domingo, 21 de outubro de 2001

As astúcias do relato . 3


            O capítulo se inicia com Miguel Ardiles dizendo a Juan Núñez de Prado que soldados do Chile iriam vir para prendê-lo. Várias noites haviam passado desde que chegara e a esse diálogo entre os dois, seguem-se vários monólogos de um  ou do outro, diálogos de Juan Núñez de Prado com os capelães e muitas lembranças que lhe acodem. Recursos que ajudam a tecer, em meandros, uma narrativa que se recusa a obedecer a ordem cronológica dos fatos. Assim, é somente sessenta páginas adiante que irá se inscrever o episódio da chegada de Miguel Ardiles à cidade de Barco. Juan Núñez de Prado  vê quando se aproxima com os seus soldados . Caminhavam se arrastando. Um dos cavalos estava manco e mal podia se mover e do soldado que se prendia a seu pescoço se soltavam trapos sanguinolentos. Na padiola,  um ferido com a cabeça cheia de sangue. Estavam todos envoltos no cheiro nauseabundo que exalavam. Também vê os grandes olhos de Miguel Ardiles olhando do alto de seu cavalo, um belo cavalo negro que se havia transformado num animal sem cor, devorado pelos tremores e a febre .Ele desmonta com lentidão, se dá conta  de que as muralhas e as casas estavam sendo derrubadas. Porém, sua mão não treme ao perguntar, mostrando, com um gesto, as carretas e os índios carregados: Aí levas tudo, Senhor? Juan Núñez de Prado gritou, tenso e cruel: Tudo, tudo, a cidade inteira, o que pudemos juntar e recolher dela. Ainda assim, o recém chegado  suplica pelos seus soldados cansados e famintos e pelos feridos graves mas  a irredutível resposta é de que estão partindo com a cidade às costas para fugir à morte que os está rondando. Sua aquiescência, porém, não apenas em aceitar  o inadiável da mudança da cidade, mas a se mostrar disposto a executá-la  -  Certamente que o faremos, Senhor, se o fizeste duas vezes, podes fazê-lo três e trezentas, sabes que viemos na expedição para fabricar cidades para a coroa[...] -  se antepõe no relato,  a esta sua dramática chegada com  os soldados no lugar onde deveria existir uma cidade que, no entanto,  está sendo transportada alhures.

            Contrariamente, em meio à enumeração de objetos que se espalham pelo chão, em meio à impressões e sentimentos e a perfis apenas esboçados  curtas frases  oferecem uma informação cujo sentido se enovela à sequências anteriores. Por exemplo, cortará a corda com a espada ou o punhal que aparece na página 326, leva à via balançarem as cordas das forcas da página 325 que irá esclarecer qual é a corda que será cortada. E mais adiante, outra sequência da mesma página, contemplava estupefato o padre Cedrón, de pé, no alto da cadeira, tratando de alcançar uma corda que o vento tempestuoso lhe arrebatava  informa quem pretende alcançar a corda e quem  irá cortá-la..

            Assim, episódios que se completam muitas páginas adiante, sequências que somente se tornarão claras se enoveladas às que aparecem em páginas anteriores, pontilham  um relato que vai se fazendo gradualmente e em idas e vindas,  partes desse itinerário de  Juan Núñez de Prado em que ele se defronta com as outras vontades. Neste terceiro capítulo ele  não  se demove de seguir mudando a cidade e nega ao capitão Ardiles as horas de descanso que ele pede, permanecendo impassível diante do  sangue dos que são massacrados  e diante do afã  do capelão em cavar a terra para enterrar os mortos e diante dos tiros dos soldados e das espadas nuas dos capitães. A seu redor,  a cruel e trágica história de um punhado de homens em terras do Continente.Também, as terríveis verdades da condição humana.         

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