Isabel
Allende o chama, simplesmente, de Poeta mas, ao mencionar-lhe a casa, perto do
mar, e a paixão pelas coleções e os versos que não concluiu é como dizer-lhe o
nome neste primeiro romance que
publicou, La casa de los espíritus (1982). A narrativa que abarca os princípios do
século XX e se estende até os primeiros tempos da ditadura chilena, instaurada
em 1973, nos dois últimos capítulos do livro, “O terror” e “A hora da verdade”,
relata o destino dos personagens no dia desse primaveril mês de setembro em que
foi dado o golpe militar e nos longos dias que se lhe seguiram. E fazem constar
o que, afinal, não foi um segredo para o mundo, os atos arbitrários, as
prisões, as brutalidades, as torturas, as traições, os ridículos, as perdas, as
covardias, a especulação, a euforia inconsciente. Também, a agonia do Poeta e a
sua falta de vontade em continuar a viver. Morreu no dia 23 de setembro e na
sua casa de Santiago, meio em ruínas
pela ação dos vizinhos, como diziam os militares e pela ação dos militares,
como diziam os vizinhos, foi velado por
uns poucos pois seus amigos estavam prófugos ou exilados ou mortos. E foi um
pequeno cortejo que acompanhou o caixão, simples, de madeira, coberto de
flores, caminhando lentamente, entre as duas filas de soldados com suas
metralhadoras. Em dado momento do
percurso, uma voz gritou o nome do Poeta e, numa só voz, todas as vozes
responderam: Presente!Agora e sempre.
E se elevaram cantos e consignas proibidas, enfrentado as armas que tremiam nas mãos dos soldados. Ao passar o cortejo
fúnebre diante de uma construção, repetindo a homenagem que muitos anos antes,
lhe haviam prestado os mineiros de Lota,
descobrindo-se ao ouvir, num comício, o seu nome e o da poesia que iria
declamar, os operários abandonaram as ferramentas e, tirando os capacetes,
formaram uma fila cabisbaixa. E seus
versos, falando de justiça e de liberdade, foram gritados pelos que o
acompanhavam até a última morada: um túmulo emprestado, diz a narradora.
Logo,
a ficção retoma o seu curso, enredada no tumultuoso acontecer de um cotidiano
sem leis onde se inscrevem os atos
abusivos, os saques, as sevícias, os desaparecimentos, as mortes. Como se, verdadeiramente, fossem invenções
literárias, frutos de fantasia desenfreada a narrativa de suplícios,
e a descoberta de facetas humanas até então
insuspeitas, reveladas, uma e outra, na impunidade reinante e nos benefícios auferidos na era que estava
a se impor. Primeiro, o papel que aceitaram muitos, para tornar possível a
sabotagem que, programada pelos que haviam sido substituídos no Poder,
pretendia a queda do presidente eleito. Donos dos meios de comunicação e de
quase ilimitados recursos econômicos e usufruindo da ajuda dos gringos,
impediram o abastecimento do país, originando insustentáveis privações. Depois,
a compreensão de que não seria a
falta de um frango na mesa razão para
deter a sedimentação do marxismo no país e a conseqüente aceitação de que o
único a fazer seria um golpe militar. Quando ele foi dado, como que um toque de
mágica transformou as pessoas. Alba, uma
das personagens femininas do romance, se pergunta de onde tinham saído tantos fascistas da noite para o dia porque na
longa trajetória democrática de seu país nunca tinham sido notados [..].
E, para eles, como para os convertidos de última hora,
foi fácil, bater nos
prisioneiros, massacrá-los até o impossível para, então, assassiná-los nos
descampados, atirados no chão porque já estavam sem forças para ficar de pé.
Ilustrando o procedimento usual em relação aos suspeitos, a prisão de Alba e as
sevícias que sofreu. Indivíduos sem uniforme, invadiram a casa, durante a
noite, revolveram tudo ,quebraram,
roubaram, atearam fogo sem que o barulho e a fumaça tivessem alertado um único vizinho.
Sem dúvida, um
relato para testemunhar. Como, o
das breves linhas que registram os últimos momentos da presença do Poeta
sobre a terra. Elas eludem o seu nome nesse
abrigar-se em recursos narrativos como a dizer que só a ficção é passível de
dar conta do inverossímil velório e do entrelaçar do medo e da coragem que foi
o enterro de Pablo Neruda.

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