domingo, 19 de agosto de 2001

O engenho


Cana-de-açúcar,

Cana-de-açúcar,

Por que não adoças

O canavial?
Amargo mal. 
        Eliseo Porta e Alfredo Zitarroza
            Eram quatrocentos negros, trezentas negras e duzentos negrinhos. O que sobrara dos mil e quinhentos que trabalhavam na grande plantação de cana-de-açúcar, dominadas por um magnífico estabelecimento com seu aqueduto, vencendo as dificuldades do terreno para levar água aos moinhos que esmagam a cana, suas caldeiras e sua refinaria. E, pela elegante casa de moradia onde convivem, harmoniosamente, os tapetes ingleses, os móveis e os candelabros vindos da França e as gravuras e as curiosidades chinesas. É rodeada por um belo pomar de árvores carregadas de frutos, entre um jardim de muitas flores cujas espécies foram trazidas da Europa. Chama-se Villa Lavalle, o nome de seu proprietário, um antigo prefeito de Arequipa. Com a maior gentileza, se prontificou a mostrar a propriedade à visitante francesa, curiosa para ver a cana-de-açúcar, vislumbrada no Jardin des Plantes de Paris, crescer no seu habitat.


            Eram os últimos dias de Flora Tristan no Peru, onde fora em busca da herança paterna. Uma experiência em terra estranha sobremaneira adversa, pois a família não lhe reconheceu os direitos que julgava ter, mas, experiência que lhe deu matéria para um livro: Pérégrinations d’une paria (1833-1834), editado na França em 1838 e que a editora Mulheres de Florianópolis, juntamente com a EDUNISC de Santa Cruz do Sul, publicou no ano passado, numa tradução de Maria Nilda Pessoa e Paula Berinson. Flora Tristan não apenas registra os dissabores que teve com sua família e o cotidiano que viveu nesses meses passados em Arequipa e em Lima como faz reflexões ou emite opiniões quando os hábitos ou os fatos a surpreendem.

            Nessa visita a Villa Lavalle, se depara com o trabalho escravo. Não hesita em dizer a seu anfitrião o que pensa e o diálogo entre os dois é mais um testemunho da cupidez humana que, diante do desejo de riqueza, faz com que se anulem quaisquer princípios num reinado do absurdo a justificar todas as iniquidades e todos os crimes.

            Assim, Flora Tristan afirma o óbvio – o clima é saudável, portanto os negros deveriam ser saudáveis; a espécie humana cresce em meio a calamidades e os negros se multiplicariam se a sua existência fosse tolerável; a escravidão corrompe o homem; o tipo de escravidão na América excede o fardo de dor que foi dado ao homem suportar; se os produtos originados do trabalho escravo perdessem o valor, a escravidão sofreria felizes modificações; os proprietários não se satisfazem com o lucro de seus engenhos de açúcar, mas querem que esse lucro lhes permita fazer fortuna. E, aponta caminhos, não apenas, para dar fim à prática escravagista mas, também, para preparar os escravos para o uso da liberdade. Em resposta, escuta argumentos iguais a todos os que defendem o uso do trabalho escravo: as negras se deixam abortar ou não tem cuidados com os filhos; por preguiça, os negros deixam os filhos perecerem; os negros só trabalham sob a chibata; a escravidão, entre os povos de origem espanhola é mais suave do que em outras nações; a forma com que ela, Flora Tristan considera a escravidão, apenas mostra que tem bons sentimentos e muita imaginação. Termina, dizendo que para ele, um velho plantador, nenhuma das belas idéias que ouviu é realizável.

            Flora Tristan entende que falar com um velho plantador de cana-de-açúcar do Peru significa falar com um surdo e opta por dar um fim à conversa na qual o seu interlocutor não deixou de se mostrar afável e sempre disposto a continuar a mostrar-lhe os seus imensos domínios que se estendem ao longo do mar e ao longo dos extensos campos cultivados.

            Antes de partir, ao entardecer, Flora Tristan ainda pôde ver alguns negros com a expressão sombria, cruel e infeliz a trabalhar e, num calabouço, duas negras trancafiadas porque haviam deixado morrer os filhos, privando-os da amamentação. Estavam nuas e uma delas, jovem e muito bela fixou os olhos na visitante branca como a lhe dizer: Deixei meu filho morrer porque sabia que ele não seria livre como tu; e eu o preferi morto a escravo.

            Um universo desconhecido, mergulhado em trevas e em sofrimentos a fazer com que todas as palavras pareçam vãs.

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