domingo, 28 de outubro de 2001

As astúcias do relato 4

                                     Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.Além do medo de um ataque por parte dos espanhóis, havia, também o medo das dissidências, das traições a agir contra seus desígnios.


            Eu não quero sussurros e eles o tempo sussurrando, eu não quero gestos misteriosos e eles passam o tempo fazendo contas com seus espantosos dedos, contando  arcabuzes, barris de pólvora ou cadáveres [...], responde Juan Núñez de Prado à pergunta do padre sobre o que fizeram de malvado, de bestial, de imperdoável para merecer a forca. Porque, merecedores ou não, Antón de Luna e Alonzo del Arco foram enforcados. Pois, nessa expedição de Juan Núñez de Prado para a Conquista do Continente, nada mais prevalece do que a sua vontade que ele justifica como sendo a de Deus e do Rei :  Sou eu quem enforca, eu sou a Espanha, rei e vice-rei, a real audiência e santo ofício e inquisidor. Assim,  além do episódio dos dois soldados condenados à morte, ao longo do romance, são inúmeras as referências à forca como instituição.

            Nas suas idas e vindas entre o fazer e o desfazer da cidade, Juan Nuñez de Prado lhe percebe as cordas. Presença  vital, pois é  com a forca  que ameaça no intuito de ser obedecido ou de se  livrar dos velhos e doentes. Só concebe a cidade com a forca na praça e com a igreja para assentar a vida. Quando um dos capelães o acusa de assassinato, retruca: Fizemos justiça. E outra vez, ao ser interpelado: [...] estes dois soldados estão doentes, gastos e velhos, vão morrer ainda que não os matemos, mas temos que matá-los pois não os mato eu, os mata o rei e o vice-rei. No entanto, são certezas que, por vezes, o abandonam e ele hesita, sentindo pena se deve mandar mata-los ou não: são pobres e desgraçados e até pensa em mandar dizer na carta ao vice-rei de suas queixas e pesares.  Mas, diz o capitão Vasquez: são gente ruim, não o esqueças, senhor, queriam nos matar e ir embora junto com os do Chile. E  diz o carcereiro  que estão resfriados, tossem e amaldiçoam, se queixam: quase seria uma crueldade fazer justiça com eles[...] , o velho está doente e a umidade lhe faz mal, por isso queria ir para o Chile.


            O velho é Alonzo del Arco. Tem trinta anos, os olhos verdes cheios de ódio e quando cai a tarde, chora e se agita para desatar os ferros. Antón de Luna, deixara família em Alicante. Inteiramente amarrado, com vinte voltas, com cinqüenta, com quinhentas voltas, seu rosto está congestionado e  a barba revolta e suja e emaranhada e triste [...] . Eles tem medo que o venham buscar para a morte porque sabem que Juan Núñez de Prado não quer nem doentes, nem moribundos na cidade. Doentes ou isentos das culpas que se lhes imputam, não serão perdoados e morrem de acordo com o ritual, num relato construído em três tempos.

            No primeiro, o que imagina fazer o capitão: enforcá-los, amarrados um ao outro, na mesma forca, com uma  só escada, apenas um nó, fazendo muito barulho com o bater dos sinos e os disparos de duzentos arcabuzes.

            Noventa páginas adiante, o segundo momento do episódio: há gente na praça e o capelão reza pelos apóstolos. A escada já está  apoiada, soa um tambor e uma flauta lúcida e pesarosa. Os prisioneiros, amarrados, caminham para a forca acompanhados do capelão e de suas rezas. Um deles não quer subir, os soldados o empurram e as palavras do capelão procuram convence-lo: [...] tem confiança, tem fé, tem esperanças, irmão meu, só treze degraus. Um dos capitães levanta o  braço e começa a soar um tambor desordenado, sem cerimônia, sem ritual, sem seriedade, misturado ao ruído das marteladas que destruíam as casas. Juan Núñez de Prado escuta o barulho das cordas batendo na madeira, um grito de terror e depois o grande silêncio, quebrado pela voz do capelão, suplicando: Oh! Deus, oh! Pai, meu pai, não os abandone, toma-os, recolhe-os.

            O terceiro momento, completando o episódio aparece no terceiro capítulo,  nas lembranças de Juan Núñez de Prado, meses depois, quando, ainda outra vez, está levantando a cidade e uma associação  de idéias o leva a pensar  no doutor Valdenebro, aproximando-se de Antón de Luna e de Alonzo del Arco e no escrivão a lhe perguntar se deve conceder prazos, um pouco de inútil espera aos prisioneiros ou se devem eles ser enforcados contra a lei de Deus e do rei. O doutor segurava a barba de Antón de Luna num gesto de piedade e de nojo a insistir na pergunta que lhe fazia e a esbofeteá-lo pelo seu silêncio. Juan Núñez de Prado vira o sangue escorrer pelo rosto do prisioneiro e com um pouco de pena, estava certo de que não teria tempo para deter o doutor, os verdugos, nem a corda das forcas, diz que  não haverá  tempo  para prazos nem apelações.E o doutor informa que os prisioneiros não querem  dizer a  verdade. Então, ele decide: a verdade a dizemos nós, agora.

            Nas sequências que seguem, ainda , as perorações dos capitães sobre os feridos escondidos nas carretas e ainda os gritos irados do capelão a recusar a execução. Fizemos justiça ainda que injusta, ainda que implacável, conclui o capitão.

            Há sem dúvida um perfeito domínio da técnica do romance no relato do episódio. Seja pelo intervalo entre um e outro momento, seja pela inserção de variáveis que lhe ampliam os sentidos, negando maniqueísmos, seja pela sucessão dos fatos,  nem sempre no seu rigor cronológico.  Sobretudo, nesse retorno à forca e aos enforcados, a trazer no seu bojo as duvidosas certezas da conquista, mais do que uma astúcia do relato se mostra uma convicção de que não basta, apenas, só  um dizer para  aspirar ao exorcismo.

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