domingo, 9 de dezembro de 2001

Nas linhas


            Em 1986, a Editorial Galerna de Buenos Aires, publicou Cuestiones con la vida de Humberto Costantini, surpreendente quinta edição para um livro de poemas, sobretudo por ser o seu autor mais conhecido como romancista e como dramaturgo. Um êxito que, no entanto,talvez se explique  por se constituírem esses poemas, como diz o Editor, um ajuste de contas com a Argentina, então dominada pelo terror de uma ferrenha ditadura. Que Humberto Costantini combateu com as armas de que dispunha: as palavras. Seu romance De dioses, hombrecitos y policias é uma implacável sátira do Sistema que regia a Argentina na época. Razão, entre outras, suficiente para fazer dele uma persona non grata  no seu país, pois embora não tenham as palavras forças para derrubar governos (ou desgovernos), ela representa, para os que têm má consciência, um ameaça que deve ser banida a qualquer preço. Como tantos outros latino-americanos, Humberto Costantini pagou um preço, o do exílio. E, embora no México, um exuberante universo de buganvílias, beija-flores,cravos, pássaros e lagartixas, também de enormes jacarandás florescidos de céu, de andorinhas, e zumbidos e verdes e silvas e gorjeios que ele tenta, patrioticamente ignorar e onde o idioma é o mesmo que o de seu país, ele sofre o drama de todo estrangeiro:enorme solidão e dificuldade em entender e em se fazer compreender. Uma situação da qual não foram isentos os latino-americanos que buscaram abrigo na Espanha ou na França e aí se depararam com o preconceitos linguístico que determina ser o espanhol da Espanha a língua padrão e que, portanto, não aceita os desvios nela ocorridos em cada pais da América Latina.

            Em Rosedal, poema que faz parte de Cuestiones con la vida, Humberto Costantini, no que define como o civilizado transcendente e culto portenho universal  registra a sua experiência no país dos outros que o leva a se dizer ancorado na cidade do México isto é  estar aí de passagem, sempre disposto a regressar. Um regresso que a sua imaginação faz possível quando se dispõe a escrever uma história feliz quente um pouco imprevisível / evidentemente de saudosas cores argentinas / placidamente linda / discretamente alegre  que se constitui, ele confessa, uma forma de entrar no país, mais precisamente, em Buenos Aires. Percorre a cidade no itinerário dos afetos,alegrando-se ou se entristecendo até que, já meio tonto, se depara com o lugar /  mais alegre risonho esperançoso encantador ameno etc. que nenhum outro: o Rosedal essa ilhota incrível no meio do tormentoso Buenos Aires. O Rosedal que vai descrever no seu traçado de flores que, verdadeiramente, o enraízam nesse espaço entre as roseiras floridas e as glicínias e as coroas de noiva e os jasmins e as begônias; e no seu mundo de lembranças que a fonte, o lago, a pequena ponte dos namorados, as estátuas, as grandes árvores fazem emergir: o menino de treze anos a devorar a mais maravilhosa massa folhada / que faminto algum / tenha devorado na sua vida / desde o começo dos tempos; o adolescente de quinze a agredir sua tristeza pelas sendas com o livro de poemas sob o braço; o moço de dezoito, a namorar num banco mal iluminado; o pai, com os filhos pequenos pedindo guloseimas; o avô, enternecido, a tudo entender; o homem de setenta anos, olhando a vida passar.
            É um pedaço de jardim que testemunhou o passar de sua vida e se desenha diante dos olhos da alma, luminoso, florido, sombreado por araucárias, acácias e eucaliptos e faz de     suas palavras - cores e sons e perfumes  - algo de perfeito para a história que irá escrever: despreocupada diáfana inocente /como aquele pedacinho de universo / limitado por um velho poste iluminado / e um canteiro de coroa de noiva. Então,volta as suas folhas em branco e à sua  máquina de escrever, deixa-se, outra vez, levar pela imaginação enquanto as teclas esperam. Mas, desta vez, já não é o verde morno sussurrante oásis que vê mas um cotidiano a transcorrer como que alheio às loucuras do Sistema.

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