Como tantos
outros, foi presa por trabalhar contra a
nova ordem estabelecida, no Chile de 1973: Alba, a personagem do primeiro
romance de Isabel Allende, La casa de
los espíritos, publicado em 1982. Houve um momento, nas sua vida
universitária que se deixou atrair pelas
noites insones, passadas num café, falando das transformações que precisaria o
mundo. Então, esteve certa de que, chegado o tempo, poderia dar a vida por uma
justa causa. Mas, foi por amor a Miguel, um líder estudantil, e não por
convicção ideológica que se entrincheirou com os estudantes na Universidade.
Neta de um senador da república, latifundiário, acostumado ao mando, um grande
inimigo dos marxistas. Pensou Alba que a sua influência – afinal havia sido o
primeiro a se opor ao governo eleito pelas esquerdas, fora ele que estabelecera
os contactos com os militares e com os gringos para derrubá-lo – entre os que
haviam usurpado o poder , a protegeria se descobertas fossem as suas
intervenções para esconder pessoas perseguidas ou para conduzi-las às
embaixadas.
No entanto,
quando tal aconteceu, foi levada de sua casa, diante do olhar alquebrado do
outrora poderoso e prepotente senador , já então, pequeno e miserável como um ancião doente, que não pode impedir nem que a esbofeteassem na sua frente.
Compreendeu que dele não poderia esperar ajuda.
Enjaulada,
torturada, seviciada, violada, querendo se deixar morrer, conseguiu forças para
preservar a vida ao se submeter à idéia salvadora de um dia escrever sobre o
pesadelo que estava a viver para que o
mundo ficasse sabendo do horror que acontecia, paralelamente à existência
pacífica e ordeira dos que não queriam saber, dos que podiam ter a ilusão de
uma vida normal, dos que podiam negar que iam flutuando numa balsa sobre um mar
de lamentos, ignorando, apesar de todas e\as evidências, que a poucas quadras
de seu mundo feliz estavam os outros, os que sobrevivem ou morrem no lado escuro.
Circunstâncias
– ter sido levada, como outros que não deviam morrer, a uma clínica para que
lhe curassem a mão infeccionada, o avô ter pedido um favor a quem lhe devia um
outro e fazia questão de pagar - fizeram
com que se salvasse. Uma tarde, homens
de uniforme a foram buscar no campo de concentração onde estava e, com uma
venda nos olhos, a embarcaram num furgão para deixa-la num monturo. Ali devia
permanecer, respeitando o toque de recolher, até o amanhecer. Ao tirar a venda,
cheia de frio e medo, viu-se no meio de lixo e dos ratos, disposta a não se
mover dali enquanto não clareasse o dia. Porém, protegido pela noite, um menino
se aproxima, joga-lhe sobre os ombros um agasalho e a leva para uma casa
escangalhada, como todas as outras por ali, cujo interior, de
extrema pobreza, era iluminado apenas por uma lâmpada. A mulher que a recolheu,
dando-lhe uma xícara de chá sem açúcar,
pois era isso o que tinha em casa, era de pele escura, muitas rugas no rosto e
com dentes a faltar-lhe na boca. Conversaram toda a noite e quando Alba lhe
disse que fora muito arriscado tê-la ajudado, apenas sorriu.
No dia
seguinte,pediu a um compadre que a levasse de volta para casa: a velha casa de
esquina com suas excentricidades
arquitetônicas e suas pretensões de estilo francês, deteriorada pelo tempo
e pelo abandono.
Reencontrou
o avô, miúdo e trêmulo, com seu cabelo branco
e sua bengala de prata, disposto a deixar o país, no anseio de
protegê-la. Alba, porém, não poderia partir e deixar no Chile a Miguel. Para
esperá-lo, se dispõem a refazer a casa, tornando-a, outra vez, habitável. Então, ela pôs flores
frescas nos vasos e travessas com frutas sobre as mesas.
Reintegrara-se
a seu elemento natural. Apta a entender os liames que se estabelecem entre os
seres, permitindo crueldades e sevícias, disposta a compreender que nada do que
ocorre é fortuito e convicta que na dificuldade de vingar os que deviam ser
vingados, o seu caminho é a vida e a escrita.
Entre o seu
mundo e o da mulher que lhe dera abrigo estavam
os tabiques para esconder a miséria das casas e dos famintos.
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