonde em Porto Alegre, descer no fim da linha, comprar cigarros e, já em Caxias, a passagem para Santa Maria, ao longo desse percurso que não escolheu, esteve sempre sob a guarda de alguém. Protegido, porém despojado de vontade própria. Raramente, manifestou o seu querer e, quando o faz, ele não é atendido. Assim, Norberto decide que deve voltar para o sul, mas na pensão onde moravam propõem que fique ainda um tempo; depois, a sua revelia, o embarcam, recomendado a um casal, para Santos. Ao chegar,  eles o levam junto para São Paulo e, na volta, é embarcado para Florianópolis. Lá, o médico de bordo passeia com ele pela cidade e lhe consegue lugar num caminhão que ia para Lages. O chofer o hospeda na sua casa (Lhe sai mais em conta), decide se vai junto com a família para a feira e, para atender ao desejo da mulher, quando deve ir embora. Para isso, pede ao coronel que partiria para Caxias que o leve junto. O coronel, não apenas lhe cede um lugar no carro, como providencia o seu pernoite e, no dia seguinte, a viagem de trem para Santa Maria, onde o convence a dar uma volta pela cidade. Depois, a viagem para Livramento, e de avião (o coronel lhe paga a passagem) para Quaraí. O mau tempo que impedira a viagem por terra, obriga à aterrissagem forçada, em pleno campo, perto de uma fazenda para onde se dirigem os passageiros. Um deles, tem a capa preta com botões dourados. O louco do Catí não lhe tirava os olhos, encolhido, desandando no vento, que tudo fazia para lhe arrebatar o chapéu de Norberto... o chapéu que lhe ficava grande. Na tarde escura, se assusta diante dessa figura, de aspecto estranho, lendário e grita  – O Cati! O Catí!. É a lembrança que o persegue desde guri: o temor que a todos paralisava diante do que ocorria no Cati; o homem preso, manietado que iria ser morto, que vira quando menino. Lembranças feitas do medo a ressurgir sempre que se depara com imagens remetendo à muralhas, a uniformes negros ou à situações que presume ser ou que, efetivamente, são de violência. E que sob o mau tempo, o levam a fugir pelo campo e desaparecer. Ia em busca do... Cati! , conduzido, guiado noite a dentro, já sem o fito de lutar, se entregava aos demônios de sua infância e não errava a estrada. Quando o dia rompeu Já vinha sem o chapéu. Compreendera que não valia a pena se opor ou fugir dos fantasmas que estavam na origem de sua humilhação inferior: olhar triste, gestos de alegria, silêncio. Ao seu redor, sob as nuvens que se afastavam, a terra se clareava toda e as ruínas do Cati, cenário de tantos crimes, já não eram mais do que escombros. A luz e a nova certeza o transformaram e com o chapéu extraviado, perdera-se o querer dos outros. Liberto, ele sorria.
            Era, ainda, muito moço.

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