domingo, 16 de setembro de 2001

O regresso

            Como tantos outros, foi presa  por trabalhar contra a nova ordem estabelecida, no Chile de 1973: Alba, a personagem do primeiro romance de Isabel Allende,  La casa de los espíritos, publicado em 1982. Houve um momento, nas sua vida universitária que se deixou  atrair pelas noites insones, passadas num café, falando das transformações que precisaria o mundo. Então, esteve certa de que, chegado o tempo, poderia dar a vida por uma justa causa. Mas, foi por amor a Miguel, um líder estudantil, e não por convicção ideológica que se entrincheirou com os estudantes na Universidade. Neta de um senador da república, latifundiário, acostumado ao mando, um grande inimigo dos marxistas. Pensou Alba que a sua influência – afinal havia sido o primeiro a se opor ao governo eleito pelas esquerdas, fora ele que estabelecera os contactos com os militares e com os gringos para derrubá-lo – entre os que haviam usurpado o poder , a protegeria se descobertas fossem as suas intervenções para esconder pessoas perseguidas ou para conduzi-las às embaixadas.



          No entanto, quando tal aconteceu, foi levada de sua casa, diante do olhar alquebrado do outrora poderoso e prepotente senador , já então, pequeno e miserável como um ancião doente, que não pode impedir nem que a esbofeteassem na sua frente. Compreendeu que dele não poderia esperar ajuda.

            Enjaulada, torturada, seviciada, violada, querendo se deixar morrer, conseguiu forças para preservar a vida ao se submeter à idéia salvadora de um dia escrever sobre o pesadelo que estava a viver para que o mundo ficasse sabendo do horror que acontecia, paralelamente à existência pacífica e ordeira dos que não queriam saber, dos que podiam ter a ilusão de uma vida normal, dos que podiam negar que iam flutuando numa balsa sobre um mar de lamentos, ignorando, apesar de todas e\as evidências, que a poucas quadras de seu mundo feliz estavam os outros, os que sobrevivem ou morrem no lado escuro.

            Circunstâncias – ter sido levada, como outros que não deviam morrer, a uma clínica para que lhe curassem a mão infeccionada, o avô ter pedido um favor a quem lhe devia um outro e fazia questão de pagar  - fizeram com que se salvasse.  Uma tarde, homens de uniforme a foram buscar no campo de concentração onde estava e, com uma venda nos olhos, a embarcaram num furgão para deixa-la num monturo. Ali devia permanecer, respeitando o toque de recolher, até o amanhecer. Ao tirar a venda, cheia de frio e medo, viu-se no meio de lixo e dos ratos, disposta a não se mover dali enquanto não clareasse o dia. Porém, protegido pela noite, um menino se aproxima, joga-lhe sobre os ombros um agasalho e a leva para uma casa  escangalhada, como todas as outras por ali, cujo interior, de extrema pobreza, era iluminado apenas por uma lâmpada. A mulher que a recolheu, dando-lhe  uma xícara de chá sem açúcar, pois era isso o que tinha em casa, era de pele escura, muitas rugas no rosto e com dentes a faltar-lhe na boca. Conversaram toda a noite e quando Alba lhe disse que fora muito arriscado tê-la ajudado, apenas sorriu.

            No dia seguinte,pediu a um compadre que a levasse de volta para casa: a velha casa de esquina com suas excentricidades arquitetônicas e suas pretensões de estilo francês, deteriorada pelo tempo e pelo abandono.

            Reencontrou o avô, miúdo e trêmulo, com seu cabelo branco  e sua bengala de prata, disposto a deixar o país, no anseio de protegê-la. Alba, porém, não poderia partir e deixar no Chile a Miguel. Para esperá-lo, se dispõem a refazer a casa, tornando-a, outra vez, habitável.  Então, ela pôs  flores frescas nos vasos e travessas com frutas sobre as mesas.

            Reintegrara-se a seu elemento natural. Apta a entender os liames que se estabelecem entre os seres, permitindo crueldades e sevícias, disposta a compreender que nada do que ocorre é fortuito e convicta que na dificuldade de vingar os que deviam ser vingados, o seu caminho é a vida e a escrita.

            Entre o seu mundo e o da mulher que lhe dera abrigo estavam  os tabiques para esconder a miséria das casas e dos famintos.

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