domingo, 4 de novembro de 2001

A forca


            Chamava-se Praça da Alegria porque os condenados, vistos de longe, pareciam pular de contentes, logo que eram soltos no espaço com a corda no pescoço. Era uma praça tranqüila onde à tardinha, brincavam as crianças e, em noites de lua, as pessoas conversavam nas calçadas. Perto, havia uma escola e ruas com sobrados. Não convinha a cada condenação ali erguer o patíbulo e, assim, de acordo com o Tribunal da Relação, ele passou a ser armado à noite quando ocorria o enforcamento em diferentes lugares.


            Damião, o personagem-guia do romance de Josué Montello, Os tambores de São Luiz ( Nova Fronteira, 1985), ainda era um menino que pretendia ser padre, quando no meio do sono, é a cordado pelo Padre Policarpo, seu protetor, para ir junto com ele, dar conforto a um condenado. Atravessaram boa parte da cidade, espantando cães vadios  com o barulho do carro, a fazer fugir os gatos.O  padre ia rezando o seu rosário e o menino, assustado, mal reconhecia os lugares por onde passaram até chegar ao largo onde fora erguida a forca.Tinha, ao fundo, a igreja do Desterro com as portas e janelas fechadas e  estava iluminado por quatro tochas que davam à cena -  uma multidão curiosa, os soldados com suas lanças, o carrasco com o sambenito a esconder-lhe o rosto – uma luz desvairada. E desvairado, era o espetáculo que as pessoas se apinhavam para ver: o preto, forte, espadaúdo, a barba crescida [...], vergalhado na cadeia porque ainda trazia no dorso e nos braços as marcas das lapadas recentes. Estava atado de pés e mãos e os seus olhos eram iluminados pelo pavor. O padre poupa Damião da cena, ordenando que fique no carro e a  segurar o breviário e o crucifixo, sobe os degraus do cadafalso e se aproxima do condenado para a  realização do ritual: ungir-lhe as mãos, fazer-lhe o sinal da cruz sobre a testa, a boca, o peito, dizer as orações.

            A narrativa que se prolongara em fixar os gestos do padre a se vestir às pressas e os seus queixosos resmungos sobre as desarmonias da justiça que ignora os negros assassinados e castiga os negros assassinos, como, também, se prolongara nos pormenores do itinerário noturno a conduzir para o lugar onde o condenado seria justiçado, dizendo ora do passo dos cavalos e da condução do cocheiro, com os seus sons de ferradura e estalos de língua, ora mencionando as casas com sacadas e mirantes, se detém, então, no condenado. De seu medo falam os olhos, o cair de joelhos suplicante, o suor que lhe bolhava a testa e as têmporas, o tremor que lhe batia os dentes. De sua esperança, a força advinda para partir o nó que lhe amarrava os pulsos e tentar segurar a corda que envolvia o seu pescoço e assim, contorcia-se todo, iluminado pelo clarão vermelho das quatro tochas. Lutou enquanto pode mas os braços lhe tombaram e os ombros e a cabeça. O narrador não foge ao detalhe que lhe certifica a morte:a língua para fora da boca.

            Inserido no longo relato do romance, este episódio do enforcamento, como os inúmeros outros a fazer desfilar os vexames e as humilhações a que são submetidos os escravos, se constitui uma verdadeira sucessão de momentos cruéis: a impotência do padre que deve permanecer impassível diante de quem lhe suplica o direito à vida; a expectativa da multidão, com um brilho nos olhos espantados, a acompanhar a luta do condenado na ânsia de se safar da corda; a  esperança em preservar um bem tão passível de sofrimentos como é a  vida de escravo.

            Desses momentos, como  de tantos outros, foram feitas as histórias da escravidão no Brasil. Histórias que se perderam nas razões da História Oficial e que Josué Montello, servindo-se de uma narrativa sem segredos e do poder que detém a ficção  de comover, resgata para enunciar algo  - as várias formas da resistência negra – que a elite de um país de mestiços  sempre procurou ignorar.

           

           

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