Chamava-se
Praça da Alegria porque os condenados,
vistos de longe, pareciam pular de contentes, logo que eram soltos no espaço
com a corda no pescoço. Era uma praça tranqüila onde à tardinha, brincavam
as crianças e, em noites de lua, as pessoas conversavam nas calçadas. Perto,
havia uma escola e ruas com sobrados. Não convinha a cada condenação ali erguer
o patíbulo e, assim, de acordo com o Tribunal da Relação, ele passou a ser
armado à noite quando ocorria o enforcamento em diferentes lugares.


Damião,
o personagem-guia do romance de Josué Montello, Os tambores de São Luiz
( Nova Fronteira, 1985), ainda era um menino que pretendia ser padre, quando no
meio do sono, é a cordado pelo Padre Policarpo, seu protetor, para ir junto com
ele, dar conforto a um condenado. Atravessaram boa parte da cidade, espantando
cães vadios com o barulho do carro, a
fazer fugir os gatos.O padre ia rezando
o seu rosário e o menino, assustado, mal reconhecia os lugares por onde
passaram até chegar ao largo onde fora erguida a forca.Tinha, ao fundo, a
igreja do Desterro com as portas e janelas fechadas e estava iluminado por quatro tochas que davam
à cena - uma multidão curiosa, os
soldados com suas lanças, o carrasco com o sambenito a esconder-lhe o rosto – uma luz desvairada. E desvairado, era o
espetáculo que as pessoas se apinhavam para ver: o preto, forte, espadaúdo, a barba crescida [...], vergalhado na cadeia porque ainda trazia no dorso e nos braços as
marcas das lapadas recentes. Estava atado de pés e mãos e os seus olhos
eram iluminados pelo pavor. O padre poupa Damião da cena, ordenando que fique
no carro e a segurar o breviário e o
crucifixo, sobe os degraus do cadafalso e se aproxima do condenado para a realização do ritual: ungir-lhe as mãos,
fazer-lhe o sinal da cruz sobre a testa, a boca, o peito, dizer as orações.
A
narrativa que se prolongara em fixar os gestos do padre a se vestir às pressas
e os seus queixosos resmungos sobre as desarmonias da justiça que ignora os
negros assassinados e castiga os negros assassinos, como, também, se prolongara
nos pormenores do itinerário noturno a conduzir para o lugar onde o condenado
seria justiçado, dizendo ora do passo dos cavalos e da condução do cocheiro,
com os seus sons de ferradura e estalos de língua, ora mencionando as casas com
sacadas e mirantes, se detém, então, no condenado. De seu medo falam os olhos,
o cair de joelhos suplicante, o suor que lhe
bolhava a testa e as têmporas, o tremor que lhe batia os dentes. De sua
esperança, a força advinda para partir o nó que lhe amarrava os pulsos e tentar
segurar a corda que envolvia o seu pescoço e assim, contorcia-se todo, iluminado
pelo clarão vermelho das quatro tochas. Lutou enquanto pode mas os braços
lhe tombaram e os ombros e a cabeça. O narrador não foge ao detalhe que lhe
certifica a morte:a língua para fora da
boca.
Inserido
no longo relato do romance, este episódio do enforcamento, como os inúmeros
outros a fazer desfilar os vexames e as humilhações a que são submetidos os
escravos, se constitui uma verdadeira sucessão de momentos cruéis: a impotência
do padre que deve permanecer impassível diante de quem lhe suplica o direito à
vida; a expectativa da multidão, com um
brilho nos olhos espantados, a acompanhar a luta do condenado na ânsia de
se safar da corda; a esperança em
preservar um bem tão passível de sofrimentos como é a vida de escravo.
Desses
momentos, como de tantos outros, foram
feitas as histórias da escravidão no Brasil. Histórias que se perderam nas
razões da História Oficial e que Josué Montello, servindo-se de uma narrativa
sem segredos e do poder que detém a ficção
de comover, resgata para enunciar algo
- as várias formas da resistência negra – que a elite de um país de
mestiços sempre procurou ignorar.
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