domingo, 14 de outubro de 2001

As astúcias do relato 2


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Já no seu segundo assento, quando os capitães se dão conta que  escondidos nas carretas vieram ,também, os inválidos, decidem que a debilidade é um pecado que se castiga com a morte, a forca e o garrote são mortes divinas. 

            Seguiram junto, escondidos nas carretas. Juan Núñez de Prado quis argumentar, porém os capitães unânimes, responderam: este é o lugar. Chovia torrencialmente e, desmontando, ele demonstrou que estava de acordo em ali fundar, outra vez, a cidade. Os outros também desmontaram e em altas vozes, abafadas pelo temporal, chamaram os soldados. Então, de uma das carretas desceu um soldado torto se apoiando no arcabuz como se fosse muleta.  Tinha o uniforme seco e aquilo parecia uma coisa insólita, uma  traição, uma falta de disciplina, de decoro, era jovem e envelhecido, tinha o cabelo liso e grisalho e um rosto magro e cadavérico  [...]. Depois, desceu um soldado coxo e logo outro e um velho de barbas brancas. Riu um soldado e riram os capitães e eles se mostraram humildes, envergonhados e felizes. Porque, antes  de arrancar a cidade do seu primeiro assento, carregando-a nas carretas, dizia Juan Núñez de Prado: [...] coxos não, feridos não, nem velhos nem moribundos. E, diziam os capitães: [...]  nem vagabundos, nem miseráveis, nem pesteados. Mas, à revelia    dos que davam ordens, eles seguiram junto, escondidos nas carretas E no segundo assento,  na ânsia de reconstruir a cidade, ainda que Juan Núñez de Prado ordene   tragam os doentes, os pesteados, os feridos, todos podem trabalhar, todos tem que trabalhar, eles sabem que são indesejáveis e que não deviam ter acompanhado a mudança da cidade porque já haviam sido  sentenciados.

            Aos poucos, entre o diálogo de Juan Núñez de Prado com um dos capelães  ou algumas de suas lembranças ou em meio a descrição do acampamento e seus soldados e seus índios adormecidos, Carlos Droguett, na densa narrativa que lhe é peculiar, irá revelando o destino que os espera.

            E o faz pelo que ouve e pelo que vê, pelo que sente o capelão. Apenas se decide o novo lugar da cidade, ele sai a caminhar pelos campos, afastando-se  do acampamento, para os ermos  onde não tinham, ainda, chegado nem os cães,  nem os cavalos, onde  as árvores cresciam livres.  Assim, inesperadas são as vozes que ouve e, logo, igualmente inesperada, a visão do  homem caído: um homem jovem de rosto trabalhado e audaz, cínico e  esperto, tinha os olhos fechados mas não dormia, se queixava com esforço. O peito estava ensangüentado, o uniforme em frangalhos e, perto dele, a muleta. Ao vê-la pousada na terra, o capelão, sente as mãos úmidas e um calor na boca. Vem-lhe à mente o gesto furioso de Juan Núñez de Prado, desembainhando a espada a perseguir o soldado, prestes a saltar sobre ele que  mostra, com audácia, a muleta, sua única arma . Imagem que se mistura  à visão  que tem diante de si:  deitado no chão, com sangue no peito, esse homem de  rosto imberbe. Cínico, inocente, audaz  até o desespero e a essa outra  da noite anterior,  quando, o vira, se afastar   coxeando muito, e de maneira ridícula.  Então, escutou a conversa dos homens. Estavam amarrados com firmeza desde os borzeguins até o pescoço. Um era velho, de barba alva e nobre; o outro não tinha um braço e ao terceiro, coxo e torto, lhe faltava um olho. Os rostos estavam machucados e cheios de sangue. Perto deles, soldados e capitães. O capelão os increpa sobre o que fazem. Num longo diálogo, interrompido por suas lembranças e pelo que vai percebendo a seu redor – a preparação da morte dos prisioneiros-   eles respondem que se trata de um assunto  que lhes concerne e não ao vigário.
            São três momentos de um mesmo drama, iniciado bem antes, ainda no primeiro assento com a recusa em deixar os inválidos seguirem com a cidade e cujo desfecho está contido na seqüência em que o capelão, ao ver perto do homem caído algumas pás, se ampara de uma e começa a cavar e na outra quando escuta o vai e vem das cordas, na penumbra,  e vê os enforcados no seu pesado balançar.
            A maestria do romancista consiste em construir esse drama a partir de lembranças e de impressões que, intermitentemente se mesclam, mais sugerindo do que precisando, para se antepor às verdades proclamadas em nome de Deus e do Rei. Se Carlos Droguett abdica em precisar os maus tratos e a morte dada aos soldados não prescinde, no entanto, das palavras que deixam claras as razões, ditas de Estado, que assim os condenam a serem assassinados como se tivessem sido condenados por justa causa. Ações e intenções que são, na verdade, o mesmo lado de uma moeda num significado cuja síntese está nas palavras de um dos capitães: Trazemos a civilização e a vida e a cruz e a espada da Espanha [...]. E o Continente pagou um bom preço por isso.

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