domingo, 25 de novembro de 2001

Os donos


Hilarius Hilarion é um jovem negro e pobre de Port au Prince. Ao roubar para comer, é preso. Batem nele os guardiões da casa e apanha da polícia antes de ser jogado na prisão onde fica muito tempo. Entre as tarefas que deve realizar e os maus tratos, ele conhece um comunista. Também ele é torturado, mas uma força interior o faz resistir e as palavras que dirige ao jovem Hilarius Hilarion são acenos para a construção de um mundo diferente em que não haja aqueles que são donos de tudo, privando os demais das coisas boas da vida e que também lhe são devidas. O jovem negro se deixa convencer – não sofrera humilhações desde criança, trabalhando para os ricos e não sofrera fome e frio e a violência oriunda das leis dos mais fortes? – mas no Continente não existem sementeiras onde germinem as palavras de ordem para desfazer o que já foi estabelecido, ainda que à revelia dos que recebem a menor parte. E na luta desigual muitos ou quase todos, vão ficando pelo caminho. Hilarius Hilarion foi assassinado pela repressão. E, capturado, torturado, dado por desaparecido foi Jacques Stephen Aléxis, autor de Compère General Soleil  (Paris Gallimard, 1955). Um romance em que se sucedem quadros de miséria e sofrimento, atrelados, sempre, à ferocidade de mandantes e em que permeiam chamadas às lutas e à alegria de viver.  Como se necessário fosse ensinar uma lição que, no entanto, no Continente, já há muito é conhecida e agravada pela presença de estranhos no país. Estranhos que detém o beneplácito dos governantes como o atestam as palavras  de um Conselheiro de Estado ao afirmar que só os americanos podem salvar o seu país.  E, então, como donos de quase todos as plantações de açúcar do Haiti ou como os que vêm para garantir a nefasta ordem das desigualdades, sempre que tal seja preciso, com a presença dos barcos rodeando as enseadas e os mares do Continente, se mostram quando andam de táxi e não querem pagar; quando perseguem uma jovem e batem em quem se aventura na sua defesa; quando dizem insolências diante de uma casa e com isso provocam a morte do seu dono. E há o haitiano que acede em posar para a kodak do ianque e ao levantar a mão para acariciar o menino loiro, recebe nela uma cuspida acompanhada de uma exclamação de ódio: Get out, nigger; e há a mulher faminta com a criança a implorar para os americanos bêbados, prestes a queimar, na calçada, um punhado de dólares, que é obrigada por eles a dançar, caminhar de quatro, miar, latir, relinchar para receber um dos bilhetes que tem que pegar com a boca do chão; e há o comerciante sírio que presenciou os fuzileiros navais americanos atacar com armas automáticas a gente pobre e desarmada, tendo nas mãos apenas, suas ferramentas de trabalho e que  viu os “civilizados” assassinar mulheres, torturar crianças e crucificar vivos os rebeldes; e há quem saiba porque todas as maravilhas do Haiti não pertencem aos negros e as negras mas aos americanos brancos. E há os que tem esperança: juntos, nos os expulsaremos e resolveremos entre nós nossas diferenças. E há os que acreditam que apesar de todos os americanos, apesar de todos os sanguessugas [...],  apesar de todos os policiais, novos braços de operários [...] e de lutadores são a colheita que irrompe sem cessar de nossa terra a cada cor do céu, a cada estação das chuvas [...].

             Num relato, como o deste primeiro romance de Jacques Stephen Aléxis que faz ver injustiças e desigualdades num inacreditável império da miséria, abundam  seqüências cuja crueldade se iguala àquelas dos romances do Continente, também eles enraizados  nesse mundo de opróbrios que estão sempre a se renovar e para os quais parece não haver redenção. Há, porém, muitas outras cuja beleza lírica aproxima, por vezes, sua prosa, de um dizer poético  a prometer ou  a esperar  um vislumbre de beleza, de bondade, de coragem, e de  amor. Magias que, certamente e apesar de tudo, permitem a vida no Continente.

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