domingo, 30 de dezembro de 2001

Curioso silêncio


Ao apresentar O florete e a máscara, Zahidé Lupinacci Muzart observa que, salvo exceções, as dissertações de mestrado têm ficado inéditas e que, felizmente, não é esse o caso do brilhante trabalho de pesquisa de Valéria Andrade Souto-Maior. No entanto, o que talvez seja efetivamente para lamentar é que uma boa parte das pesquisas, realizadas com o objetivo de atender as exigências da carreira universitária, resultam em textos de discutível qualidade e, sobretudo, distantes de temas que seriam de real proveito para o país. Daí ser, O Florete e a máscara (Florianópolis, Editora Mulheres, 2001), sem dúvida, um trabalho digno de nota. Pela seriedade demonstrada na busca de um material – como soe acontecer sempre no Brasil – de difícil acesso, pela sagacidade na análise do corpus escolhido, O voto feminino, peça teatral escrita por Josefina Álvares de Azevedo, em 1891, e por oferecer, a partir dos resultados alcançados, inúmeras vertentes de estudo sobre a dramaturgia brasileira escrita por mulheres.

            O florete e a máscara, além do Prólogo, “Para Repensar a Dramaturgia Feminina Brasileira do Século XIX” em que Valéria Andrade Souto-Maior expõe o seu plano de trabalho, inserido no propósito de recuperação da história silenciada da produção literária feminina brasileira e as dificuldades – tão conhecidas e tão previstas – em obter informações bibliográficas e os textos junto às Instituições que se perdem, quase sempre, em incontornáveis meandros burocráticos, se compõe de três capítulos. No primeiro, “Ato I, O Peso de um nome, uma obra de Peso”, a Autora fornece os dados que lhe foi possível conseguir sobre a biografia de Josefina Álvares de Azevedo, na verdade, parcos e incertos, pois, conforme consta, enquanto não for encontrado o seu registro de batismo não haverá certeza quanto ao local de seu nascimento e a sua filiação; como, também, permanecem ignorados o seu estado civil, os estudos que fez e o local e data de sua morte. Assim, o que sobre ela é conhecido não vai além de sua atuação como defensora ativa e incansável dos direitos das mulheres no Brasil. Tudo o que fez, tudo o que escreveu e publicou – artigos, poesia, teatro, esboços biográficos, traduções – foi, primordialmente, em função desse ideal maior o que norteou todos os passos de sua trajetória: a emancipação social da mulher.

            O segundo capítulo, “Ato II, O Voto Feminino em Cena”, fará a análise de O voto feminino, comédia em um ato, o único texto de dramaturgia de Josefina Álvares de Azevedo, na qual ela reivindica para as mulheres um lugar na sociedade que não seja apenas o subalterno, preconizado até então. No Rio de Janeiro da época é onde se passa a ação, que se inicia com uma questão banal, a minúscula diferença numa conta de armazém, da qual se origina uma discussão em torno dos deveres e direitos da mulher. Valéria Andrade Souto-Maior examina minuciosamente a linha de ação dramática, os personagens, que retratam certos tipos e hábitos da sociedade fluminense de seu tempo, a linguagem de tom coloquial, corretamente adequado à realidade cotidiana e com as variantes próprias da expressão de distintos tipos sociais, o oportuno uso de peças musicais, do gosto da época, a completarem o perfil dos personagens e o conflito que se configura como o de um grupo contra outro grupo: o dos homens que não admitem a emancipação feminina, temerosos de perderem seus amplos poderes fora e dentro de casa e o das mulheres a se julgarem aptas para exercer atividades que, até então, lhe eram  vedadas. Também, examina as notas da imprensa que a peça, antes mesmo de ser levada ao palco, originou. E a sua estréia, com o teatro cheio, apesar da chuva, que embora tenha sido aplaudida, não ocasionou uma segunda apresentação. Evidência de que as qualidades da peça e o prestígio de quem a escreveu – Josefina Álvares de Azevedo foi fundadora, diretora e redatora de um dos mais combativos e avançados jornais feministas surgidos na segunda metade do século XIX, A Famílianão foram suficientes para diluir ou anular as reações negativas daqueles que, presos aos arraigados preconceitos então vigentes na sociedade daquele final de século, não podiam aceitar o sucesso feminino ou a audácia em expressar o que na época deveria ser calado.

            Valéria Andrade Souto-Maior diz do silêncio que passou a reinar em torno de O voto Feminino e que ainda hoje perdura como seu maior castigo e do próprio silêncio de Josefina Álvares de Azevedo, no campo da dramaturgia a se configurar como um instigante enigma a ser decifrado.

Haja visto o quanto a obra de Josefina Álvares de Azevedo e das outras mulheres brasileiras escritoras ficaram ausentes da História da Literatura Brasileira, trazer à luz os seus textos e as histórias de obstáculos em meio aos quais eles se engendraram, não somente preenche uma lacuna como auxilia o estudo da ideologia que dominou a produção artística no país e que permanece subjacente no silêncio e nas críticas da produção feminina.

domingo, 23 de dezembro de 2001

Fronteiras, passagens, paisagens na Literatura Canadense


Fronteiras, passagens, paisagens na Literatura Canadense, organizado por Maria Bernadettte Porto e publicado pela Editora da Universidade Federal Fluminense e Associação Brasileira de Estudos Canadenses, no ano 2000, é fruto de pesquisas plurais que partem de reflexões sobre temas especificamente canadenses: as origens (próximas ou distantes, os canadenses tem as suas raízes alhures), a travessia das identidades e o estado de oscilação entre uma e outra cultura daquele que chegou para iniciar uma nova vida.

            Entre os ensaios oriundos dessas reflexões, cujo interesse extrapola a Literatura Canadense, para se fixar, também, na questão da identidade como processo de construção contínua, um texto de ficção da quebequense Lori Saint-Martin.

            É um breve conto em cujo título “Pur polyester” (“Puro poliéster”) está contida a crítica à expressão pure laine (pura lã) com que os quebequenses, que se acreditam de linhagem pura, se auto designam. A narrativa, de uma jovem imigrante, se faz na primeira pessoa. Seu itinerário de pobreza se inicia, com a partida dos pais de Salamanca para Paris e daí para Quebec. Se o nome do dinheiro – pesetas, francos, dólares – muda, o seu montante não é jamais suficiente para pagar as necessidades primeiras e, eventualmente, algo de prazeroso. E o dizer, sempre matizado e imperfeito – as palavras faltam ou sobram – é, sempre, denunciador, como também as roupas pobres de alguém que recém chegou. É o caso da narradora, porque o lugar de seu pai e de sua mãe, a Salamanca, da Universidade e da Catedral, do calor do sol, dos passarinhos na praça, das lagartixas e dos terraços, não lhe diz respeito. Embora se nutra das lembranças que eles trouxeram e da música de que é feita a voz da sua mãe quando fala o espanhol. Uma voz que se eleva, também, para outras lembranças: as penosas, da imigrante em Paris; as de tristeza, quando volta a Espanha para enterrar a  mãe e vestir um luto que, assim se faz em Espanha, jamais abandonará. E para um enunciado a prover um outro, inevitável exílio: Quando se perde a mãe, perde-se a terra inteira e o sal e a luz. Palavras que a narradora é demasiado jovem para entender e porque ainda está na fase de se enraizar no universo para onde foi transplantada e sobre o qual se interroga. O seu relato testemunha o cotidiano de duros trabalhos daqueles que chegam ao país e dos desconfortos que enfrentam; e este sentir dos que no presente, ainda vivem algo do passado e ao qual se acrescentam os acenos de um futuro promissor. Um relato ameno, algo melancólico, por vezes ingênuo, a expressar esse rito de passagem que para os habitantes do Continente não acaba de se concluir.  Embora, alguns, disso não se dêem conta ao se julgarem melhores apenas porque chegaram antes.

domingo, 16 de dezembro de 2001

Nas entrelinhas


          Parte de Cuestiones con la vida (Buenos Aires, Galerna, 1986) é um longo poema narrativo-circunstancial que sob o inocente título de “Rosedal”, jardim das rosas, se constitui a expressão de um lirismo que a ironia e o humor que a ele se entrelaçam, não logram diluir. Foi escrito, no exílio, por Humberto Costantini, narrador e dramaturgo argentino que, nesses versos, dá um testemunho do sofrimento que advém do viver em terra alheia. Seja ela tão sedutora e apaixonante como pode ser a cidade do México. Embora os primeiros versos do poema digam, muito claramente, dessa infelicidade que soe acometer quem vive no exílio, a emoção maior, a saudade, vai se mostrando no relembrar o mundo que foi deixado para trás e que o humor, sempre presente, quer, talvez, atenuar. O poeta revê o Rosedal, prosaicamente delimitado num breve trecho entre um velho poste de luz e um canteiro de coroa de noiva e o Rosedal de sua alma, entrelaçado aos momentos de felicidades que ali viveu. Depois, quis lembrar, também, de outras coisas e deixou que Buenos Aires e seus habitantes se fizessem presente. E a partir do verso isto foi o que viu... registra os tipos que circulam pelas ruas da cidade, soberanos, como que a ignorar o que sempre está prestes a acontecer nesse tempo de terror que vive o país sob jugo de uma exemplar, como costumam ser todas elas, ditadura. Assim, os que estão sentados num banco, falando de uma ária de ópera; assim o avô, passeando com sua neta; e as solteironas tomadas do braço e a velhinha, fazendo tricô; os jovens, combinando um encontro,o porteiro do hotel a dormis a sesta. Na paz dessa inconsciente ou falsa inocência a viver o cotidiano, entrando na avenida é a inegável parcela de realidade: a presença dos matões, da polícia paramilitar que prende, seqüestra, mata, sem precisar para isto, outras que suas próprias razões. O poeta, então decreta desse Ford Falcon a inexistência e continua a olhar para a vida que transcorre nas ruas de Buenos Aires: palavras de amor, gravadas num tronco de árvore, um cachorrinho de unhas pintadas, um balão cor de laranja a voar pelo céu. E outra vez, o Ford Falcon, um pedaço de sombra, uma imundície a manchar a tarde e o domingo. O poeta o elimina de sua imaginação e de seu olhar que, outra vez, torna para o mundo diáfano e ensolarado. Faz o que pode para tirar dali o Ford Falcon, usa todo o ritual para apagá-lo, porém, em vão: a suja mancha estava ainda ali / no mesmo lugar / e era como um enorme abutre um pesadelo pousado no asfalto. O poeta sente medo, sabendo o que irá acontecer e, demiurgo, arranca, de um gesto, o papel da máquina onde queria escrever uma história que ficou assim / para sempre sem terminar.
E outra história que ele não quer contar, plena de violências e injustiças a destroçar vidas, ficou nas entrelinhas. Humberto Costantini, ao optar pelo sugerir – até porque ninguém, na Argentina, nesse momento ignorava as funções repressoras desses carros pretos – não apenas se recusa a um testemunho, talvez porque as palavras sempre se mostram impotentes para dizer do ultraje que significaram essas ações, como, ao usar o recurso das zonas de sombra, transfere para o leitor uma aceitação ou uma recusa de significados.

domingo, 9 de dezembro de 2001

Nas linhas


            Em 1986, a Editorial Galerna de Buenos Aires, publicou Cuestiones con la vida de Humberto Costantini, surpreendente quinta edição para um livro de poemas, sobretudo por ser o seu autor mais conhecido como romancista e como dramaturgo. Um êxito que, no entanto,talvez se explique  por se constituírem esses poemas, como diz o Editor, um ajuste de contas com a Argentina, então dominada pelo terror de uma ferrenha ditadura. Que Humberto Costantini combateu com as armas de que dispunha: as palavras. Seu romance De dioses, hombrecitos y policias é uma implacável sátira do Sistema que regia a Argentina na época. Razão, entre outras, suficiente para fazer dele uma persona non grata  no seu país, pois embora não tenham as palavras forças para derrubar governos (ou desgovernos), ela representa, para os que têm má consciência, um ameaça que deve ser banida a qualquer preço. Como tantos outros latino-americanos, Humberto Costantini pagou um preço, o do exílio. E, embora no México, um exuberante universo de buganvílias, beija-flores,cravos, pássaros e lagartixas, também de enormes jacarandás florescidos de céu, de andorinhas, e zumbidos e verdes e silvas e gorjeios que ele tenta, patrioticamente ignorar e onde o idioma é o mesmo que o de seu país, ele sofre o drama de todo estrangeiro:enorme solidão e dificuldade em entender e em se fazer compreender. Uma situação da qual não foram isentos os latino-americanos que buscaram abrigo na Espanha ou na França e aí se depararam com o preconceitos linguístico que determina ser o espanhol da Espanha a língua padrão e que, portanto, não aceita os desvios nela ocorridos em cada pais da América Latina.

            Em Rosedal, poema que faz parte de Cuestiones con la vida, Humberto Costantini, no que define como o civilizado transcendente e culto portenho universal  registra a sua experiência no país dos outros que o leva a se dizer ancorado na cidade do México isto é  estar aí de passagem, sempre disposto a regressar. Um regresso que a sua imaginação faz possível quando se dispõe a escrever uma história feliz quente um pouco imprevisível / evidentemente de saudosas cores argentinas / placidamente linda / discretamente alegre  que se constitui, ele confessa, uma forma de entrar no país, mais precisamente, em Buenos Aires. Percorre a cidade no itinerário dos afetos,alegrando-se ou se entristecendo até que, já meio tonto, se depara com o lugar /  mais alegre risonho esperançoso encantador ameno etc. que nenhum outro: o Rosedal essa ilhota incrível no meio do tormentoso Buenos Aires. O Rosedal que vai descrever no seu traçado de flores que, verdadeiramente, o enraízam nesse espaço entre as roseiras floridas e as glicínias e as coroas de noiva e os jasmins e as begônias; e no seu mundo de lembranças que a fonte, o lago, a pequena ponte dos namorados, as estátuas, as grandes árvores fazem emergir: o menino de treze anos a devorar a mais maravilhosa massa folhada / que faminto algum / tenha devorado na sua vida / desde o começo dos tempos; o adolescente de quinze a agredir sua tristeza pelas sendas com o livro de poemas sob o braço; o moço de dezoito, a namorar num banco mal iluminado; o pai, com os filhos pequenos pedindo guloseimas; o avô, enternecido, a tudo entender; o homem de setenta anos, olhando a vida passar.
            É um pedaço de jardim que testemunhou o passar de sua vida e se desenha diante dos olhos da alma, luminoso, florido, sombreado por araucárias, acácias e eucaliptos e faz de     suas palavras - cores e sons e perfumes  - algo de perfeito para a história que irá escrever: despreocupada diáfana inocente /como aquele pedacinho de universo / limitado por um velho poste iluminado / e um canteiro de coroa de noiva. Então,volta as suas folhas em branco e à sua  máquina de escrever, deixa-se, outra vez, levar pela imaginação enquanto as teclas esperam. Mas, desta vez, já não é o verde morno sussurrante oásis que vê mas um cotidiano a transcorrer como que alheio às loucuras do Sistema.

domingo, 2 de dezembro de 2001

A noite de Port au Prince

            Em 1955, Jacques Stephen Aléxis publica o seu primeiro romance, Compère Général Soleil (Paris, Gallimard). Quarenta anos antes, os norte-americanos haviam desembarcado no seu país para nele estabelecer, à força, uma espécie de ordem cujos resultados lhe seriam, especialmente, propícios: na Constituição que, em muito pouco tempo, eles deram ao Haiti, eliminaram o artigo presente nas dezesseis Constituições anteriores que proibia, aos estrangeiros, a posse da terra. Logo, as companhias americanas passaram a dominar a economia do país cujo nível de vida setenta e sete dólares por ano, por pessoa, segundo estatística das Nações Unidas, na época, hoje é um dos mais baixos do mundo.
            Jacques Stephen Aléxis cria a sua história ficcional, inserindo-a nesse mundo, super povoado  e miserável e sufocante de Port-au-Prince,   fazendo seu herói, um jovem negro pobre, maltratado e epilético: Hilarion Hilarius. Ele acaba por ser vencido pelo Sistema que combate, mas antes disso, ainda acredita que há um caminho a seguir que se tornou claro para ele, no dia em que viu um  grande sol vermelho a luminar o peito de um trabalhador. Esse olhar do personagem para a esperança, a expressar um anseio de vida é também, o olhar do narrador a se deter num cenário, que embora,  degradado muitas vezes.  se ilumina   de belezas.

            O “Prólogo” que antecede as três partes da narrativa é construído, graficamente, em dois momentos narrativos entrelaçados:  em itálico, as andanças de Hilarion Hilarius pelas ruas de Port-au-Prince, a sua incursão na casa rica para roubar e a sua prisão. Em cursivo, breves seqüências a dizer da noite na qual se inscreve essa aventura. Uma noite humanizada por  recursos estilísticos que a exibem como  uma bela jovem coberta de jóias elétricas, de flores de fogo que ardem ou com  suas espáduas negras e seus cabelos de pequenas nuvens de lã branca a enfraquecer lentamente; que a fazem dinâmica a estremecer com as estrelas ou partir com passos de lobo;  que a fazem vibrar e induzir à dança os homens e as coisas. Ou que lhe atribuem qualidades  inocente e cúmplice,  virgem negra,  voraz, azul como a tinta, pérfida, vestida de negro, tropical, cheia de zumbis e de estrelas. Ou, ainda, lhe atribuem estados de espírito: pálida e triste como à véspera de abandonar seu combate com a  Aurora, prendendo-se, ainda, desesperadamente nos relevos da paisagem enquanto o branco tímido do dia começava a se insinuar; quase vencida, crivada de dardos claros,a fugir diante da Aurora.

            São breves pausas como pequenos poemas, insistindo a tomar alento nesse levantar de olhos para o céu a interromper a tristeza do relato. O “Prólogo” termina com Hilarion Hilairius acordando na cadeia, dolorido pelos maus tratos, desejando a morte para se libertar dos sofrimentos dessa longa noite e daquelas que a vida sempre lhe infligiu. Mas, deixa-se ficar, deixa-se adormecer. E imagem de alegria e força esse galo  com sua crista de sol, com as asas brilhantes  a cantar loucamente acenando para a vida. A noite findara.

domingo, 25 de novembro de 2001

Os donos


Hilarius Hilarion é um jovem negro e pobre de Port au Prince. Ao roubar para comer, é preso. Batem nele os guardiões da casa e apanha da polícia antes de ser jogado na prisão onde fica muito tempo. Entre as tarefas que deve realizar e os maus tratos, ele conhece um comunista. Também ele é torturado, mas uma força interior o faz resistir e as palavras que dirige ao jovem Hilarius Hilarion são acenos para a construção de um mundo diferente em que não haja aqueles que são donos de tudo, privando os demais das coisas boas da vida e que também lhe são devidas. O jovem negro se deixa convencer – não sofrera humilhações desde criança, trabalhando para os ricos e não sofrera fome e frio e a violência oriunda das leis dos mais fortes? – mas no Continente não existem sementeiras onde germinem as palavras de ordem para desfazer o que já foi estabelecido, ainda que à revelia dos que recebem a menor parte. E na luta desigual muitos ou quase todos, vão ficando pelo caminho. Hilarius Hilarion foi assassinado pela repressão. E, capturado, torturado, dado por desaparecido foi Jacques Stephen Aléxis, autor de Compère General Soleil  (Paris Gallimard, 1955). Um romance em que se sucedem quadros de miséria e sofrimento, atrelados, sempre, à ferocidade de mandantes e em que permeiam chamadas às lutas e à alegria de viver.  Como se necessário fosse ensinar uma lição que, no entanto, no Continente, já há muito é conhecida e agravada pela presença de estranhos no país. Estranhos que detém o beneplácito dos governantes como o atestam as palavras  de um Conselheiro de Estado ao afirmar que só os americanos podem salvar o seu país.  E, então, como donos de quase todos as plantações de açúcar do Haiti ou como os que vêm para garantir a nefasta ordem das desigualdades, sempre que tal seja preciso, com a presença dos barcos rodeando as enseadas e os mares do Continente, se mostram quando andam de táxi e não querem pagar; quando perseguem uma jovem e batem em quem se aventura na sua defesa; quando dizem insolências diante de uma casa e com isso provocam a morte do seu dono. E há o haitiano que acede em posar para a kodak do ianque e ao levantar a mão para acariciar o menino loiro, recebe nela uma cuspida acompanhada de uma exclamação de ódio: Get out, nigger; e há a mulher faminta com a criança a implorar para os americanos bêbados, prestes a queimar, na calçada, um punhado de dólares, que é obrigada por eles a dançar, caminhar de quatro, miar, latir, relinchar para receber um dos bilhetes que tem que pegar com a boca do chão; e há o comerciante sírio que presenciou os fuzileiros navais americanos atacar com armas automáticas a gente pobre e desarmada, tendo nas mãos apenas, suas ferramentas de trabalho e que  viu os “civilizados” assassinar mulheres, torturar crianças e crucificar vivos os rebeldes; e há quem saiba porque todas as maravilhas do Haiti não pertencem aos negros e as negras mas aos americanos brancos. E há os que tem esperança: juntos, nos os expulsaremos e resolveremos entre nós nossas diferenças. E há os que acreditam que apesar de todos os americanos, apesar de todos os sanguessugas [...],  apesar de todos os policiais, novos braços de operários [...] e de lutadores são a colheita que irrompe sem cessar de nossa terra a cada cor do céu, a cada estação das chuvas [...].

             Num relato, como o deste primeiro romance de Jacques Stephen Aléxis que faz ver injustiças e desigualdades num inacreditável império da miséria, abundam  seqüências cuja crueldade se iguala àquelas dos romances do Continente, também eles enraizados  nesse mundo de opróbrios que estão sempre a se renovar e para os quais parece não haver redenção. Há, porém, muitas outras cuja beleza lírica aproxima, por vezes, sua prosa, de um dizer poético  a prometer ou  a esperar  um vislumbre de beleza, de bondade, de coragem, e de  amor. Magias que, certamente e apesar de tudo, permitem a vida no Continente.

domingo, 18 de novembro de 2001

Mulher jardim


            A capa do livro, uma ilustração de Londinsky-Pasternak, extremamente sugestiva: na metade inferior, representada uma luxuriante vegetação tropical e muitos são os tons de verde. Algumas flores, em rosa; um papagaio vermelho, um macaco sorridente a segurar uma banana. Logo a seguir, um mar azul e, saindo do verde, o pau de sebo colorido, alegre, sem segredos. Um homem está a escalar, visando o prêmio, lá em cima: um uniforme, dinheiro e uma metralhadora. Sem dúvida, uma bela síntese do romance de René Depestre, Le mât de cocagne, publicado pela Gallimard, em 1979. Mas, na imagem de luz e de cores, de traços ingênuos e risonhos, exatamente o contrário do romance: no melhor estilo, o preciso e acabado retrato de uma ditadura.
            A trama de Le mât de cocagne é muito simples: Henri Postel, ex-senador, é condenado pelo Poder vigente, a gerir um pequeno comércio no mais desolado subúrbio de Port au Roi, denominação ficcional evidente para Port au Prince, capital do Haiti. Alguma vez, ele havia dito a Zoocrate Zacharie, seu antigo contemporâneo na Universidade, que vender coisinhas de comer ou quinquilharias atrás de um balcão lhe resultaria o maior dos suplícios. Mais tarde, opondo-se ao Sistema, teve a família cruelmente trucidada e o destino que mais lhe custaria: ser forçado, de manhã à noite a trabalhar, atendendo pedidos de um pouco de milho ou de banha de porco. Eis o preço a ser pago para continuar vivo. Porém, no momento em que iria matar um esbirro do Sistema para  roubá-lo e, com o dinheiro, obter a liberdade no porão de um navio a partir para o Canadá, decide participar da festa instituída pelo Sistema, a subida no pau de sebo.

            O que pensa e o que faz para perseguir o seu objetivo irá constituir o relato. Como no desenho da capa, a subida no pau de sebo se ancora num universo que deveria ser um paraíso rodeado de mar azul mas que se mostra na degradação  da cidade já há muito ardente de moscas e de abjeções, pálida de pó e de ignomínias e que se tornara, sob a ditadura um circuito fechado de injustiças, roncando de abusos e de prevaricações, roída de vergonhas e de impostos [..].
            Aos quarenta e nove anos, muitos deles,vividos no sofrimento pela perda da família  e pelo exílio que lhe foi imposto de viver isolado no seu país não lhe sendo permitido ter nem mulher, nem filhos, nem parentes, nem amigos, nem  companheiros, nem um animal doméstico, Henri Postel não irá realizar a prova nessa tranqüilidade que os traços do desenho deixam ver. Embora tivesse sido um bom esportista, alguns anos antes, foi um homem um pouco pesado, inclinado para a frente, com os cabelos a embranquecer que se dirigiu para tentar a primeira etapa da prova. Com a ajuda que recebe de uns poucos e com a determinação, alimentada de raiva ávida e alegre refletida nos seus olhos,  chega ao topo do pau de sebo não sem antes pagar, ainda, um tributo. Inesperado é o seu gesto de vencedor que será seguido das truculências usuais das ditaduras.
            E, nesse descrever das misérias e das torturas, da conhecida e indefectível e total e perene imbecilidade dos que detém o poder, René Depestre não poupa o seu texto do burlesco e do caricatural. Mas, o verdadeiro exorcismo é o seu louvor à vida, no momento lírico do romance, certamente um dos mais belos da expressão amorosa do Continente.
            Quando os amigos ajudam Henri Postel a se preparar para o segundo dia da prova,  fazendo-lhe a massagem nos músculos cansados, chega Elisa, o sol em toda a sua gloria ele diz ao vê-la. Descrita na esplêndida beleza e magnetismo da mulher negra cuja carne, inteira firme, plena, lírica, ondulava, se inclinava, se arredondava na dança ritual em intenção da vitória de Henri Postel que olha para ela fascinado:  fazia muito tempo que  ele não tinha visto uma chama tão bela ascender na sua noite de homem.  É  um canto à vida que se eleva, repentino, do texto de René Depestre e que irá se ampliar, belíssimo, nas sequências que descrevem o ritual em que do corpo de Elisa, Henri Postal recebe a seiva e a força que o levarão à pretendida vitória.
            Antes disso ele a havia chamado, com o coração batendo nas estrelas, de mulher jardim.

domingo, 11 de novembro de 2001

Desvario

            Sob a rubrica do Repertorio Latinoamericano, revista publicada em Buenos Aires, com o objetivo de integrar  pela cultura, veio à luz em janeiro deste ano, Memorias sobre Bolivia. Seu autor, Francisco Ricardo Bello, diplomata de carreira, reúne neste livro, lembranças de sua vivência como Secretário e como Conselheiro da embaixada Argentina em La Paz, na década de quarenta. E a essas lembranças acrescenta informações sobre o país e sua história, frutos de suas leituras como leitor infatigável que é.

            O primeiro capítulo, “Pais de  los contrastes”, trata da paisagem boliviana, as vezes inóspita e hostil e outras risonha e cálida e dos homens que a habitam. A eles e a sua maneira de ser  é  dedicado o segundo capítulo que empreende uma tarefa nada simples pois a Bolívia é constituída  de três zonas geográficas, perfeitamente delimitadas onde vivem homens que pertencem a três culturas diferentes e falam o seu próprio idioma. Além disso, como em todos os paises do Continente, os autóctones – quéchuas e aimarás- sofreram a presença do colonizador o que certamente, não é um ônus menor e nem facilita os relacionamentos. Embora Francisco Ricardo Bello considere que, face ao que teve que enfrentar, sejam as diferenças de cultura, sejam as forças telúricas, o problema não é do índio, mas do branco que deve vencer o meio e a possibilidade de se adaptar  moral, espiritual e mentalmente à idiossingrasia americana que o índio representa. Páginas antes, havia se referido à antiga educação dos Incas cuja ética comportamental poderia honrar qualquer povo que a endossasse e que se instituía, logo, uma presença na saudação matutina que, em vez de desejar um bom dia, aconselhava: Não sejas ladrão, não sejas mentiroso, não sejas covarde.

            No entanto, haja visto como foi sendo feita a História da Bolívia,  um suceder de lutas e traições a serviço de interesses duvidosos, é evidente que o branco soube muito bem se resguardar do nefasto que lhe seria se submeter a uma ética contraria aos  desígnios que alimentava. Desígnios que a se conhecer o ocorrido no Continente nestes anos todos, podem  ter dado ensejo a momentos dramáticos, injustos, imperdoáveis e, eventualmente, jocosos como o que aparece no sétimo capítulo de Memórias sobre Bolívia onde é relatado um dos feitos de Melgarejo. Ele sufocava revoluções e com o prestígio conseguido entre a tropa (era considerado um valente), um dia fez a sua própria revolução, assumindo o poder que exerceu, pela força, durante seis anos. Era admirador de Napoleão III e se considerava seu amigo. Ao saber da guerra franco-prussiana, num arrebato passional , diante  da tropa formada, e do alto de seu cavalo exortou: Soldados! A integridade da França está ameaçada pela Prússia. Quem ameaça a França, ameaça a civilização e a liberdade. Vou proteger os franceses que são nossos amigos e de quem gosto tanto. Vocês vem comigo atravessar a nado o oceano  mas cuidado, não deixem molhar as munições. Dito isto, deu ordem de marcha. Mas, naquele momento, caiu uma chuva torrencial e, dir-se-ia,  providencial pois refrescou-lhe a cabeça, deixando-a apta para aceitar as razões de seus ministros sobre uma tão atrevida e intrépida campanha.

domingo, 4 de novembro de 2001

A forca


            Chamava-se Praça da Alegria porque os condenados, vistos de longe, pareciam pular de contentes, logo que eram soltos no espaço com a corda no pescoço. Era uma praça tranqüila onde à tardinha, brincavam as crianças e, em noites de lua, as pessoas conversavam nas calçadas. Perto, havia uma escola e ruas com sobrados. Não convinha a cada condenação ali erguer o patíbulo e, assim, de acordo com o Tribunal da Relação, ele passou a ser armado à noite quando ocorria o enforcamento em diferentes lugares.


            Damião, o personagem-guia do romance de Josué Montello, Os tambores de São Luiz ( Nova Fronteira, 1985), ainda era um menino que pretendia ser padre, quando no meio do sono, é a cordado pelo Padre Policarpo, seu protetor, para ir junto com ele, dar conforto a um condenado. Atravessaram boa parte da cidade, espantando cães vadios  com o barulho do carro, a fazer fugir os gatos.O  padre ia rezando o seu rosário e o menino, assustado, mal reconhecia os lugares por onde passaram até chegar ao largo onde fora erguida a forca.Tinha, ao fundo, a igreja do Desterro com as portas e janelas fechadas e  estava iluminado por quatro tochas que davam à cena -  uma multidão curiosa, os soldados com suas lanças, o carrasco com o sambenito a esconder-lhe o rosto – uma luz desvairada. E desvairado, era o espetáculo que as pessoas se apinhavam para ver: o preto, forte, espadaúdo, a barba crescida [...], vergalhado na cadeia porque ainda trazia no dorso e nos braços as marcas das lapadas recentes. Estava atado de pés e mãos e os seus olhos eram iluminados pelo pavor. O padre poupa Damião da cena, ordenando que fique no carro e a  segurar o breviário e o crucifixo, sobe os degraus do cadafalso e se aproxima do condenado para a  realização do ritual: ungir-lhe as mãos, fazer-lhe o sinal da cruz sobre a testa, a boca, o peito, dizer as orações.

            A narrativa que se prolongara em fixar os gestos do padre a se vestir às pressas e os seus queixosos resmungos sobre as desarmonias da justiça que ignora os negros assassinados e castiga os negros assassinos, como, também, se prolongara nos pormenores do itinerário noturno a conduzir para o lugar onde o condenado seria justiçado, dizendo ora do passo dos cavalos e da condução do cocheiro, com os seus sons de ferradura e estalos de língua, ora mencionando as casas com sacadas e mirantes, se detém, então, no condenado. De seu medo falam os olhos, o cair de joelhos suplicante, o suor que lhe bolhava a testa e as têmporas, o tremor que lhe batia os dentes. De sua esperança, a força advinda para partir o nó que lhe amarrava os pulsos e tentar segurar a corda que envolvia o seu pescoço e assim, contorcia-se todo, iluminado pelo clarão vermelho das quatro tochas. Lutou enquanto pode mas os braços lhe tombaram e os ombros e a cabeça. O narrador não foge ao detalhe que lhe certifica a morte:a língua para fora da boca.

            Inserido no longo relato do romance, este episódio do enforcamento, como os inúmeros outros a fazer desfilar os vexames e as humilhações a que são submetidos os escravos, se constitui uma verdadeira sucessão de momentos cruéis: a impotência do padre que deve permanecer impassível diante de quem lhe suplica o direito à vida; a expectativa da multidão, com um brilho nos olhos espantados, a acompanhar a luta do condenado na ânsia de se safar da corda; a  esperança em preservar um bem tão passível de sofrimentos como é a  vida de escravo.

            Desses momentos, como  de tantos outros, foram feitas as histórias da escravidão no Brasil. Histórias que se perderam nas razões da História Oficial e que Josué Montello, servindo-se de uma narrativa sem segredos e do poder que detém a ficção  de comover, resgata para enunciar algo  - as várias formas da resistência negra – que a elite de um país de mestiços  sempre procurou ignorar.

           

           

domingo, 28 de outubro de 2001

As astúcias do relato 4

                                     Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.Além do medo de um ataque por parte dos espanhóis, havia, também o medo das dissidências, das traições a agir contra seus desígnios.


            Eu não quero sussurros e eles o tempo sussurrando, eu não quero gestos misteriosos e eles passam o tempo fazendo contas com seus espantosos dedos, contando  arcabuzes, barris de pólvora ou cadáveres [...], responde Juan Núñez de Prado à pergunta do padre sobre o que fizeram de malvado, de bestial, de imperdoável para merecer a forca. Porque, merecedores ou não, Antón de Luna e Alonzo del Arco foram enforcados. Pois, nessa expedição de Juan Núñez de Prado para a Conquista do Continente, nada mais prevalece do que a sua vontade que ele justifica como sendo a de Deus e do Rei :  Sou eu quem enforca, eu sou a Espanha, rei e vice-rei, a real audiência e santo ofício e inquisidor. Assim,  além do episódio dos dois soldados condenados à morte, ao longo do romance, são inúmeras as referências à forca como instituição.

            Nas suas idas e vindas entre o fazer e o desfazer da cidade, Juan Nuñez de Prado lhe percebe as cordas. Presença  vital, pois é  com a forca  que ameaça no intuito de ser obedecido ou de se  livrar dos velhos e doentes. Só concebe a cidade com a forca na praça e com a igreja para assentar a vida. Quando um dos capelães o acusa de assassinato, retruca: Fizemos justiça. E outra vez, ao ser interpelado: [...] estes dois soldados estão doentes, gastos e velhos, vão morrer ainda que não os matemos, mas temos que matá-los pois não os mato eu, os mata o rei e o vice-rei. No entanto, são certezas que, por vezes, o abandonam e ele hesita, sentindo pena se deve mandar mata-los ou não: são pobres e desgraçados e até pensa em mandar dizer na carta ao vice-rei de suas queixas e pesares.  Mas, diz o capitão Vasquez: são gente ruim, não o esqueças, senhor, queriam nos matar e ir embora junto com os do Chile. E  diz o carcereiro  que estão resfriados, tossem e amaldiçoam, se queixam: quase seria uma crueldade fazer justiça com eles[...] , o velho está doente e a umidade lhe faz mal, por isso queria ir para o Chile.


            O velho é Alonzo del Arco. Tem trinta anos, os olhos verdes cheios de ódio e quando cai a tarde, chora e se agita para desatar os ferros. Antón de Luna, deixara família em Alicante. Inteiramente amarrado, com vinte voltas, com cinqüenta, com quinhentas voltas, seu rosto está congestionado e  a barba revolta e suja e emaranhada e triste [...] . Eles tem medo que o venham buscar para a morte porque sabem que Juan Núñez de Prado não quer nem doentes, nem moribundos na cidade. Doentes ou isentos das culpas que se lhes imputam, não serão perdoados e morrem de acordo com o ritual, num relato construído em três tempos.

            No primeiro, o que imagina fazer o capitão: enforcá-los, amarrados um ao outro, na mesma forca, com uma  só escada, apenas um nó, fazendo muito barulho com o bater dos sinos e os disparos de duzentos arcabuzes.

            Noventa páginas adiante, o segundo momento do episódio: há gente na praça e o capelão reza pelos apóstolos. A escada já está  apoiada, soa um tambor e uma flauta lúcida e pesarosa. Os prisioneiros, amarrados, caminham para a forca acompanhados do capelão e de suas rezas. Um deles não quer subir, os soldados o empurram e as palavras do capelão procuram convence-lo: [...] tem confiança, tem fé, tem esperanças, irmão meu, só treze degraus. Um dos capitães levanta o  braço e começa a soar um tambor desordenado, sem cerimônia, sem ritual, sem seriedade, misturado ao ruído das marteladas que destruíam as casas. Juan Núñez de Prado escuta o barulho das cordas batendo na madeira, um grito de terror e depois o grande silêncio, quebrado pela voz do capelão, suplicando: Oh! Deus, oh! Pai, meu pai, não os abandone, toma-os, recolhe-os.

            O terceiro momento, completando o episódio aparece no terceiro capítulo,  nas lembranças de Juan Núñez de Prado, meses depois, quando, ainda outra vez, está levantando a cidade e uma associação  de idéias o leva a pensar  no doutor Valdenebro, aproximando-se de Antón de Luna e de Alonzo del Arco e no escrivão a lhe perguntar se deve conceder prazos, um pouco de inútil espera aos prisioneiros ou se devem eles ser enforcados contra a lei de Deus e do rei. O doutor segurava a barba de Antón de Luna num gesto de piedade e de nojo a insistir na pergunta que lhe fazia e a esbofeteá-lo pelo seu silêncio. Juan Núñez de Prado vira o sangue escorrer pelo rosto do prisioneiro e com um pouco de pena, estava certo de que não teria tempo para deter o doutor, os verdugos, nem a corda das forcas, diz que  não haverá  tempo  para prazos nem apelações.E o doutor informa que os prisioneiros não querem  dizer a  verdade. Então, ele decide: a verdade a dizemos nós, agora.

            Nas sequências que seguem, ainda , as perorações dos capitães sobre os feridos escondidos nas carretas e ainda os gritos irados do capelão a recusar a execução. Fizemos justiça ainda que injusta, ainda que implacável, conclui o capitão.

            Há sem dúvida um perfeito domínio da técnica do romance no relato do episódio. Seja pelo intervalo entre um e outro momento, seja pela inserção de variáveis que lhe ampliam os sentidos, negando maniqueísmos, seja pela sucessão dos fatos,  nem sempre no seu rigor cronológico.  Sobretudo, nesse retorno à forca e aos enforcados, a trazer no seu bojo as duvidosas certezas da conquista, mais do que uma astúcia do relato se mostra uma convicção de que não basta, apenas, só  um dizer para  aspirar ao exorcismo.

domingo, 21 de outubro de 2001

As astúcias do relato . 3


            O capítulo se inicia com Miguel Ardiles dizendo a Juan Núñez de Prado que soldados do Chile iriam vir para prendê-lo. Várias noites haviam passado desde que chegara e a esse diálogo entre os dois, seguem-se vários monólogos de um  ou do outro, diálogos de Juan Núñez de Prado com os capelães e muitas lembranças que lhe acodem. Recursos que ajudam a tecer, em meandros, uma narrativa que se recusa a obedecer a ordem cronológica dos fatos. Assim, é somente sessenta páginas adiante que irá se inscrever o episódio da chegada de Miguel Ardiles à cidade de Barco. Juan Núñez de Prado  vê quando se aproxima com os seus soldados . Caminhavam se arrastando. Um dos cavalos estava manco e mal podia se mover e do soldado que se prendia a seu pescoço se soltavam trapos sanguinolentos. Na padiola,  um ferido com a cabeça cheia de sangue. Estavam todos envoltos no cheiro nauseabundo que exalavam. Também vê os grandes olhos de Miguel Ardiles olhando do alto de seu cavalo, um belo cavalo negro que se havia transformado num animal sem cor, devorado pelos tremores e a febre .Ele desmonta com lentidão, se dá conta  de que as muralhas e as casas estavam sendo derrubadas. Porém, sua mão não treme ao perguntar, mostrando, com um gesto, as carretas e os índios carregados: Aí levas tudo, Senhor? Juan Núñez de Prado gritou, tenso e cruel: Tudo, tudo, a cidade inteira, o que pudemos juntar e recolher dela. Ainda assim, o recém chegado  suplica pelos seus soldados cansados e famintos e pelos feridos graves mas  a irredutível resposta é de que estão partindo com a cidade às costas para fugir à morte que os está rondando. Sua aquiescência, porém, não apenas em aceitar  o inadiável da mudança da cidade, mas a se mostrar disposto a executá-la  -  Certamente que o faremos, Senhor, se o fizeste duas vezes, podes fazê-lo três e trezentas, sabes que viemos na expedição para fabricar cidades para a coroa[...] -  se antepõe no relato,  a esta sua dramática chegada com  os soldados no lugar onde deveria existir uma cidade que, no entanto,  está sendo transportada alhures.

            Contrariamente, em meio à enumeração de objetos que se espalham pelo chão, em meio à impressões e sentimentos e a perfis apenas esboçados  curtas frases  oferecem uma informação cujo sentido se enovela à sequências anteriores. Por exemplo, cortará a corda com a espada ou o punhal que aparece na página 326, leva à via balançarem as cordas das forcas da página 325 que irá esclarecer qual é a corda que será cortada. E mais adiante, outra sequência da mesma página, contemplava estupefato o padre Cedrón, de pé, no alto da cadeira, tratando de alcançar uma corda que o vento tempestuoso lhe arrebatava  informa quem pretende alcançar a corda e quem  irá cortá-la..

            Assim, episódios que se completam muitas páginas adiante, sequências que somente se tornarão claras se enoveladas às que aparecem em páginas anteriores, pontilham  um relato que vai se fazendo gradualmente e em idas e vindas,  partes desse itinerário de  Juan Núñez de Prado em que ele se defronta com as outras vontades. Neste terceiro capítulo ele  não  se demove de seguir mudando a cidade e nega ao capitão Ardiles as horas de descanso que ele pede, permanecendo impassível diante do  sangue dos que são massacrados  e diante do afã  do capelão em cavar a terra para enterrar os mortos e diante dos tiros dos soldados e das espadas nuas dos capitães. A seu redor,  a cruel e trágica história de um punhado de homens em terras do Continente.Também, as terríveis verdades da condição humana.         

domingo, 14 de outubro de 2001

As astúcias do relato 2


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Já no seu segundo assento, quando os capitães se dão conta que  escondidos nas carretas vieram ,também, os inválidos, decidem que a debilidade é um pecado que se castiga com a morte, a forca e o garrote são mortes divinas. 

            Seguiram junto, escondidos nas carretas. Juan Núñez de Prado quis argumentar, porém os capitães unânimes, responderam: este é o lugar. Chovia torrencialmente e, desmontando, ele demonstrou que estava de acordo em ali fundar, outra vez, a cidade. Os outros também desmontaram e em altas vozes, abafadas pelo temporal, chamaram os soldados. Então, de uma das carretas desceu um soldado torto se apoiando no arcabuz como se fosse muleta.  Tinha o uniforme seco e aquilo parecia uma coisa insólita, uma  traição, uma falta de disciplina, de decoro, era jovem e envelhecido, tinha o cabelo liso e grisalho e um rosto magro e cadavérico  [...]. Depois, desceu um soldado coxo e logo outro e um velho de barbas brancas. Riu um soldado e riram os capitães e eles se mostraram humildes, envergonhados e felizes. Porque, antes  de arrancar a cidade do seu primeiro assento, carregando-a nas carretas, dizia Juan Núñez de Prado: [...] coxos não, feridos não, nem velhos nem moribundos. E, diziam os capitães: [...]  nem vagabundos, nem miseráveis, nem pesteados. Mas, à revelia    dos que davam ordens, eles seguiram junto, escondidos nas carretas E no segundo assento,  na ânsia de reconstruir a cidade, ainda que Juan Núñez de Prado ordene   tragam os doentes, os pesteados, os feridos, todos podem trabalhar, todos tem que trabalhar, eles sabem que são indesejáveis e que não deviam ter acompanhado a mudança da cidade porque já haviam sido  sentenciados.

            Aos poucos, entre o diálogo de Juan Núñez de Prado com um dos capelães  ou algumas de suas lembranças ou em meio a descrição do acampamento e seus soldados e seus índios adormecidos, Carlos Droguett, na densa narrativa que lhe é peculiar, irá revelando o destino que os espera.

            E o faz pelo que ouve e pelo que vê, pelo que sente o capelão. Apenas se decide o novo lugar da cidade, ele sai a caminhar pelos campos, afastando-se  do acampamento, para os ermos  onde não tinham, ainda, chegado nem os cães,  nem os cavalos, onde  as árvores cresciam livres.  Assim, inesperadas são as vozes que ouve e, logo, igualmente inesperada, a visão do  homem caído: um homem jovem de rosto trabalhado e audaz, cínico e  esperto, tinha os olhos fechados mas não dormia, se queixava com esforço. O peito estava ensangüentado, o uniforme em frangalhos e, perto dele, a muleta. Ao vê-la pousada na terra, o capelão, sente as mãos úmidas e um calor na boca. Vem-lhe à mente o gesto furioso de Juan Núñez de Prado, desembainhando a espada a perseguir o soldado, prestes a saltar sobre ele que  mostra, com audácia, a muleta, sua única arma . Imagem que se mistura  à visão  que tem diante de si:  deitado no chão, com sangue no peito, esse homem de  rosto imberbe. Cínico, inocente, audaz  até o desespero e a essa outra  da noite anterior,  quando, o vira, se afastar   coxeando muito, e de maneira ridícula.  Então, escutou a conversa dos homens. Estavam amarrados com firmeza desde os borzeguins até o pescoço. Um era velho, de barba alva e nobre; o outro não tinha um braço e ao terceiro, coxo e torto, lhe faltava um olho. Os rostos estavam machucados e cheios de sangue. Perto deles, soldados e capitães. O capelão os increpa sobre o que fazem. Num longo diálogo, interrompido por suas lembranças e pelo que vai percebendo a seu redor – a preparação da morte dos prisioneiros-   eles respondem que se trata de um assunto  que lhes concerne e não ao vigário.
            São três momentos de um mesmo drama, iniciado bem antes, ainda no primeiro assento com a recusa em deixar os inválidos seguirem com a cidade e cujo desfecho está contido na seqüência em que o capelão, ao ver perto do homem caído algumas pás, se ampara de uma e começa a cavar e na outra quando escuta o vai e vem das cordas, na penumbra,  e vê os enforcados no seu pesado balançar.
            A maestria do romancista consiste em construir esse drama a partir de lembranças e de impressões que, intermitentemente se mesclam, mais sugerindo do que precisando, para se antepor às verdades proclamadas em nome de Deus e do Rei. Se Carlos Droguett abdica em precisar os maus tratos e a morte dada aos soldados não prescinde, no entanto, das palavras que deixam claras as razões, ditas de Estado, que assim os condenam a serem assassinados como se tivessem sido condenados por justa causa. Ações e intenções que são, na verdade, o mesmo lado de uma moeda num significado cuja síntese está nas palavras de um dos capitães: Trazemos a civilização e a vida e a cruz e a espada da Espanha [...]. E o Continente pagou um bom preço por isso.

domingo, 7 de outubro de 2001

As astúcias do relato 1


  Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Na primeira, muitos espanhóis se recusam a desmontar suas casas para amontoar nas carretas e levá-las adiante. Mas, o fundador da cidade, atribuindo-se plenos poderes – sou a Espanha, rei, vice-rei e real audiência e Santo Ofício e inquisidor  não hesita em dar a morte aos que se recusam segui-lo.




            Já as casas foram desmanchadas e as carretas  repletas iniciam o caminho em direção ao novo assentamento. Gritos se elevam para dizer que ficam, que não irão abandonar as casas, nem os cavalos, nem as flores, nem as árvores e nem os plantios. Os capitães dizem das razões. Primeiro, com paciência, depois, levantando a voz e a mão para esbofetear. E, no meio das ruínas de paredes, portas, janelas que se desfazem sob as marteladas, intactas, indiferentes duas ou três casas se mantém fechadas, desafiantes. Juan Núñez de Prado irá entrar numa delas e o confronto com o espanhol que a habita é feito numa narrativa  estruturada em múltiplos meandros e em zonas de sombra.

            O cenário ainda não fora degradado. O teto protegia a casa, a cama estava arrumada e a mesa posta. Tampouco o espanhol se contagiara com o desejo alheio e alheio ficara ao delírio de destruição que determinara fossem as casas desfeitas: vamos derrubar as casas, levar portas e janelas e sacadas e tetos e balaústres e saguões que possam ser úteis no novo assentamento lhe anuncia Juan Núñez de Prado. Como resposta, a convicção de que não irá ferir a sua casa pois a cidade também que lhe pertence. Ele se chama Pedro Albañez e, na  obstinação em possuir suas madeiras, seus móveis, sua solidão, tem o decreto de morte. Juan Núñez de Prado vai ditando a sentença, que já havia sido dada, – eu dou a ordem, mas não nasce em mim, embora eu a invente, nasce na voz  do vice-rei, na voz do rei e da rainha, nos sonhos e fúrias e desejos e invejas e orgulhos dos ministros, da audiência  sem proferi-la: ele será morto pelos capitães ou por ele mesmo, irá morrer, junto com seu cão, enforcado. Pedro Albañez se mantém impassível diante da aproximação dos que chegam e aos golpes de martelo, começam a desfazer-lhe a casa. Os soldados já estão no teto com seus machados, já despregam janelas quando o outro morador da casa surge de um dos quartos. Está ferido e tem dificuldade em se mover. Juan Núñez de Prado que o vê ajoelhado, queixando-se para carregar a arma, sabe que também ele irá morrer. Não sem antes resistir: Vou me defender, dissera Pedro Albañez, a morte não vai entrar em mim sem que eu trate de impedir, se os teus assassinos são muitos, vou durar dez minutos, se são poucos, vou durar mais, ficarei na cidade enquanto haja alguém com vida [...]. E, na defesa da casa, eles disparam até que se escutem gritos e a fumaça impere. O que vai impedir que possa ser visto o que acontece.

            Num recurso narrativo usual em Carlos Droguett, se interpõe, então, no relato uma zona de sombras a poupar a descrição da morte. A informação de que Pedro Albañez morreu  é dada pelas emoções de Juan Núñez de Prado. Ele quis ter o capitão Vasquez a seu lado,  hesitando entre honrá-lo pela tranqüilidade com que obrigava o cumprimento das suas determinações ou insulta-lo em voz baixa, espavorido, atormentado, mostrando-lhe o homem estendido no chão [...]. Ainda que o seu nome não seja mencionado, como tampouco a palavra morte, o cachorro que estava deitado, ao lado de seus borzeguins, uivando devagar, insinuando o seu luto não deixa dúvida que se trata de Pedro Albañez, já sem vida.

            A sua história, feita de poucas seqüências – é forte e a barba lhe sobe pelo rosto; está sentado à mesa para comer e perto, tem o cão; não acredita que será punido apenas por desejar viver na sua casa; e a defende e morre por não transigir – é relatada entre a enumeração de objetos, delineando um cenário e as certezas e as dúvidas dos personagens, outro recurso narrativo do romancista chileno. Irrompe no universo maior – a Crônica da Conquista – marcado por um  lirismo que, ao esmaecer o heroico, revela um ser humano enredado na sua visão de mundo. Nela se inscreve o desejo de poder realizar o mais singelo dos sonhos.

domingo, 30 de setembro de 2001

Fim de festa


                                               Meu dever é viver, morrer, viver.
                                                                              Pablo Neruda.
            Em 1969, dois anos antes de receber o Prêmio Nobel, Pablo Neruda publicou, pela Losada de Buenos Aires, Fin de mundo. Além do que o poeta intitula  “Prólogo”, constituído de um poema, a coletânea é feita de onze partes. São poemas que falam da solidão, da incompreensão dos homens, suas traições e mentiras, da incomunicabilidade que os desune, de seus desterros e sofrimentos e morte. Da violência da natureza – o mar a invadir a terra, a terra a explodir na cratera de um vulcão – e da água ,do vento,da terra,dos animais. Do amor e da morte, de  suas relações com o mundo e com  seus poemas. Entre eles, os que justificam o título Fim de mundo, exprimindo as inquietudes diante de um tempo que ele sente carregado de negros presságios, em acorde com o que já aconteceu no século XX que  chama o século da agonia.  Já nos primeiros versos, indaga sobre o momento em que vive, se nele haverá uma escolha entre a revolução e a mentira patriarcal. Mas, logo lhe vem a certeza da agonia que se instaura na busca da verdade e da paz; do medo em falar o que é passível de comprometer; das vítimas dos calabouços e dos fornos crematórios; da ânsia de fugir da Bomba (homens, insetos queimados ) e da vergonha de ser homem igual ao desintegrador e ao calcinado. E, na convicção de que os países continuam fabricando ameaças e guardando-as no armazém da morte,  novamente, uma pergunta: E outra vez, outra vez / Até quando outra vez? Porque Pablo Neruda não esquece a Primavera de Praga (a neve salpicada pelas feridas dos mortos), a Guerra da Espanha (os punhais deixaram um milhão de ausentes), a Segunda Guerra Mundial (um milhão entrava por um forno e se convertia em cinza), as Guerras coloniais (com as colônias rebentando / como negras frutas podres / na escravidão do suor), a Guerra do Viet Nam (a quebrar todos os cristais, / a queimar crianças com napalm), a morte do Che (O comandante terminou / assassinado num barranco) e de Bem Bella, Bem Barka, Lumumba, condenados por verdugos invisíveis.

            Tampouco esquece a s vítimas anônimas que desapareceram deixando no mundo um sapato queimado, um brinquedo, um chapéu caído. E no tristíssimo  século, o século dos desterrados, o século pardo ,  o século que faz cem anos / a picotar olhos feridos / com suas ferramentas de ferro / e suas garras condecoradas, ainda que, se permitindo dizer do amor, da amizade, da sua meninice, da ternura para com as coisas, da feitura de seus versos, lhe seja imprescindível o testemunho: Eu contei as mãos cortadas / e as montanhas de cinza / e os soluços separados / e os óculos sem olhos / e os cabelos sem cabeça.  E, assim,não cala diante desse mundo indesejável e virulento.

            Por vezes,  dele foge o poeta, a se refugiar em sonhos e fantasias: corre atrás de um relâmpago, deseja ser em oura vida uma gota vermelha do mar ou deseja viver, entre as pedras, ao lado de uma lagartixa. Breves e efêmeras tréguas pois ao buscar-se a si mesmo acaba, sempre, de volta ao mundo dos homens.

Não nos façamos ilusões
     Nos aconselha o calendário,
       Tudo continuará como  antes
  A terra não tem remédio: 
   Em outras regiões celestes
                                                              Há que procurar alojamento.

domingo, 23 de setembro de 2001

O enterro do Poeta

            Isabel Allende o chama, simplesmente, de Poeta mas, ao mencionar-lhe a casa, perto do mar, e a paixão pelas coleções e os versos que não concluiu é como dizer-lhe o nome neste  primeiro romance que publicou, La casa de los espíritus (1982).   A narrativa que abarca os princípios do século XX e se estende até os primeiros tempos da ditadura chilena, instaurada em 1973, nos dois últimos capítulos do livro, “O terror” e “A hora da verdade”, relata o destino dos personagens no dia desse primaveril mês de setembro em que foi dado o golpe militar e nos longos dias que se lhe seguiram. E fazem constar o que, afinal, não foi um segredo para o mundo, os atos arbitrários, as prisões, as brutalidades, as torturas, as traições, os ridículos, as perdas, as covardias, a especulação, a euforia inconsciente. Também, a agonia do Poeta e a sua falta de vontade em continuar a viver. Morreu no dia 23 de setembro e na sua casa de Santiago,  meio em ruínas pela ação dos vizinhos, como diziam os militares e pela ação dos militares, como diziam os vizinhos,  foi velado por uns poucos pois seus amigos estavam prófugos ou exilados ou mortos. E foi um pequeno cortejo que acompanhou o caixão, simples, de madeira, coberto de flores, caminhando lentamente, entre as duas filas de soldados com suas metralhadoras. Em  dado momento do percurso, uma voz gritou o nome do Poeta e, numa só voz, todas as vozes responderam: Presente!Agora e sempre. E se elevaram cantos e consignas proibidas, enfrentado as armas que tremiam nas mãos dos soldados. Ao passar o cortejo fúnebre diante de uma construção, repetindo a homenagem que muitos anos antes, lhe haviam prestado os mineiros de Lota,  descobrindo-se ao ouvir, num comício, o seu nome e o da poesia que iria declamar, os operários abandonaram as ferramentas e, tirando os capacetes, formaram uma fila cabisbaixa. E seus versos, falando de justiça e de liberdade, foram gritados pelos que o acompanhavam até a última morada: um túmulo emprestado, diz a narradora.


            Logo, a ficção retoma o seu curso, enredada no tumultuoso acontecer de um cotidiano sem leis onde se inscrevem  os atos abusivos, os saques, as sevícias, os desaparecimentos, as mortes.  Como se, verdadeiramente, fossem invenções literárias, frutos de fantasia desenfreada a narrativa de  suplícios,  e  a   descoberta de facetas humanas até então insuspeitas, reveladas, uma e outra, na impunidade reinante  e nos benefícios auferidos na era que estava a se impor. Primeiro, o papel que aceitaram muitos, para tornar possível a sabotagem que, programada pelos que haviam sido substituídos no Poder, pretendia a queda do presidente eleito. Donos dos meios de comunicação e de quase ilimitados recursos econômicos e usufruindo da ajuda dos gringos, impediram o abastecimento do país, originando insustentáveis privações. Depois, a compreensão de que não seria  a falta  de um frango na mesa razão para deter a sedimentação do marxismo no país e a conseqüente aceitação de que o único a fazer seria um golpe militar. Quando ele foi dado, como que um toque de mágica transformou  as pessoas. Alba, uma das personagens femininas do romance, se pergunta de onde tinham saído tantos fascistas da noite para o dia porque na longa trajetória democrática de seu país nunca tinham sido notados [..]. E, para eles, como para os convertidos de última  hora,  foi fácil, bater  nos prisioneiros, massacrá-los até o impossível para, então, assassiná-los nos descampados, atirados no chão porque já estavam sem forças para ficar de pé. Ilustrando o procedimento usual em relação aos suspeitos, a prisão de Alba e as sevícias que sofreu. Indivíduos sem uniforme, invadiram a casa, durante a noite,  revolveram tudo ,quebraram, roubaram, atearam fogo sem que o barulho e a fumaça  tivessem alertado um único vizinho.

Sem dúvida, um relato para testemunhar. Como,  o das  breves linhas que registram  os últimos momentos da presença do Poeta sobre a terra.  Elas eludem o seu nome nesse abrigar-se em recursos narrativos como a dizer que só a ficção é passível de dar conta do inverossímil velório e do entrelaçar do medo e da coragem que foi o enterro de Pablo Neruda.