Há
também um aspecto que ressalta no livro: a solidariedade. Todos ajudavam o
Louco, os diversos personagens que transitam em seu redor dão lhe abrigo, alimentam-no. Isso foi escrito por um homem que era profundamente humanitário,
cuja ternura estendia-se da família até aos animais domésticos. Cecília Machado Bordini. (Correspondência).
O livro é muito lindo e, sem dúvida, dignos de nota,
por inusuais na época em que foi escrito, os seus recursos narrativos,
presentes nessa estrutura de quadros breves, nessa história sem heróis, nessas
zonas de sombra, nessa agilidade de ritmo, nesses pequenos enredos que vão se
acoplando ao relato principal. E, como soe acontecer com todas as grandes
obras, todo um mundo nela contido possui significados que o estudo dos
personagens, do tempo e do espaço romanesco e do enredo oferece, sempre,
motivos para as tentativas de decifrá-la mais profundamente. É’ o segundo
romance de Dyonélio Machado, O Louco do Cati, publicado pela Globo de
Porto Alegre, em 1942. Em cinco partes, se agrupam setenta e dois quadros que
relatam a viagem do Maluco – assim o chamam os demais personagens – que é
levado por Norberto, de Porto Alegre para um passeio no litoral que
circunstâncias adversas prolongam até o Rio de Janeiro de onde vai sendo
trazido de volta para o Sul até chegar aos campos de Quaraí onde nascera.
O
Maluco (ou Louco ou Cati ou de muitas outros maneiras com que é designado), não
é dono de seu destino e, ao longo dessa
aventura na qual é envolvido, se
entrega, docilmente, ao arbítrio alheio. Quase sem falar, quase sem sorrir (algo
desligado, longe e alheio a tudo, diria dele muitos anos
depois o seu criador), tendo de seu, apenas o medo do Cati, essa prisão a céu
aberto onde, sob o comando de João Francisco Pereira de Souza, a título de
anular possíveis contendores, eram freqüentes as degolas. Se, lampejos de
lembranças – o momento em que saiu de casa, de madrugada, numa despedida de
menino; esse outro em que viu uns índios descalços, amarrados uns aos outros
pelo pescoço, prisioneiros de um Tenente do Cati; aquele em que chega na casa
de um velho parente; ainda e sempre, perceber o medo que inspirava o Cati; – dizem algo de seu passado.O presente em que
vive é esse contínuo trocar de dono: os
que dele se encarregam, um após o outro, para fazê-lo cumprir o itinerário que
presumem ser o seu.
No
primeiro capítulo que tem como sugestivo título “A primeira aventura foi no bonde”
a passagem acaba por lhe ser perdoada diante da moeda falsa que apresenta.
Logo, no armazém do fim da linha, ao querer cigarros, o dono do armazém aceita
a tal moeda que não é suficiente, porém, para pagar os fósforos, o que ele
parece não entender. Um rapaz que ali perto, sentado sobre um caixão de
gasolina, conversava, se prontifica a dar a moeda que falta e, sem mais, o
incorpora à curta viagem que programava com uns amigos. E com isso, o
incorpora, também ao que irá lhe advir: a prisão em Araranguá e a transferência
para Florianópolis e para o Rio de Janeiro. Sem culpa formal, suspeito político
um, inocente o outro, lá ficam os dois por uns tempos na cadeia sem que se
desfaçam os laços instituídos a partir do momento em que Norberto faz dele seu
companheiro de viagem. De fato, dele, não irá se descuidar e, ao sair da
prisão, procura um jeito de tirá-lo dali. A partir de então, acumulam-se os
favores: um dos companheiros de prisão, posto em liberdade no mesmo dia que
ele, paga-lhe o pernoite no hotel; depois, um rapaz de Alagoas, lhes consegue
uma roupa e lugar para ele e Norberto dormirem. Como deve ser recambiado para o
Sul, lhe obtém uma passagem e se dispõe a levá-lo a São Paulo. Mas, não podendo
ir, a dona da pensão acha uma crueldade abandoná-lo, assim, em São Paulo e
sugere que fique mais um tempo no Rio de Janeiro. Mais tarde, lhe conseguem
passagem de navio para Florianópolis e algum dinheiro para o ônibus dali para
diante. Embarcado, o recomendam a um dos passageiros que o toma sob seus cuidados:
paga a diferença para que viaje na primeira classe, leva-o junto a São Paulo na
escala que faz o navio em Santos e o reconduz de volta a fim de continuar a
viagem. O médico do navio lhe dá um par de sapatos, o leva a passear em
Florianópolis e pede ao comandante que o deixe passar a noite a bordo, pois só
irá viajar no dia seguinte. Antes, já
havia ganho uma capa de borracha, já fora levado ao cinema. O motorista de
caminhão que o leva para Lages o hospeda durante um mês e pede a conhecidos
seus, que estão indo de carro para Caxias, que o levem junto. Um dos
passageiros, coronel da fronteira, dele se encarrega e, juntos, viajam de trem
para Santa Maria e para Santana. E é sob os seus auspícios que chega, de avião,
nos campos de Quaraí.
São
pessoas que não o conhecem e, porque assim são solicitadas ou porque optam por
isso, não se recusam a cuidar dele: há os que o alimentam, há os que o
hospedam, os que lhe dão uma prenda de vestir ou calçar, os que lhe
providenciam transporte. Nada pedem em
troca, o aceitando, assim, estranho e calado, sem lhe saber o nome, apenas que
deve chegar a um destino, alhures. E o gesto de cada um se norteia, somente,
por uma espontaneidade que não pede razões e vai tecendo uma corrente de
solidariedade num mundo que está longe de ser exemplar. E os ridículos desse mundo, suas
mediocridades, suas fraquezas, suas injustiças, Dyonélio Machado não os elude.
Assim, a comovente figura do Louco na sua ingênua confiança em relação ao outro
e o outro, a habitar os tipos que desfilam perto dele e, surpreendentemente,
honra essa confiança, são, na verdade, a afirmação do escritor gaúcho de que é
possível aos humanos serem luminosos.
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