Cana-de-açúcar,
Cana-de-açúcar,
Por que não adoças
O canavial?
Amargo mal.
Eliseo Porta e Alfredo Zitarroza
Eliseo Porta e Alfredo Zitarroza
Eram
quatrocentos negros, trezentas negras e duzentos negrinhos. O que sobrara dos
mil e quinhentos que trabalhavam na grande plantação de cana-de-açúcar,
dominadas por um magnífico estabelecimento com seu aqueduto, vencendo as
dificuldades do terreno para levar água aos moinhos que esmagam a cana, suas
caldeiras e sua refinaria. E, pela elegante casa de moradia onde convivem,
harmoniosamente, os tapetes ingleses, os móveis e os candelabros vindos da
França e as gravuras e as curiosidades chinesas. É rodeada por um belo pomar de
árvores carregadas de frutos, entre um jardim de muitas flores cujas espécies
foram trazidas da Europa. Chama-se Villa Lavalle, o nome de seu proprietário,
um antigo prefeito de Arequipa. Com a maior gentileza, se prontificou a mostrar
a propriedade à visitante francesa, curiosa para ver a cana-de-açúcar,
vislumbrada no Jardin des Plantes de Paris, crescer no seu habitat.
Eram
os últimos dias de Flora Tristan no Peru, onde fora em busca da herança
paterna. Uma experiência em terra estranha sobremaneira adversa, pois a família
não lhe reconheceu os direitos que julgava ter, mas, experiência que lhe deu
matéria para um livro: Pérégrinations d’une paria (1833-1834), editado
na França em 1838 e que a editora Mulheres de Florianópolis, juntamente com a
EDUNISC de Santa Cruz do Sul, publicou no ano passado, numa tradução de Maria
Nilda Pessoa e Paula Berinson. Flora Tristan não apenas registra os dissabores
que teve com sua família e o cotidiano que viveu nesses meses passados em
Arequipa e em Lima como faz reflexões ou emite opiniões quando os hábitos ou os
fatos a surpreendem.
Nessa
visita a Villa Lavalle, se depara com o trabalho escravo. Não hesita em dizer a
seu anfitrião o que pensa e o diálogo entre os dois é mais um testemunho da
cupidez humana que, diante do desejo de riqueza, faz com que se anulem quaisquer
princípios num reinado do absurdo a justificar todas as iniquidades e todos os
crimes.
Assim,
Flora Tristan afirma o óbvio – o clima é saudável, portanto os negros deveriam
ser saudáveis; a espécie humana cresce em meio a calamidades e os negros se multiplicariam
se a sua existência fosse tolerável; a escravidão corrompe o homem; o tipo de
escravidão na América excede o fardo de
dor que foi dado ao homem suportar; se os produtos originados do trabalho
escravo perdessem o valor, a escravidão sofreria felizes modificações; os
proprietários não se satisfazem com o lucro de seus engenhos de açúcar, mas
querem que esse lucro lhes permita fazer fortuna. E, aponta caminhos, não
apenas, para dar fim à prática escravagista mas, também, para preparar os escravos
para o uso da liberdade. Em resposta, escuta argumentos iguais a todos os que
defendem o uso do trabalho escravo: as negras se deixam abortar ou não tem
cuidados com os filhos; por preguiça, os negros deixam os filhos perecerem; os
negros só trabalham sob a chibata; a escravidão, entre os povos de origem
espanhola é mais suave do que em outras nações; a forma com que ela, Flora
Tristan considera a escravidão, apenas mostra que tem bons sentimentos e muita
imaginação. Termina, dizendo que para ele, um velho plantador, nenhuma das
belas idéias que ouviu é realizável.
Flora
Tristan entende que falar com um velho plantador de cana-de-açúcar do
Peru significa falar com um surdo e opta por dar um fim à conversa na
qual o seu interlocutor não deixou de se mostrar afável e sempre disposto a
continuar a mostrar-lhe os seus imensos domínios que se estendem ao longo do
mar e ao longo dos extensos campos cultivados.
Antes
de partir, ao entardecer, Flora Tristan ainda pôde ver alguns negros com a
expressão sombria, cruel e infeliz a
trabalhar e, num calabouço, duas negras trancafiadas porque haviam deixado
morrer os filhos, privando-os da amamentação. Estavam nuas e uma delas, jovem e muito bela fixou os olhos na
visitante branca como a lhe dizer: Deixei
meu filho morrer porque sabia que ele
não seria livre como tu; e eu o preferi morto a escravo.
Um
universo desconhecido, mergulhado em trevas e em sofrimentos a fazer com que
todas as palavras pareçam vãs.

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