Tinha trinta anos quando embarcou para
a América do Sul em busca de uma herança. No Peru, os parentes não lhe
reconheceram os direitos e, passados alguns meses, só lhe restou fazer o
caminho de volta à França, seu país natal onde, em 1838, publica Les
pérégrinations d’une paria, registro da viagem que fizera. A sua
tradução para o português deve-se à Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC
de Santa Cruz do Sul. Constitui-se um valioso testemunho sobre vários aspectos
da vida do Continente nessa terceira década do século XIX. Certamente, um olhar
europeu. E, tendo em vista pertencer a uma jovem mulher, sem dúvida,
surpreendente, não apenas pelas descrições de pessoas e de fatos e de costumes,
mas, pelas pertinentes reflexões que, muitas vezes, acompanham o que descreve
ou narra.

Um
pouco antes de deixar o Peru, convidada, foi passar uns dias no litoral, em
casa de amigos que lhe propiciam visitar uma propriedade rural. Era uma das
grandes plantações de cana-de-açúcar do país cujo dono se prontificou a
mostrá-la no que tinha de belo – a sólida casa, a capela, grande o bastante para conter
mil pessoas o pomar, o belvedere com a magnífica vista para o mar e para os
extensos canaviais – e sem esconder as dificuldades que devia enfrentar: a
impossibilidade de comprar novos negros cujo número diminuía sempre pois três
quartos deles morriam antes dos doze anos.
Sua
queixa foi o ponto de partida para um diálogo em que se mostram as razões do
senhor de escravos e as de alguém que recusa a prática escravagista e acredita
que ela possa ser erradicada.
Flora
Tristan se mostra convicta de que a França poderia viver sem o açúcar de cana,
uma vez que aquele originado da beterraba a ele se equivale e possui, no seu
entender, o supremo mérito de fazer
com que baixe o preço do açúcar das colônias, disso podendo resultar a melhor sorte dos negros e, conseqüentemente, a total abolição da
escravatura. Inquirida sobre o que acontecera em São Domingo – a tal tentativa
não fora uma ilusão? – Flora Tristan argumenta a partir da premissa que deve
haver uma preparação para o uso da liberdade. Para ela, é óbvio que são muitos
os obstáculos a se oporem a uma libertação simultânea e que não leve em
consideração os meios para fazer possível a inserção na sociedade de indivíduos
até então aptos somente à obediência. Para fazer dos escravos, membros úteis e
não marginais, acredita numa ação gradual: libertar, anualmente, escravos com
menos de vinte anos e sob a condição de tê-los feito freqüentar escolas rurais e de artes e ofícios antes de
deixá-los gozar a liberdade.
Admite que para tal proceder, seriam necessários uns trinta anos até chegar à
total emancipação. Mas, os negros libertos iriam, a cada ano, aumentar a
população dos trabalhadores e conseqüentemente, a riqueza das colônias – é esse
o universo escravagista que ela conhece – cujo futuro, no seu entender, somente
acena com misérias e calamidades.
É evidente que
suas palavras caíram em ouvidos moucos e sem qualquer interesse por mudanças
que não tivessem por fito enriquecer num presente e no total desprezo pelo
futuro do país.
Assim, se as idéias de Flora Tristan não foram
semeadas em terra fértil e se perderam nas páginas de seu livro, é, no entanto,
inegável que seus prognósticos não foram equivocados. Ainda hoje, neste século
que se inicia, certamente, ninguém que habite um país do Continente onde
reinaram as práticas escravagistas, ignora o grande preço que estas práticas
ocasionaram em vidas e em vítimas das crueldades, preço que se iguala ao
problema social acarretado e que, até hoje, passados mais de cem anos da
abolição da escravatura, não foi solucionado.
Como, tampouco, foi aprendido, no
Continente, o que deveras significa a liberdade.
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