domingo, 5 de agosto de 2001

Celina (2)


            Passava o seu tempo com uns crochês vagarosos, alguma costura leve, a leitura de folhetins, pequenos flirts e, dúbia, um quase namoro com Gilberto, hóspede do hotel de sua mãe. E é no “Hotel Bons Ares” onde, ao levar a mãe para se recuperar, que Alfredo a conheceu. A cada noite, na hora do jantar, entre os comensais, de longe, entrevia-lhe o perfil,  cujos cabelos muito negros e abundantes se destacavam num penteado harmonioso e complicado, em que se enrolavam fitas. Depois da sobremesa, saiam todos para o jardim e Alfredo pensava que havia ido para visitar a mãe e que não ficava bem deixá-la só para ir passear entre os canteiros mas o seu desejo era ir no sulco do vestidinho claro de Celina, que ele via errar como mimosa faléia sob a amendoeira, sob o grande pé de manacá em flor, sumindo-se entre as folhagens daqui, dali [...]. E, assim, sem perceber o leve riso de zombaria que tivera no primeiro encontro, ao vê-lo se ocupar da mãe doentia, como que lhe bastou esse olhar que dela recebia, raio luminoso [...), filtrando sonsamente por entre as pestanas baixas,  [...] morno e dúbio, dardejado por entre a sombra de uns cílios espessos para imaginar um futuro a seu lado.  Mas, à Celina não bastou  a simplicidade dos dias e a vida  rotineira e medíocre que lhe oferecera  e a fez sentir-se ludibriada:  Não, deveras, a vida não lhe corria leve, nem jovial...Ah! não! Era uma monotonia, um isolamento!”. E,  então, mostrar essa faceta de revolta que  irá se revelar nas palavras maldosas e agressivas dirigidas à sogra (   Estou acaso prisioneira nesta casa?...), ao marido quando a vai buscar no hotel da mãe para onde fôra por uns dias ( Lá vamos outra vez para a tapera!...), à irmã ( es uma oferecida, que levas a fazer olho a um rapas que mostra bem não te querer...). Ou no olhar irritado, enviezado que lança á irmã ou que esconde,  errante sob os cílios descidos seus  sentimentos.  Principalmente, nesse arroubo de indisciplina que a leva, sem licença do marido para a casa da mãe que, outra vez, hospedava Gilberto, já não mais o estudante pobre e mofino que fora, mas um homem feito e rico. Ao saber que lhe cortejava a irmã, ele que havia prometido  amá-la sempre, e que, ainda lhe faz juras de amor, enche-se de ciúme e, ao vê-los juntos, sente-se  ferida por uma ofensa grave. Sucumbe a um só desejo: separá-los e, nesse momento, faz de menos o marido e os filhos.  Quando porém, se depara com as verdadeiras intenções de Gilberto – levá-la para viver com todo o conforto, num bairro distante, oferecendo-lhe belos trajes e jóias e distrações – e a sua pressa em dela tomar posse,  não  muito diferente daquela demonstrada por outro hóspede, velho e rico, debate-se, desorienta-se, recua. Então,  quando a sogra, que a fora buscar, fala do amor  do marido e das crianças e das inequívocas razões da moral vigente – debaixo do teto de teu marido está a salvação, está a honra, está a felicidade garantida,  chora muito e implora para ser levada de volta para casa. Logo, diante do marido e do grito de alegria do filho ao tornar a vê-la, esqueceu tudo e num ímpeto bom de alívio, de ternura, de remorso da sua loucura,  pediu perdão e prometeu não dar mais razão de queixa.

            Redenção e retorno ao bom caminho, isto é, ao seio da família de quem, na verdade, muito pouco – ouvir galanteios, recebido um beijo – ou quase nada dele se afastara, que deixará clara a intenção  moralizante de A Luta, estréia de Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo)  no romance (Garnier, 1911), agora reeditado pela Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul.

            Abstraída, porém, essa intenção, Celina e seus encantos – dentes de pérola, pescoço delicado que movia com graça, discrição nos gestos e passos, silenciosa – que por vezes se perdem no relato, se mostrará um personagem habilmente construído. A princípio, esmaecida, nesta figura de sonsa, dúbia, dona de um risinho abstrato de um sorriso um tanto sonso nos lábios ambíguos, ao poucos vai deixando a sua vontade atuar e acaba por se sobrepor `a virtude e à austeridade da sogra e à falta de  escrúpulos e à leviandade da mãe cujas vontades, parecem, a priori, conduzir a ação do romance.

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