domingo, 26 de dezembro de 1999

O pai. 2


          Juan Carvajo é um dos personagens de Maluco romance do uruguaio Napoléon Baccino Ponce de León. Prêmio Casa de las Américas 1989, foi publicado pela Seix Barral de Barcelona no ano seguinte e, no Brasil, pela Companhia das Letras, em 1992. É o resultado da viagem de Fernando de Magalhães ao redor da Terra, contada pelo bufão da armada, Felipillo Ponce, em carta ao rei Carlos V da Espanha, solicitando uma pensão pelos serviços prestados, pois, no seu entender, fez com suas graças tanto pela empresa como o próprio Capitão Geral com sua obstinação. Inicia a narrativa, após se apresentar como um velho que perdeu a arte de levar ao riso, com a partida dos cinco navios, cinco negras naves, abrindo-se passo, pressurosas, para os confins do mundo conhecido e mais além. Ele quer que seja do conhecimento do soberano, os muitos prodígios que assistiu, as muitas dores e as grandes fomes que sofreu junto com esses duzentos e trinta e sete que se embarcaram na grande aventura do desconhecido. Em alguns deles, se detém ou fixando-lhes os traços ou adivinhando-lhes a alma. E, embora, por vezes, sejam presenças efêmeras, o seu narrar lhes confere a força dos grandes perfis romanescos. Assim, a figura de Juan Carvajo. Raras vezes é mencionado em tarefas de bordo mas, com emoção, para dizer do amor que sente pelo filho, um menino de tez escura, de menos de doze anos que o acompanha na viagem e que ele trata de Hijito. Prodiga-lhe cuidados maternais e está sempre pronto a satisfazer-lhe os gostos e a lhe evitar contrariedades. Hijito  era a luz de seus olhos, o sol que lhe esquentava a vida, a chuva que lhe aplacava a sede [...]. Não se separavam nunca, nem por um instante. Estas palavras do narrador são antecedidas de outras, prenúncio  do que irá acontecer ao menino: um destino funesto que somente será conhecido quase duzentas páginas adiante, quando a narrativa se aproxima de seu final.

          A esquadra ancora diante de Zubu onde os enviados dos ibéricos foram bem recebidos e convidados a desembarcar. O rei aquiesce a todos os desejos de Fernando de Magalhães que, para provar sua força e legitimar assim a dependência do Rei como vassalo da Espanha, se propõe castigar os habitantes de uma aldeia vizinha que nega pagar tributo a seu hospedeiro.

            No ataque, travado ao amanhecer, os ibéricos são dizimados em pouco tempo e batem em retirada, refugiando-se nos navios onde irão velar os seus mortos para, depois, enterrá-los na costa, perto da cruz que ali recém haviam colocado,  expressão da conquista dessas terras distantes. Quebrando o silêncio as tristes clarinadas e os furiosos guinchos dos macacos.   O  capelão benze as sepulturas que a terra jogada sobre elas enche de sombras. O sol ilumina a manhã e não mais os que foram mortos e enterrados. Vinte  e quatro oficiais irão aceitar o convite do rei no intuito de saber o lugar das especiarias que tanto buscam. Os demais voltam ao navio e alguém dá as ordens de partida. O barco se move em direção à terra, a artilharia disparando, O vento sopra forte e com as velas abertas e muito rápido, vão deixando para trás os despojos, as palmeiras e as casas. Também a Hijito .

               No barco, Juan Carvajo corre, desesperado, em busca do filho. Alguém lembra tê-lo visto, nas areias da praia, entretido com o barco de brinquedo que o pai lhe fizera..

            A narrativa do bufão continua. Do sofrimento de Juan Carvajo e de seu filho, agora separados  pelas águas do mar, nada mais será dito.

domingo, 19 de dezembro de 1999

O pai. 1

           Em Tratado da altura das estrelas  (Sinval Medina, Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro e EDIPUCRS,1997), há um “Interlúdio”, página que se quer à parte da narrativa, como bem o demonstram os caracteres distintos daqueles  em que se apresenta o romance. Nele, dirigindo-se ao leitor, o auto-intitulado “relator”, “escriba”, usando uma terceira pessoa, explica a estrutura da sua narrativa, construída em dois eixos principais: as peripécias de um certo lansquenê que, em 1531, anda errante por terras da Península Itálica e a árdua viagem de João Carvalho, piloto que fez, com Fernão de Magalhães, a primeira viagem de circunavegação, partindo de San Lúcar em 1519. E promete descobrir a relação que existe entre tão diferentes histórias o quê, na verdade, é feito, deslindando-se no penúltimo capítulo, “Fresca madrugada”, o novelo que o escriba/relator chama de tortuosa narrativa: o encontro de João Carvalho com o lansquenê que se revela o filho que abandonara à própria sorte em Burneu, uma dezena de anos antes. Na reconciliação que se segue, fica esclarecida a razão da busca do filho,  guardada em segredo durante as suas andanças. Uma procura  que, talvez, seja a desse perseguidor, pressentido pelo pai que dele vai fugindo e se escondendo  No primeiro capítulo, “Trevosa noite”, diz o narrador que ele Já não pode ignorar a raposia do perro que o fareja. Não sabe que é o filho que lhe está ao encalço, esse filho que ficara do outro lado do mundo, entre os infiéis e a quem, já velho, desejaria legar o manuscrito, herdado de Abraão Usque, o rabi que lhe servira de pai, o “Tratado da altura das estrelas”: um registro de idéias perigosas sobre a Terra e o Sol, sobre a influência dos astros no destino dos homens e sobre as minúcias da arte de navegar, tomando como guia as estrelas do céu. A prova de paz entre eles, nesse encontro tardio, é dar o pai ao filho, a posse do manuscrito. O filho, comovido, promete enriquecê-lo com suas próprias notas e deixá-las para os seus descendentes. E nem por um momento, procura explicações para os atos do pai no passado, explicações que o pai não pode dar pois nenhuma  frase, uma só e única frase lhe  ocorreu para se desculpar do amor que nunca lhe tivera; do desejo de vê-lo perecer, ainda bem criança; dos maus tratos que lhe deu quando o soube no navio, embarcado às escondidas; do proposital abandono em terra estranha ao recusar a proposta feita pelo rei de Lucan quando soube que o seu filho havia sido feito prisioneiro e que, em terra, havia um menino, filho do almirante da esquadra: Se o almirante retém meu filho da forma como o faz, nada mais certo que de minha parte, prenda o filho dele para, assim, nos pormos em igualdade de condições. Afinal, temos em mãos a mesma moeda, tão somente do lado inverso.
          João Carvalho, que se refugiara, célere, no barco, ao ver a luta, que haviam empreendido com os naturais da terra ser perdida, ri muito. Já fizera um trato com o príncipe que aprisionara, já recebera o pagamento e, então responde: O menino nada vale, senhores, motivo pelo qual rogo-lhes o favor de liberá-lo sem maiores exigências; a bem da verdade, aquilo nem bom escravo dará, teimoso e pouco serviçal como costuma ser. E voltando-se para o príncipe continua: diz a teu pai que esperaremos até amanhã pela decisão. Ao fim de tal prazo, partiremos para o Maluco deixando para trás sem qualquer remorso o pequeno traste que se proclama meu filho.

 Ficar sabebendo possuir tão pouco preço, deu ao menino razões para escolher ficar entre os mouros.

No prazo azado, os navios, sob o comando de João Carvalho, levantaram âncoras e as velas, favorecidas pelo vento, rumaram em pós de Maluco onde todos os embarcados acreditavam estar as imensas riquezas pelas quais tanto ansiavam.

 

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domingo, 12 de dezembro de 1999

A maçã.

          Em 1952, Les cahiers du Sud de Paris, publicava uma narrativa de Carlos Droguett. Fora traduzida por Francis de Miomandre, poeta e romancista francês, Prêmio Goncourt 1908 que, entusiasmado com o escritor chileno, desejou fazê-lo conhecido na França. Agora, esse texto, “Mort au crépuscule”, tornou a ser publicado no número 844-845 ( referente aos meses de agosto/setembro deste ano de 1999) da revista Europe.


           O relato se inicia com uma breve frase: Um morto sempre é pretexto para muitas coisas. No caso, para o narrador falar do irmão que morreu e de episódios ocorridos na infância a ele relacionados. Como é usual nos textos de Carlos Droguett, várias seqüências se incorporam à linha principal do relato que vai, assim, se construindo em meandros. Não poucas vezes, essas seqüências, ou algumas delas, adquirem um significado maior que a própria ou aparente razão da narrativa. Em “Mort au crépuscule , entre outras, é a lembrança de um momento de perdas. Cruéis como soem ser aquelas sofridas na infância. O narrador se vê, ainda pequeno .Osuficiente para querer muito uma das maçãs que o pai trouxera  ao voltar para casa, ao anoitecer. Uma pequena maçã de cores delicadas. Ele a deseja para levá-la para o quarto e poder olhar para ela, da cama,  porque lhe parece terno, adormecer olhando-a à luz da lâmpada. Quando estende a mão para pegá-la, o irmão com a brutalidade de seus olhos azuis, de seus cabelos loiros bate a compoteira no mármore da mesa e grita para a mãe: Mamãe, o Carlos quebrou a compoteira. O narrador diz não ter escutado o golpe mas sim, ter visto se espalharem os pedaços : ficarem separados para sempre, como uma desgraça muito grande, como alguma coisa que não se pode reparar e que se enxerga com facilidade, que se compreende muito bem. Principalmente, pela primeira vez,  percebeu os traços do irmão, sua grande boca, seu nariz fino, seu rosto pálido, para se dar conta que começara a odiá-lo e que esses cacos de vidro que podia tocar e deles sentir a frieza eram a maldade humana.

           Retoma, então o relato para dizer que é a única recordação que tem de seu irmão, para contar de um sonho ou alucinação que o invade, para esboçar, muito brevemente, a presença de uma palmeira perto do muro e da mãe que reza junto às amigas, da lua, amarela, que surge. E  conclui, repetindo quase a mesma frase que introduz a narrativa, (ele morreu às seis horas e um quarto da tarde. Eu me lembro que o pai tirou do relógio para o anunciar.) numa estrutura circular  e fechada, o que o título anunciara. Na verdade, talvez  seja essa morte o menos importante na sucessão de ausências onde a maçã – ainda uma vez, objeto de desejo – está na origem da perda maior, irreversível e perversa: a perda da inocência. Porque o pequeno Carlos ao se dar conta, ao descobrir  que esses pedaços de vidro quase opacos eram a maldade humana jamais será o mesmo.
 

domingo, 5 de dezembro de 1999

A terra.


                                                                       defende
                                                                       nosso amor, minha alma.
                                                                       Eu o entrego para ti como se deixasse
                                                                       um punhado de terra com sementes.
 

          Los versos del capitán é um pequeno livro de poemas que veio à luz, em Nápoles, no ano de 1952, numa edição artesanal de escassos exemplares, feita por um amigo de Pablo Neruda e se inscreve, inteiro, no amor que o poeta dedicou a Matilde Urrutia. Um sentimento que se expressa, entrelaçado a esse outro, norteador de um viver comprometido com o homem do Continente, na linguagem que lhe é tão própria, onde os elementos – água, vento, sol, chuva, flor, fruto – oferecem um testemunho de vida que irá, freqüentemente, se enovelar, na palavra terra.

Terra, querendo dizer distância, querendo dizer imensidão. Terra, significando origem e destino, desejo de chegada. Terra, lugar de abrigo onde recomeçar a vida; pátria, incitando à luta. Alguma vez, ao redor dessa acepção, um pouco de mágoa se insinua: Minha luta é árdua e volto/ com os olhos cansados/ as vezes de ter visto / a terra que não muda. Mas, também,  por vezes, a acompanha uma louca esperança: caminhando, abrindo amplas estradas contra a sombra, fazendo / a terra suave, repartindo/ estrela para os que chegam. Inabalável certeza deste ofício que o faz acreditar ser sua voz escutada nas margens de todas as terras e que se mescla ao sentir de se saber mais próximo da terra, de se saber parte dela, de percebê-la junto com a mulher amada. Assim, no poema “8 de septiembre”. Inigualável canto ao ato amoroso. As palavras se acrescentam para delineá-lo, mas é num pequeno verso hoje foi a terra inteira” que está sintetizado o imenso da emoção.   

          E, perfeita e acabada expressão do anseio telúrico, presente em todo o livro, o primeiro poema da quarta parte.  Nele se fundem a presença do corpo feminino e os frutos e os aromas e toda uma gama de imagens se sucede para dizer desse amálgama entre os amantes que o poeta canta e torna a cantar. E a palavra terra desponta para marcar o tempo (por anos e por viagens, por luas e sóis e terra e choro e chuva e alegria), para mostrar um renascer que irrompe (como à terra seca a água traz germinações que não conhecia), para exprimir uma identificação com a amada,  (torno a ser contigo a terra que tu es), identificação que estará na origem de um como que esquecido emergir para a vida: torno a saber em ti como germino. Essa assunção de algo que é próprio do vegetal, o germinar, deixa claramente perceber, ainda uma vez, a relação de Pablo Neruda com a terra. Uma relação profunda e sem medida, feita de nuanças – e as cinqüenta vezes que a palavra aparece nesse livro de poemas são disso a prova -  surpreendentes e iluminadas, testemunhas de sua inconfundível maestria na arte de poetar.

domingo, 28 de novembro de 1999

Aventureiros.


          Um grande número de trabalhos, ao longo dos anos, se ocupou de Radiografia de la pampa. Publicado, em 1933, pela Babel de Buenos Aires, esse magnífico ensaio – tido, hoje, como um dos mais valiosos, num Continente que não cultiva o gênero – não foi bem recebido pelo público ao qual se destinava. Seu autor, o argentino Ezequiel Martínez Estrada, tinha, então, quarenta anos e se iniciara na Literatura, exatamente, com um ensaio, “Tesoros velados”,  que apareceu na revista Nosotros, dezesseis anos antes. Embora tenha se expressado em diversos gêneros, Radiografia de la pampa se constitui, no conjunto de sua  obra, um momento decisivo. Ele mesmo assim o considera e, num texto de 1964, afirma que, ao escrevê-la, deixou para trás o que, eventualmente, chamaria de adolescência mental ao aprofundar o seu testemunho de inconformismo em relação à História da Argentina e da América. São seis capítulos, cada um feito de três partes. Do primeiro, “Trapalanda” (termo que significa território legendário e maravilhoso) fazem parte “Os rumos da bússola”, “A época do couro”, “Os caminhos”.

          “Os rumos da bússola”, por sua vez, é composto de oito partes e trata da chegada dos ibéricos ao Novo Mundo. Sugestivo, então, o texto que os encabeça : “Os aventureiros”. Assim são designados por Ezequiel Martínez Estrada os que chegaram para o mundo recém descoberto. Deles, reconstrói a condição sócio econômica precária em que viviam, na Espanha, e que os fazia buscar o oceano para fugir da realidade na qual se inscreviam o fidalgo empobrecido, o artesão sem pão, o soldado sem contrato, o mendigo e o pároco de uma terra sem milagres. Homens que, vindos da pobreza, não traziam para as novas terras quaisquer ideais. Não desejavam colonizar ou povoar, construir, plantar, se enraizar. Queriam, sim, a conquista e o domínio e a riqueza. Mas, sem despender esforços porque trabalhar significava ser vencido. E o velho procedimento ibérico, baseado no ter ou não ter, se instalou no Novo Mundo. Diz o ensaísta que, assim, nas terras da América recomeçou o antigo viciado círculo, dominado por uma ética canhestra: mais honroso do que levantar um muro era traficar com escravos e roubar, sempre melhor do que trabalhar. Procedimentos endossados por velhas fórmulas ocas de instituições que decidiam de leis e de condutas, feitas para a defesa de interesses de alguns e quase sempre escusos..

          E o Novo Mundo, ainda sem um lugar definido no Planeta, ainda sem uma forma conhecida que o distinguisse, foi se submetendo, ainda que à revelia de suas leis naturais de seus habitantes, ao modelo alienígena  dos assim ditos civilizados e que não lhes dizia respeito.
         
          Ezequiel Martínez Estrada, na análise das razões e dos motivos que trouxeram os ibéricos para a América, não encontra heróis. Apenas aventureiros que chegaram somente para exigir regalias. E a qualquer preço.

domingo, 21 de novembro de 1999

A pausa.

          Publicado no ano de 1897, em Lisboa, A viúva Simões aparece, agora, em co-edição da editora Mulheres e  Edunisc da Universidade de Santa Cruz do Sul.  É o terceiro romance de Júlia Lopes de Almeida: pequena obra prima do Realismo no Brasil, uma história que se inscreve, em dois momentos, muito precisos, da vida de Ernestina, a viúva Simões. O momento em que lê no jornal a volta de Luciano Dias ao Rio de Janeiro, vindo da França e aquele em que acompanha, com os olhos, o navio que o está levando de volta à Europa. Entre esse tempo bem definido, o renascer de sua paixão por ele, as esperanças de felicidade que lhe povoam a alma e a tragédia que esse amor provoca, se abatendo sobre ela e sobre sua filha Sara.
          Como cenário, sobretudo, o espaço familiar, um bonito chalet a lhe merecer todos os cuidados, assim como o jardim, o pomar, a horta, o galinheiro, administrados com exagerados escrúpulos para não desmerecer do conceito que adquirira: uma dona de casa exemplar. Ele se encrava no morro de Santa Teresa e de suas janelas, o encanto da montanha, do casario espalhado com seus muros brancos, do mar ao longe, das fortalezas Santa Cruz e da Lage, do Pão de Açucar. Mais adiante, o outeiro da Glória com sua  igreja branca e pitoresca e as ruas elegantes do bairro do Catete. Cenário maior, a cidade, um Rio de Janeiro ainda pleno de poesia, se esboça na descrição de uma rua, na relação de seus tipos populares, nas rápidas notas, entremeadas ao drama vivido pelos personagens. Principalmente, na sua paisagem.

          Ao longo da narrativa, interrompendo-lhe o ritmo, ela vai aparecer em breves seqüências que desenham uma natureza vibrante e tropical: é o dia formoso de um  azul violeta muito intenso. É a manhã gloriosa, a luz dourada, o céu azul. É o mar que sob a luz tremula em ouro, em rosas, em sombras violáceas. É o ar leve, inundando de luz.  São as cores das flores, pétalas solferinas, azaléias brancas, rosas, o verde das avencas e das parasitas de formas artisticamente rebeldes e fantásticas, e o vermelho do cróton, a alvura faiscante da areia.

           E todo um mundo de frutos e flores se mostra na cena em que Sara, ao surpreender uma cena para ela incompreensível, a mãe, recebendo, cordialmente em casa, o maior inimigo de seu pai quando vivo. Indignada, fica sem fala e sai para o jardim, tonta e trêmula. Aos poucos, a dor se mostra e Sara inicia o ritual da destruição: esmaga as flores com os pés, e miosótis e malvas-maçãs, junquilhos, amores perfeitos, violetas, cravos, anêmonas, nardos assim perecem, tristes e inglórios. Fustiga as plantas e pétalas de rosas, hibiscos, dálias, lírios, jasmins se espalham pelo chão. Arranca as frutas e são laranjas verdes, araçás, jambos e pitangas, jogados por terra. Sacode as árvores e desfolha os galhos. Gestos desesperados e incontroláveis que o relato entrelaça a uma exuberância de primavera como para amainar a crueldade de fazer do jardim e do pomar, as vítimas de sua raiva infantil e impotente.

             Sem dúvida, um recurso formal sumamente sugestivo, espécie de síntese da opção estética da romancista.. Como  a breve pausa que antecede as três linhas finais do romance –  O tempo estava esplêndido, de um azul glorioso, o mar desenrolava o seu manto, sem rugas, com uma serenidade de sonho, e as flores desabrochavam numa alegre ansiedade de luz e de vida, perfumando tudo... – antes  que se confirme o triste destino ao qual a mãe e a filha foram destinadas. Expressões a dizer do olhar luminoso com que  Júlia Lopes de Almeida olha para um mundo que também é feito de sofrimentos.

domingo, 14 de novembro de 1999

Já era assim.


           Foi um momento de muitas dúvidas, oriundas de um após-guerra que, revelando o holocausto, fez dos homens vítimas da solidão e do cepticismo. Na Literatura, aconteceu a busca de uma expressão que traduzisse as incertezas e o caos reinantes e, então, novos procedimentos narrativos surgiram: e o monólogo interior e o fluxo da consciência e o rompimento das noções temporais e espaciais e a técnica da “collage” e os matizes e os tons de uma linguagem perseguindo registros inusuais. Para Augustín Yáñez, foi o tempo certo de se lançar na grande aventura de um romance que abandonasse caminhos já trilhados e temas já conhecidos para, investigando as raízes profundas de seu país, elaborar uma narrativa  de caracter nacional. Deixando para trás os relatos curtos e os contos, publica, em 1947, Al filo del agua, obra que será considerada um marco na Literatura mexicana pelas inovações que aporta ao romance. Não somente ao usar recursos narrativos até então inexplorados pelos seus antecessores, como por colocar em questão a submissão religiosa, a tradição ultrapassada e asfixiante, os valores de uma sociedade conservadora. Ao descrever uma pequena cidade do interior do México, se ocupando de seus habitantes é como se o país inteiro fosse mostrado, sem disfarces, na construção freudiana de seus personagens, na religião a funcionar como elemento estruturante e  fundamental do relato, na firmeza com que emergem os elementos de crítica social.

          Ao longo de seus anos e de seus escritos, Augustín  Yáñez teve sempre o México presente e retratá-lo, nesse romance, significou, para ele, questionar uma realidade que acreditava deveria ser transformada. E o faz, servindo-se de recursos narrativos que, se eludem o dogmático, nem por isso deixam de, claramente, evidenciar as mazelas do país. Um país que a voz do povo lamenta estar tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos. Perto o suficiente para, entre outras coisas, exercer uma atração cuja força obnubila com facilidade todo aquele que sabe ser de pobrezas o seu destino e dele quer eximir-se.

          Assim, em dois momentos do romance, se delineia esse auto exílio que é a ida dos mexicanos para os Estados Unidos, em busca de melhores condições de vida.

           Logo no início do primeiro capítulo, Dom Timoteo Limón,  pequeno proprietário rural entre rezas e preocupações e lembranças que o impedem de dormir, pensa no seu filho primogênito, Damian. Há cinco anos, ele partira para o que seu pai chama de maldito Norte, tentando fazer fortuna. É uma ausência doída e que faz medo. E o pai só deseja que ele não se afaste de Deus, não ande em más companhias; que não lhe caia em cima um fio de eletricidade, que não o machuque um trem ou um gringo e que não tenha pleitos com as autoridades pois acredita serem elas terríveis  ao lembrar-se dos que foram e não voltaram: um, acabado na cadeira elétrica, outro, condenado a noventa anos de prisão. Mais os que foram assassinados a tiros ou caíram dos andaimes ou morreram envenenados nos hospitais. Ou, simplesmente, desapareceram. Mais adiante, todo um capítulo, “Los norteños”, é dedicado aos que voltando do Norte, chegam, na opinião da maioria, conspurcados. Então, no povoado, não chegam a saber o que é pior, se a ausência ou o regresso. Porque  os que voltam já não se sentem bem na sua terra, passam a dar mau exemplo ao fazer troça dos valores de seu país, incitam à partida, falam, entremeando o dizer com palavras de outra língua embora voltem tão analfabetos como quando foram. E são tidos por traidores a serviço dos gringos, antecipando-se para ajudá-los a roubar o que ainda resta desse México do qual não puderam se apossar por força das guerras e dos tratados, nos anos idos.

          Depois dessas vozes anônimas, o discurso de Damian, que enfim voltou, a seu pai, querendo convencê-lo das verdades que assumiu, vivendo no Norte e das vantagens de uma vida mais cômoda e mais livre. Daí, a sua convicção de que é preferível que os gringos venham ao México, pois, assim, os mexicanos passarão a viver melhor.             

                      Certamente, uma utopia. Porque não parece ser de praxe que o colonizador permita regalias – e isto de viver bem, nos países de Terceiro Mundo, é, sem dúvida, uma regalia – aos seus colonizados.

domingo, 7 de novembro de 1999

Os reinados.

           Não importa que um ou outro não o seja, mas quase todos os sonetos de Cien sonetos de amor (Buenos Aires, Losada, 1965) são de amor e amor por aquela a quem eles são dedicados: Matilde Urrutia. Ela é descrita com as mais vibrantes e sugestivas palavras, é única e está em cada momento vivido por Pablo Neruda, presente em tudo o que o rodeia.
          “Mañana”, ‘Mediodía”, “Tarde”, “Noche”, cada uma das partes que compõem o livro, como que insinuam o sentir contínuo do poeta que a vislumbra em toda paisagem de seu  mundo esteja ele nas dimensões do feérico ou caiba no mais humilde contorno: a simplicidade dos afazeres cotidianos.

           Entre os vinte e um poemas que formam a Segunda parte de Cien sonetos de amor,  o XXXVI, exemplarmente, sintetiza a relação da mulher amada com as consideradas imprescindíveis pequenas tarefas do dia a dia. Corazón mío são as primeiras palavras do soneto e estabelecem, de imediato, a relação afetiva com aquela a quem o poeta se dirige e que ele vai, a seguir, chamar de reina del apio y de la artesã (rainha do aipo e do tanque), pequeña leoparda del hilo y la cebolla ( pequena leoparda do fio e da cebola). Confessa, a seguir, o gosto em ver brilhar, da amada, o império diminuto, cujas armas são da cera, do vinho e do azeite, do alho e da terra. Ainda, nas três primeiras estrofes do soneto, entrelaçadas, expressões como substancia azul, transmigração do sonho, perfume, loucas escaladas,  salada, mangueira, sabão,  escadas a preparar o último terceto: tu, manejando o sintoma da minha  caligrafia / e encontrando na areia do caderno/ as letras extraviadas que procuravam tua boca. Também nele, a presença de palavras consideradas sem valor poético – sintoma, caligrafia, areia, caderno, letras extraviadas – que o poetar de Pablo Neruda, num uso inesperado de sábias combinações, torna de um perfeito e profundo lirismo. E, eis que aquela que fora apresentada nos primeiros versos como a rainha de pequenas e cotidianas coisas, aparece, agora, apta a influenciar-lhe os versos e encontrar neles um sentir que a delineia em ser erótico, ao confessar que se constitui a razão de seu desejo.

          É um renovado completar da figura da mulher amada: pequenos detalhes prosaicos, originados do viver cotidiano, momentos de emoções profundas, expressos em surpreendentes fulgurações líricas.

          Um todo a se repetir em cada  soneto dessa  centuria em que o poeta quer definir – assim ele diz em Confieso que he vivido – o que Matilde Urrutia significa para ele. Parece não ser pouco pois, enquanto escreve suas memórias, a divisa no jardim e, então, escreve: Da terra, com pés e mãos e olhos e voz, trouxe para mim todas as raízes, todas as flores, todos os frutos fragrantes da felicidade.

domingo, 31 de outubro de 1999

As lágrimas.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou  El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma das mais belas obras da Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñe de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas incertezas e indecisões é feito o terceiro capitulo do romance, “El tercer traslado”.

          Os soldados adoecem, tremem de febre e desvarios e, em pouco tempo, vão envelhecendo, vítimas das penúrias, dos trabalhos e dos sofrimentos, também deste abandono dos sonhos quando devem obedecer as ordens que mal entendem. Mas, salvo breve menção,  escutava alguém soluçar que dilui no indefinido um sofrimento de causa ignorada, a narrativa não lhes registra as lágrimas. Sim, a dos capitães.

            Quando Juan Núñez de Prado, sozinho, torna sobre seus passos, para rever a cidade que abandonara, mal dela se aproxima, lembra dos homens que mandara enforcar e soluça e reza na direção da Espanha. Logo, quase correndo, caminha por suas ruas e tem os olhos cheios de lágrimas. E se aproxima de uma casa,  misteriosamente conservada em meio ao abandono e à destruição e tem os olhos cheios de lágrimas. E noutra, ele entra e são objetos esparsos que ele encontra, são papéis velhos e amarelos onde pode ler algum nome de mulher ou de um barco ou de uma cidade antiga. Pedaço de sílaba, datas, números e outra vez, seus olhos ficam cheios de lágrimas. Já de volta, na cidade recém assentada, se submete à decisão de seus homens – uma nova mudança – o quê, na verdade, vem de encontro a seus desejos. Na continuidade desse movimento de fazer e desfazer, de criar e destruir a cidade, ele como que se perde e mergulha em alucinações – a cidade lhe fala e lhe pede clemência, o capitão que ele talvez tenha matado ou que imagina ter morrido lhe parece próximo e quer falar então, ainda uma vez, os seus olhos se enchem de lágrimas. Antes, já pronto para levar a cidade adiante, amontoada nas carretas, vira chegar, extenuado, com seus soldados quase desfalecendo, um grupo de soldados cheios de terra e famélicos, o capitão Miguel Ardiles, montado num cavalo descolorido e devorado pelos tremores e a febre. Vai a seu encontro para dizer que ele e seus soldados já estavam a caminho e o recém chegado desmonta com lentidão e Juan Núñez de Prado pode lhe ver os olhos cinzentos, descoloridos, frios e melancólicos, antes de lhe dizer que devem partir .Miguel Ardiles argumenta que sua gente está cansada e faminta mas ao ver os soldados a carregarem a cidade, percebe que estão totalmente consumidos, mais do que ele próprio ou seus soldados. E pergunta: Senhor, como carregaremos os feridos e os moribundos?  Senhor, eles não agüentam mais, estão morrendo. Juan Núñez de Prado é invadido por uma onda de calor e um soluço lhe sacode a garganta e se abraça em Miguel Ardiles e o sente soluçar também.

          Passam os dias no constante renovar das lides. Há lamentos de soldados e gritos dos capitães e Miguel Ardiles se põe a soluçar, seus ombros fracos são sacudidos pelo choro e as lágrimas correm de seus olhos. Juan Núñez de Prado compreende que ele está com os nervos quebrados, com a vontade quebrada e que não era essa a razão de seus choro – sofrimentos e misérias passadas – mas a solidão acumulada.

          A solidão que os domina a todos e a ele mesmo. Mas, se de suas lágrimas não são conhecidas as razões, ao compreender Juan Nuñez de Prado as do outro, ele deixa entrever os seus próprios sentimentos. E, abandonando-se, como o seu capitão às lágrimas e aos soluços, um e outro, se mostram na grandeza de uma fragilidade que os torna, comovedoramente, humanos.Carlos Droguett faz, assim, renascer a imagem desses distantes personagens que o tempo cristalizou e ao salvá-los do esquecimento, usando, magistralmente, os recursos narrativos próprios do grande ficcionista, refaz um itinerário de dúvidas e sofrimento que sempre foi  eludido pela História no seu renovado intuito de mostrar apenas grandes e vitoriosas façanhas. 

domingo, 24 de outubro de 1999

Os silêncios.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma das mais belas obras de Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da Cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas incertezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.                                 

           É um mundo povoado de sons. Murmúrios, risos distantes. Alguma canção cantarolada. Sussurros,  golpes de machado e de martelo. Cacarejos, latidos no meio do bosque. Gritos, tosses, badalar de sinos, chuva caindo, ruídos de armas e de ferros. Disparos. Zunir do vento, relinchos, zumbidos. Em raros momentos, o silêncio. Assustador, para os espanhóis, quando os índios se calam; ou quando, na solidão da noite, ele se instala e Juan Núñez de Prado, olhando para o céu e para a terra o percebe e sente desejo de rompê-lo, chamar os soldados e índios. Ou, necessário: ele se dá conta que está calado e sabe que se silencia os que o rodeiam também o farão. Como a seguir-lhe o exemplo – toma do machado e o crava na árvore – os capitães o olham em silêncio e por sua vez se unem para abater o tronco  já ferido. E também o olham em silêncio, sem mover os lábios, sem um gesto, ao escutá-lo contar a morte de Bazán, espanhol que fora enviado com as cartas de explicações para o Vice-rei. Pergunta se alguém o conheceu, se alguém foi seu amigo. Não obtém resposta, pois eles se calam, duvidam. E, Juan Núñez de Prado também se cala e não diz o que lhe passa na mente: que eles devem pensar que foi ele quem o matou quando, na verdade, não está certo se, realmente,  deu com ele na cidade abandonada que fora visitar ou se está imaginando esse encontro. Então, ouve que a nova mudança já fora decidida na sua ausência – o padre Carvajal achara um lugar maravilhoso, imenso e plano, sem serras nem precipícios,  somente vales suaves, colinas recém insinuados – e os capitães se afastam, sem dizer nada, sem explicar nada, sem olhar para ele e sente que  o estavam expulsando do mundo visível. Mas, se submete à decisão da qual não participara pois lhe faltam certezas. Ao assentar a cidade, pela terceira vez, já hesitara. E o capelão havia perguntado se iriam ficar e respondeu que era um belo bosque ali onde estavam. A pergunta, tornando a ser feita, o fez confessar, com dificuldade, a sua dúvida. E, olhando a seu redor, onde a cidade estava a meio concluir, a meio desfazer, lhe vem o desejo de pegar no braço do padre e lhe explicar ou que ele lhe explicasse.  E entre as casas derruídas e os móveis e as madeiras espalhadas e os soldados  se exaurindo em árduas tarefas, ele não fala e o silêncio instala na narrativa, as lacunas que lhe conferem uma ambigüidade jamais esclarecida. E, assim, essas zonas de sombra que a pontilham – porque os que o rodeiam imitiam o seu silêncio, porque ele deseja rompê-lo, porque os seus capitães calam diante dele e porque ele não cede ao impulso de falar – emergem como um recurso narrativo que irá humanizar o herói da Conquista ao mostrá-lo frágil e sem defesa, imerso na sua solidão.

domingo, 17 de outubro de 1999

As vozes.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades.  Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma  das mais belas obras da Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas  de la Conquista da América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Nuñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.
 
           Os capitães clamam, aos gritos, para não se sentirem tão sozinhos. Os soldados amaldiçoam, na penumbra. Juram por Deus ou pela virgem da Macarena. Gritam, no meio da chuva, para se fazer ouvir. Discutem. Em longas conversas, no meio da noite, querem se proteger da solidão.  Embriagados, cantam. Alguém dá explicações, conta as vicissitudes de uma viagem. Com palavras roucas, secas e curtas, os índios, temerosos, falam entre si e  uma  vez, e então repetindo, para convencer, se dirigem aos espanhóis. Mas, sempre, sons distantes, murmúrios. Porque, em El hombre que trasladaba las ciudades, a palavra pertence aos que ordenam. Breves. Parcas. Reticentes. Quando os capitães  falam dos prisioneiros (o que irão dizer, porque não querem pronunciar palavras fatais, embora sejam elas fatais quer as pronunciem ou as calem, o que irão dizer de importante ou terrível ), Guevara diz:  As palavras são sempre terríveis.  Mas, o diz como se não tivesse importância, como se não fosse verdade o que dizia ou não acreditasse ou não lhe importasse ou falasse só por falar, para ganhar tempo. E, Juan Núñez de Prado, ao perguntar a Miguel Ardiles se acredita ser ele é capaz de atraiçoá-lo, o capitão responde: A traição, senhor, é doença de satisfeitos e invejosos ou seja, não lhes concerne pois, estão sempre, e estarão sempre, procurando um melhor lugar para assentar a cidade. E essa busca é a febre que os move, que não admite dúvidas, nem ações postergadas. Em meio ao desvario dos trabalhos e dos planos – faremos uma grande cidade, teremos um castelo medieval, faremos as casas dos principais, edificaremos o quartel, a prefeitura, a casa do bispo e dos corregedores, a casa dos quintos e dos dízimos reais e a mansão de estio do vice-rei – o capelão, padre Carvajal admoesta Juan Núñez de Prado ao percebê-lo sentado numa cadeira: senhor, senhor, governador, príncipe de nossos males e desgraças, senhor de céu e terra, tenente de Deus e do vice-rei, pegaste uma cadeira ao invés de pegar um machado, dois machados  um para cada mão, um para cada árvore [..].
           No exagero  da submissão, ao conferir-lhe, como  senhor de céu e terra, todos os poderes, ao mesmo tempo, o nivela aos soldados que abatem as árvores, incitando-o a pegar no machado E, assim, entre adulações e  reprimendas,  pleiteia o que deseja: duas torres para a sua igreja, dois raios de luminosidade e força e bendições para lançar sobre este punhado de espanhóis sujos e desamparados e espalhados pelas selvas e montanhas. Porém, na hesitação que, na verdade, conduz, sempre, o desejo dos homens de Juan Núñez de Prado, o capelão irá, logo,  se contentar, apenas, com os sinos para guiar o seu rebanho, um tropel de ovelhas  ou carneiros infernais. Mais precisamente subjugá-lo, congregando índios e soldados para insultá-los, dar-lhes medo, amaldiçoá-los. Pois, para o Continente,  diz, não podiam  ter trazido um deus europeu, um cortesão azul ou cor de rosa, fedendo a incenso e a água de rosas  e lágrimas doces e arrependidas[...]Argumento que, pertinente ou falso,  se alia ao menosprezo dos principais ibéricos  pelos seus soldados e pelos índios que, aleatoriamente, acorrentam  às suas ações e que, sem dúvida, esboça uma realidade que não foi percebida pelos conquistadores: a discrepância entre os valores que trouxeram do Velho Mundo (que pretendem impor) e os que encontraram no Continente ( que tentam persistir.)

          Ameaçado, firmemente pelo capelão (armaremos uma revolta e uma traição muito fina e bem organizada e te enforcaremos na melhor castanheira ou figueira ou algarrobo deste bosque silencioso) caso insista em nova mudança, Juan Núñez de Prado responde  triste e sério:  Traição e revolução são frutas de cidades velhas e européias, esquecendo que nas terras das quais está se apossando, sem pejo, ele repete as velhas fórmulas - violências, imposição da vontade em nome de verdades, certamente discutíveis,  desprezo pelos comandados, impunidade para os detentores do poder- caducas mas não por isso menos em desuso.
 
           Assim, nessa recriação do itinerário dos conquistadores, as vozes que se elevam são unicamente  as daqueles que – valha o repetido lugar comum – sempre tiveram voz. E jamais para dizer a verdade. E  sempre para impor razões. Em nome do Rei, em nome de Deus, em nome de seus próprios desejos.
 

 

           

 

domingo, 10 de outubro de 1999

Os gestos.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem  se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma das mais             belas obras da Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas da Conquista da América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado.  Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá  asssento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El  tercer traslado”.                        

          Os soldados acreditam ter chegado e Juan Núñez de Prado, o capitão, sabe do que é acusado e quão próximo se acha o momento em que deve enfrentar o inevitável. E a grande aventura da Conquista, prossegue. São duzentos espanhóis, são duzentos índios que  avançam Continente adentro. A narrativa que acompanha seus passos não lhes enuncia as razões mas, ao registrar seus gestos, permite vislumbrar significados: os da cordialidade (a mão que se levanta para cumprimentar ou mostrar algo, o braço a se apoiar no ombro do  companheiro, a cadeira afastada para ceder lugar,  a mão que oferece a jarra de vinho), os da espontaneidade (segurar a capa nos ombros, se espreguiçar, acender uma tocha e pendurá-la, chutar um sapato extraviado), os da rotina (o ir e vir das sentinelas, as armaduras  tiradas ou colocadas, segurar as rédeas do cavalo ou desmontá-lo,  o carregar o arcabuz).

                        São gestos que humanizam esses homens que a História transformou em sombras vagas, perdidas no tempo. Por vezes, aprofundando o significado das palavras e das intenções: quando o capitão Guevara  faz uma pergunta da qual já conhece a resposta, ele cruza as pernas para fazer mais definitivas suas palavras, para deixá-las aí, visíveis, imóveis e fatais. Ou, quando  anuncia que irão matar aqueles que são reticentes à mudança, se mexe um pouco na cadeira para comprovar sua própria vilania, para verificar que toda sua carne e seu sangue e seus músculos estavam aí, inteiramente, e que estavam despertos e comprovados e que possuíam toda a sua força bárbara.

                        Induzidos por um  desesperado querer, os gestos efetuados pelos soldados, visando a construção da cidade: eles cavam a terra, levantam pedras enormes, dão golpes de pá e de martelo, medem tábuas, as amontoam junto às árvores, carregam móveis, portas, janelas, juntam cadeiras e mesas que as carretas carregadas vão perdendo. São gestos daqueles que almejam se fixar, encontrar, no Novo Mundo, a terra onde deitar raízes. Soldados famélicos, desocupados, desorientados cuja presença se disfarça num pronome indefinido – alguém pregava umas tábuas, alguém ainda trabalhava na cidade – com o qual o romancista os situa como parte da massa anônima e desconsiderada que  permitiu, com seu esforço e submissão, a posse do Continente e que não teve consciência do real significado de seus gestos predatórios. Porque eles atiram, aleatoriamente, nos pássaros: os pássaros se incrustavam no alto, enormes e trêmulos, pareciam, como ele, mortos de frio e de desconfiança, sabia que olhavam para ele com estranheza, com uma estranha proximidade, como se esperassem algo dele, uma palavra de saudação ou conhecimento, umas frases de explicação ou de consolo, ele  apertava sem forças o arcabuz [...], movia os dedos, tratava de se tornar malvado, sanguinário, assassino fácil, mas estava cansado, tinha vontade de ir embora, de ficar adormecido até o outro ano, soavam os ferros em suas frontes e os pássaros abriam os olhos de um modo espantosamente frio e hostil e via a fumaça desmanchar-se com frouxidão, com certa desbotada doçura entre as plumas desfeitas. Porque levantam raízes, cortam árvores,  descarregando, com violência, o machado nos troncos: a árvore se bamboleava, graciosamente, ainda se queixava por dentro, viam os seus galhos se expandir no sol, se abrirem dolorosos e grotescos enquanto os machados balançavam o tronco, balançavam a terra.

                        E, nesse intuito de erguer a cidade, Juan Núñez de Prado ( agarrou o machado e o afundou na árvore até derrubá-la) e seus capitães (empurravam, depois, com todas  as mãos juntas o tronco da árvore que rangia levemente e se inclinava) e o capelão (o padre derruba outro tronco) e o médico (açoitando  a árvore de todos os lados) e os soldados (golpeavam os troncos das árvores e rompiam a terra) abatem bosques inteiros, despedaçando um mundo verde que, depois, abandonam, para recomeçar mais adiante.

                        É uma posse perseguida a qualquer custo. E os verbos açoitar, golpear, cravar, afundar, rebentar expressam a violência que impulsiona cada gesto, traduzindo a visão de mundo que norteou aqueles que chegavam ao Continente. Um abrir caminho através de bosques e montanhas e feridas de soldados e de árvores.

domingo, 3 de outubro de 1999

Os risos.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre      que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando umas das mais belas obras da Literatura hispano-americana. Partindo das Crónicas da Conquista da America a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá o assento pela terceira  vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.
 

          “El tercer translado”  se inicia com o diálogo entre Núñez de Prado e Miguel Ardiles, um de seus capitães que lhe anuncia a vinda próxima de soldados do Chile para prendê-lo. Aferrado a suas convicções –  transferir a cidade para que não caia em mãos estranhas – Juan Núñez de Prado tenta convencer seus capitães. Ao  redor, os soldados e os índios povoam o cenário,  conferindo-lhe o movimento perfeito para que nele aconteça o grande drama individual do conquistador, dado a conhecer por um narrador que, de diferentes pontos de vista, lhe desvenda a alma . Porém, desses soldados, muito pouco se lhes ouve a voz e somente em esparsas e distantes conversas.  Embora instrumentos da conquista – então, armados e belicosos – no romance de Carlos Droguett eles se desenham sempre  feridos, doentes, debilitados ou executando tarefas, presumivelmente, próprias da instalação de uma cidade a partir do nada: traçando-lhe as ruas, cavando-lhe os fossos protetores, construindo-lhes as casas. Breves seqüências testemunham essa presença, muitas vezes, apenas lhe mencionando o riso.  Ou, mostrando o soldado da conquista no abandono de um gesto rotineiro – riam baixo, acendiam fogueiras e faziam comida junto dos móveis, riam, bebiam água fresca na concha das mãos - ou lhe deslindando sentimentos  quando ri feliz,  alegre, impiedoso, com o riso amigável e medido ou sinistro ou cruel, revolto e pegajoso, quando ri com escárnio ou  se expressa com o sorriso gelado dos enfermos.

            Também, revelador de sentimentos, - poucas vezes eles riem  espontaneamente – o riso dos capitães e de Juan Núñes de Prado. Assim, o riso de Guevara, tranquilo, lúcido e alvoroçado chega até os soldados ocupados nas suas lides, como um  riso feliz, aturdido e europeu ou embriagado que os acalma, os faz  sentir-se em segurança, ao abrigo de espionagens e traições.  Em outro momento, porém, ri com nojo, desavergonhadamente diante das dúvidas provocadas pela ida, sem regresso, de um mensageiro, enviado para explicar às autoridades da Colônia as razões das mudanças da cidade e as mortes e ela relacionadas. E com tristeza, sorri o capitão Santa Cruz; cruel e sem esperanças, o riso do médico ao se aproximar dos condenados à forca; para se resguardar, se refugia no riso, o capitão Ardiles .Sem enfado e extravagante ou por condescendência, desejando rir, Juan Núñez de Prado. Seu riso é feliz ou nervoso. Inexplicavelmente obscuro, quando ri ao ver a carreta, desconjuntada (estava repleta de móveis e roupas e índios) deslizar, vagarosamente, pelo abismo. E cheio de susto, claro ou alegre ou maravilhado, o riso dos índios. Submetidos, não levantam a voz  se movem como sombras, trabalhando na destruição e na reconstrução da cidade, como os soldados. Uns e outros a  viver em meio às humilhações, aos maus tratos e aos árduos trabalhos, alheios ao que acontece nesse  desbravar Continente adentro. Então, os risos dos ibéricos  oprimidos e dos índios  subjugados se iguala. Irrompe como um desejo de vida em meio a todas as perdas.

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domingo, 26 de setembro de 1999

A transformação.

          Em outubro de 1959, Pablo Neruda, num breve texto amoroso, consciente paródia do estilo do século XVI, diz o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal, oferecia a  Matilde  Urrutia, os sonetos que a Editora Losada de Buenos Aires irá publicar  nesse mesmo ano:Cien sonetos de amor.  Uma  “centúria”, diz  o poeta, dos que rotula mal chamados sonetos, numerados com algarismos romanos e reunidos sob quatro momentos do dia: Mañana,  Mediodia, Tarde e Noche. Eles dizem da  mulher amada e do amor. Eventualmente, de um mundo nem sempre  receptivo, alguma vez, de utopias.

           O primeiro soneto se inicia com o nome  Matilde que irá aparecer, também, nos sonetos XXIII, XL, L, LI, LXII. Nominada ou não  ela será  presença constante (salvo, talvez, duas ou três exceções), mais precisamente, a razão de cada um deles.

          Na primeira parte, “Mañana”(Manhã), formada por trinta e dois poemas, Pablo Neruda define o amor que o habita (te amo como a planta que não floresce e leva/dentro de si, escondida, a luz daquelas flores) e que, em alguns sonetos,  aparecerá como um sentir que amalgama os amantes, fazendo deles um ser único, indivisível (e hoje diante do mundo somos uma só vida). E que busca o eterno ao não ter começo (  no soneto XII diz desse encontro que é anterior ao momento em que  pousou os olhos em Matilde Urrutia pela primeira vez) e que ele dispõe não terá fim porque – os amantes mortos – irá continuar a resplandecer sobre a terra. Como deseja eterna a figura da mulher amada (e navegue tua estátua pelo cristal eterno) desenhada na beleza das pedras, dos frutos, dos astros, dos cereais, do gosto e dos aromas.

           No poema XXVII, esses elementos se acrescentam – lua, maçã, trigo, estrelas, ouro – para louvar a nudez da amada que ele percebe simples e compara com uma de suas mãos e a quem se dirige, logo no primeiro verso. No segundo , acumula adjetivos sem valor poético (lisa, terrestre, mínima, redonda), para, no verso seguinte, usar metáforas inesperadas (linhas de lua, caminhos de maçã) e no último do primeiro quarteto, compará-la à esbeltez do trigo maduro.

            No segundo quarteto, expressões afirmativas a definem:  es azul, es enorme e amarela num inusual uso das cores que se ameniza ao ter como segundo elemento da comparação a noite em Cuba, o verão numa igreja de ouro.

            O primeiro terceto se inicia, como as estrofes anteriores, com a palavra Desnuda, (Nua) a qual se destinam, outra vez, adjetivos prosaicos (curva, sutil, rosada), como a comparação que os antecede (pequena como uma de tuas unhas) .  Antepõem-se à metáfora que na estrofe anterior lhe concede, juntamente com ser azul ou ser amarela, um perfil feérico:  tens trepadeiras  e estrelas no cabelo. Mas, já no segundo verso, deste primeiro terceto,  acontece a quebra  desse feérico na intercalação de uma nota cotidiana, até que nasça o dia. Então, a amada penetra no mundo, um outro mundo,  diferente daquele em que estivera e que é, certamente, escuro porque ali estão as palavras subterrâneo, longo túnel, trabalhos e roupas;  ali estão os verbos apagar, vestir, desfolhar,  registrando a transformação dessa claridade que a envolve e que volta a ser algo de tão simples e despojado como ser a mão nua.

              Na verdade, o soneto XXVII se encerra nessa simplicidade:o primeiro verso, comparando a nudez da amada com uma de suas mãos e o último, pensando na claridade dessa nudez que, metaforicamente, torna a ser a mão despojada. Esquecendo as normas de versificação própria do soneto, economizando recursos estilísticos, Pablo Neruda não despreza palavras que o linguajar poético tenderia a ignorar. Aproxima-se, assim, desse  soneto de madeira, como explica na dedicatória a Matilde Urrutia, que deseja distante daqueles em que os poetas dispuseram rimas que soaram com o som da prata, do cristal ou do ribombar do trovão.  

              E, assim sem a rima  e sem o  ritmo, sem o brilho das altissonantes  palavras  poéticas o seu poder de mago da expressão lírica se mostra  nesse delinear, com o quase nada das comparações e das metáforas, do corpo da  mulher amada.

domingo, 19 de setembro de 1999

Náiade.

          É um canto de amor a Matilde Urrutia. Começa a escrevê-los em 1957: sonetos que da forma poética tradicional guardam, apenas, os quatorze versos, pequenas casas de quatorze tábuas para que nelas vivam os olhos que ele adora e canta, explica na dedicatória à mulher amada.  Logo em 1959, numa edição privada, é publicado o livro em Santiago e no mesmo ano, pela Losada de Buenos Aires: Cien sonetos de amor.  

           Numerados em algarismos romanos, se apresentam  os sonetos sob quatro rubricas, designando os momentos do dia, “Mañana”, “Mediodia”, “Tarde”, “Noche”, talvez o próprio ciclo da vida. Uma seqüência  feita de uma ou outra rápida incursão em discerníveis episódios reais, mas, sobretudo, de símbolos, na verdade transparentes, porque em cada verso ou em quase todos, está presente Matilde Urrutia: manzana carnal, luna caliente,  espeso aroma de algas, lodo y luz machacados”, diadema, radiante magnolia desatada em espuma. Matilde, a de cabellera palpitante, a de  ojos color de luna, a de diminutas orejas, a de nariz soberana. Uma presença que se faz mais próxima nos versos em que o poeta a ela se dirige, interlocutora silenciosa, delineando contornos com surpreendentes combinações estilísticas: eres de pan, de pan amado por el fuego, eres compacta como el pan o la madera, éres el momento amarillo en que el otoño sube por las enredaderas, eres el pan que la luna fragante elabora paseando su harina por el cielo.

          Assim, no  soneto XXXIV de  “Mediodia”, o poeta a ela se dirige para dizer que é filha do mar e prima do orégano. Um poético e um prosaico enredando-se e se completando nos versos seguintes quando aos dois epítetos – nadadora e cozinheira -, verdadeiras expressões comezinhas, se acrescentam  em definições  laudatórias ( teu corpo é de água pura, teu sangue é terra viva) que serão seguidas, no segundo quarteto, pela apresentação dos poderes que, no entender do poeta, possui a mulher amada: um olhar que, posto nas águas, levanta as ondas, umas mãos que postas na terra fazem rebentar as sementes.        No primeiro terceto retoma o   que  foi dito no início do poema para mostrá-la, outra vez, nadadora,  agora enaltecida pela palavra náiade , ninfa em movimento no azul perfeito e,  outra vez, na cozinha, ressurgindo em flores.

            A exaltação do corpo feminino, expresso metaforicamente ou pela comparação com a figura mitológica ou pela aproximação a um elemento vegetal, através do verbo florescer, continua a apresentá-la, um ser mágico,  ligada aos elementos  água e terra. Porém, neste soneto XXXIV, o poeta se detém, sobretudo nas qualidades que lhe atribui: a  de ter hábitos  floridos e terrestres, a de assumir tudo quanto existe. Apenas no ultimo terceto é que expressará o sentimento que o une à mulher que descreve, ao dizer que no fim de um dia  vivido entre  a água e  a terra ela dorme nos seus braços  protetores que  afastam para que descanse,  o que  acredita ser a matéria dos seus sonhos, algo tão simples como os legumes, as algas, as ervas.

             Entre tantos outros sonetos  que  a desenham como mulher e como companheira – ela foi o seu refúgio, a água para seu corpo sedento, uma fonte de vida, o seu guia nos caminhos da vida, a guarda de seu sono -  e aqueles em que irá cantar o amor em mil nuanças que lhe dedica - o encontro mágico, o fundir dos corpos e das almas, o insaciado e sempre renascido desejo, o eterno do sentir que os une, a ternura que ressurge em cada dia - neste  soneto  XXXIV, quase uma exceção, é o poeta que a protege adormecida. Porque embora seja possuidora de poderes mágicos, ela,  no final do dia, se fragiliza.  Seu repouso é, então, cuidado pelo poeta que, por sua vez, se mostra capaz de efetuar prodígios: conhecer-lhe os sonhos e ter o poder de neutralizá-lo. E o poema se adensa nessa confissão. As expressões correntes – rodeada por mis braços, para que tú descanses - , ladeadas por aquelas feitas de símbolos – sombra sombría, la espuma de tus sueños – desnudam sentimentos que os versos anteriores não deixam prever. E um inesperado e profundo lirismo se instala.