Parte de Cuestiones con la vida (Buenos Aires, Galerna, 1986) é
um longo poema narrativo-circunstancial que sob o inocente título de “Rosedal”,
jardim das rosas, se constitui a expressão de um lirismo que a ironia e o humor
que a ele se entrelaçam, não logram diluir. Foi escrito, no exílio, por
Humberto Costantini, narrador e dramaturgo argentino que, nesses versos, dá um
testemunho do sofrimento que advém do viver em terra alheia. Seja ela tão
sedutora e apaixonante como pode ser a cidade do México. Embora os primeiros
versos do poema digam, muito claramente, dessa infelicidade que soe acometer
quem vive no exílio, a emoção maior, a saudade, vai se mostrando no relembrar o
mundo que foi deixado para trás e que o humor, sempre presente, quer, talvez,
atenuar. O poeta revê o Rosedal, prosaicamente delimitado num breve trecho
entre um velho poste de luz e um canteiro de coroa de noiva e o Rosedal de sua
alma, entrelaçado aos momentos de felicidades que ali viveu. Depois, quis
lembrar, também, de outras coisas e deixou que Buenos Aires e seus habitantes
se fizessem presente. E a partir do verso isto foi o que viu... registra
os tipos que circulam pelas ruas da cidade, soberanos, como que a ignorar o que
sempre está prestes a acontecer nesse tempo de terror que vive o país sob jugo
de uma exemplar, como costumam ser todas elas, ditadura. Assim, os que estão
sentados num banco, falando de uma ária de ópera; assim o
avô, passeando com sua neta; e as solteironas tomadas do braço e a velhinha,
fazendo tricô; os jovens, combinando um encontro,o porteiro do hotel a dormis a
sesta. Na paz dessa inconsciente ou falsa inocência a viver o cotidiano, entrando na avenida
é a inegável parcela de realidade: a presença dos matões, da polícia
paramilitar que prende, seqüestra, mata, sem precisar para isto, outras que
suas próprias razões. O poeta, então decreta desse Ford Falcon a inexistência e
continua a olhar para a vida que transcorre nas ruas de Buenos Aires: palavras
de amor, gravadas num tronco de árvore, um cachorrinho de unhas pintadas, um
balão cor de laranja a voar pelo céu. E outra vez, o Ford Falcon, um pedaço
de sombra, uma imundície a manchar a tarde e o domingo. O poeta o
elimina de sua imaginação e de seu olhar que, outra vez, torna para o mundo
diáfano e ensolarado. Faz o que pode para tirar dali o Ford Falcon, usa todo o ritual
para apagá-lo, porém, em vão: a suja mancha estava ainda ali / no mesmo
lugar / e era como um enorme abutre um pesadelo pousado no asfalto.
O poeta sente medo, sabendo o que irá acontecer e, demiurgo, arranca, de um
gesto, o papel da máquina onde queria escrever uma história que ficou assim /
para sempre sem terminar.E outra história que ele não quer contar, plena de violências e injustiças a destroçar vidas, ficou nas entrelinhas. Humberto Costantini, ao optar pelo sugerir – até porque ninguém, na Argentina, nesse momento ignorava as funções repressoras desses carros pretos – não apenas se recusa a um testemunho, talvez porque as palavras sempre se mostram impotentes para dizer do ultraje que significaram essas ações, como, ao usar o recurso das zonas de sombra, transfere para o leitor uma aceitação ou uma recusa de significados.
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