domingo, 18 de novembro de 2001

Mulher jardim


            A capa do livro, uma ilustração de Londinsky-Pasternak, extremamente sugestiva: na metade inferior, representada uma luxuriante vegetação tropical e muitos são os tons de verde. Algumas flores, em rosa; um papagaio vermelho, um macaco sorridente a segurar uma banana. Logo a seguir, um mar azul e, saindo do verde, o pau de sebo colorido, alegre, sem segredos. Um homem está a escalar, visando o prêmio, lá em cima: um uniforme, dinheiro e uma metralhadora. Sem dúvida, uma bela síntese do romance de René Depestre, Le mât de cocagne, publicado pela Gallimard, em 1979. Mas, na imagem de luz e de cores, de traços ingênuos e risonhos, exatamente o contrário do romance: no melhor estilo, o preciso e acabado retrato de uma ditadura.
            A trama de Le mât de cocagne é muito simples: Henri Postel, ex-senador, é condenado pelo Poder vigente, a gerir um pequeno comércio no mais desolado subúrbio de Port au Roi, denominação ficcional evidente para Port au Prince, capital do Haiti. Alguma vez, ele havia dito a Zoocrate Zacharie, seu antigo contemporâneo na Universidade, que vender coisinhas de comer ou quinquilharias atrás de um balcão lhe resultaria o maior dos suplícios. Mais tarde, opondo-se ao Sistema, teve a família cruelmente trucidada e o destino que mais lhe custaria: ser forçado, de manhã à noite a trabalhar, atendendo pedidos de um pouco de milho ou de banha de porco. Eis o preço a ser pago para continuar vivo. Porém, no momento em que iria matar um esbirro do Sistema para  roubá-lo e, com o dinheiro, obter a liberdade no porão de um navio a partir para o Canadá, decide participar da festa instituída pelo Sistema, a subida no pau de sebo.

            O que pensa e o que faz para perseguir o seu objetivo irá constituir o relato. Como no desenho da capa, a subida no pau de sebo se ancora num universo que deveria ser um paraíso rodeado de mar azul mas que se mostra na degradação  da cidade já há muito ardente de moscas e de abjeções, pálida de pó e de ignomínias e que se tornara, sob a ditadura um circuito fechado de injustiças, roncando de abusos e de prevaricações, roída de vergonhas e de impostos [..].
            Aos quarenta e nove anos, muitos deles,vividos no sofrimento pela perda da família  e pelo exílio que lhe foi imposto de viver isolado no seu país não lhe sendo permitido ter nem mulher, nem filhos, nem parentes, nem amigos, nem  companheiros, nem um animal doméstico, Henri Postel não irá realizar a prova nessa tranqüilidade que os traços do desenho deixam ver. Embora tivesse sido um bom esportista, alguns anos antes, foi um homem um pouco pesado, inclinado para a frente, com os cabelos a embranquecer que se dirigiu para tentar a primeira etapa da prova. Com a ajuda que recebe de uns poucos e com a determinação, alimentada de raiva ávida e alegre refletida nos seus olhos,  chega ao topo do pau de sebo não sem antes pagar, ainda, um tributo. Inesperado é o seu gesto de vencedor que será seguido das truculências usuais das ditaduras.
            E, nesse descrever das misérias e das torturas, da conhecida e indefectível e total e perene imbecilidade dos que detém o poder, René Depestre não poupa o seu texto do burlesco e do caricatural. Mas, o verdadeiro exorcismo é o seu louvor à vida, no momento lírico do romance, certamente um dos mais belos da expressão amorosa do Continente.
            Quando os amigos ajudam Henri Postel a se preparar para o segundo dia da prova,  fazendo-lhe a massagem nos músculos cansados, chega Elisa, o sol em toda a sua gloria ele diz ao vê-la. Descrita na esplêndida beleza e magnetismo da mulher negra cuja carne, inteira firme, plena, lírica, ondulava, se inclinava, se arredondava na dança ritual em intenção da vitória de Henri Postel que olha para ela fascinado:  fazia muito tempo que  ele não tinha visto uma chama tão bela ascender na sua noite de homem.  É  um canto à vida que se eleva, repentino, do texto de René Depestre e que irá se ampliar, belíssimo, nas sequências que descrevem o ritual em que do corpo de Elisa, Henri Postal recebe a seiva e a força que o levarão à pretendida vitória.
            Antes disso ele a havia chamado, com o coração batendo nas estrelas, de mulher jardim.

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