domingo, 7 de outubro de 2001

As astúcias do relato 1


  Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Na primeira, muitos espanhóis se recusam a desmontar suas casas para amontoar nas carretas e levá-las adiante. Mas, o fundador da cidade, atribuindo-se plenos poderes – sou a Espanha, rei, vice-rei e real audiência e Santo Ofício e inquisidor  não hesita em dar a morte aos que se recusam segui-lo.




            Já as casas foram desmanchadas e as carretas  repletas iniciam o caminho em direção ao novo assentamento. Gritos se elevam para dizer que ficam, que não irão abandonar as casas, nem os cavalos, nem as flores, nem as árvores e nem os plantios. Os capitães dizem das razões. Primeiro, com paciência, depois, levantando a voz e a mão para esbofetear. E, no meio das ruínas de paredes, portas, janelas que se desfazem sob as marteladas, intactas, indiferentes duas ou três casas se mantém fechadas, desafiantes. Juan Núñez de Prado irá entrar numa delas e o confronto com o espanhol que a habita é feito numa narrativa  estruturada em múltiplos meandros e em zonas de sombra.

            O cenário ainda não fora degradado. O teto protegia a casa, a cama estava arrumada e a mesa posta. Tampouco o espanhol se contagiara com o desejo alheio e alheio ficara ao delírio de destruição que determinara fossem as casas desfeitas: vamos derrubar as casas, levar portas e janelas e sacadas e tetos e balaústres e saguões que possam ser úteis no novo assentamento lhe anuncia Juan Núñez de Prado. Como resposta, a convicção de que não irá ferir a sua casa pois a cidade também que lhe pertence. Ele se chama Pedro Albañez e, na  obstinação em possuir suas madeiras, seus móveis, sua solidão, tem o decreto de morte. Juan Núñez de Prado vai ditando a sentença, que já havia sido dada, – eu dou a ordem, mas não nasce em mim, embora eu a invente, nasce na voz  do vice-rei, na voz do rei e da rainha, nos sonhos e fúrias e desejos e invejas e orgulhos dos ministros, da audiência  sem proferi-la: ele será morto pelos capitães ou por ele mesmo, irá morrer, junto com seu cão, enforcado. Pedro Albañez se mantém impassível diante da aproximação dos que chegam e aos golpes de martelo, começam a desfazer-lhe a casa. Os soldados já estão no teto com seus machados, já despregam janelas quando o outro morador da casa surge de um dos quartos. Está ferido e tem dificuldade em se mover. Juan Núñez de Prado que o vê ajoelhado, queixando-se para carregar a arma, sabe que também ele irá morrer. Não sem antes resistir: Vou me defender, dissera Pedro Albañez, a morte não vai entrar em mim sem que eu trate de impedir, se os teus assassinos são muitos, vou durar dez minutos, se são poucos, vou durar mais, ficarei na cidade enquanto haja alguém com vida [...]. E, na defesa da casa, eles disparam até que se escutem gritos e a fumaça impere. O que vai impedir que possa ser visto o que acontece.

            Num recurso narrativo usual em Carlos Droguett, se interpõe, então, no relato uma zona de sombras a poupar a descrição da morte. A informação de que Pedro Albañez morreu  é dada pelas emoções de Juan Núñez de Prado. Ele quis ter o capitão Vasquez a seu lado,  hesitando entre honrá-lo pela tranqüilidade com que obrigava o cumprimento das suas determinações ou insulta-lo em voz baixa, espavorido, atormentado, mostrando-lhe o homem estendido no chão [...]. Ainda que o seu nome não seja mencionado, como tampouco a palavra morte, o cachorro que estava deitado, ao lado de seus borzeguins, uivando devagar, insinuando o seu luto não deixa dúvida que se trata de Pedro Albañez, já sem vida.

            A sua história, feita de poucas seqüências – é forte e a barba lhe sobe pelo rosto; está sentado à mesa para comer e perto, tem o cão; não acredita que será punido apenas por desejar viver na sua casa; e a defende e morre por não transigir – é relatada entre a enumeração de objetos, delineando um cenário e as certezas e as dúvidas dos personagens, outro recurso narrativo do romancista chileno. Irrompe no universo maior – a Crônica da Conquista – marcado por um  lirismo que, ao esmaecer o heroico, revela um ser humano enredado na sua visão de mundo. Nela se inscreve o desejo de poder realizar o mais singelo dos sonhos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário