domingo, 21 de novembro de 1999

A pausa.

          Publicado no ano de 1897, em Lisboa, A viúva Simões aparece, agora, em co-edição da editora Mulheres e  Edunisc da Universidade de Santa Cruz do Sul.  É o terceiro romance de Júlia Lopes de Almeida: pequena obra prima do Realismo no Brasil, uma história que se inscreve, em dois momentos, muito precisos, da vida de Ernestina, a viúva Simões. O momento em que lê no jornal a volta de Luciano Dias ao Rio de Janeiro, vindo da França e aquele em que acompanha, com os olhos, o navio que o está levando de volta à Europa. Entre esse tempo bem definido, o renascer de sua paixão por ele, as esperanças de felicidade que lhe povoam a alma e a tragédia que esse amor provoca, se abatendo sobre ela e sobre sua filha Sara.
          Como cenário, sobretudo, o espaço familiar, um bonito chalet a lhe merecer todos os cuidados, assim como o jardim, o pomar, a horta, o galinheiro, administrados com exagerados escrúpulos para não desmerecer do conceito que adquirira: uma dona de casa exemplar. Ele se encrava no morro de Santa Teresa e de suas janelas, o encanto da montanha, do casario espalhado com seus muros brancos, do mar ao longe, das fortalezas Santa Cruz e da Lage, do Pão de Açucar. Mais adiante, o outeiro da Glória com sua  igreja branca e pitoresca e as ruas elegantes do bairro do Catete. Cenário maior, a cidade, um Rio de Janeiro ainda pleno de poesia, se esboça na descrição de uma rua, na relação de seus tipos populares, nas rápidas notas, entremeadas ao drama vivido pelos personagens. Principalmente, na sua paisagem.

          Ao longo da narrativa, interrompendo-lhe o ritmo, ela vai aparecer em breves seqüências que desenham uma natureza vibrante e tropical: é o dia formoso de um  azul violeta muito intenso. É a manhã gloriosa, a luz dourada, o céu azul. É o mar que sob a luz tremula em ouro, em rosas, em sombras violáceas. É o ar leve, inundando de luz.  São as cores das flores, pétalas solferinas, azaléias brancas, rosas, o verde das avencas e das parasitas de formas artisticamente rebeldes e fantásticas, e o vermelho do cróton, a alvura faiscante da areia.

           E todo um mundo de frutos e flores se mostra na cena em que Sara, ao surpreender uma cena para ela incompreensível, a mãe, recebendo, cordialmente em casa, o maior inimigo de seu pai quando vivo. Indignada, fica sem fala e sai para o jardim, tonta e trêmula. Aos poucos, a dor se mostra e Sara inicia o ritual da destruição: esmaga as flores com os pés, e miosótis e malvas-maçãs, junquilhos, amores perfeitos, violetas, cravos, anêmonas, nardos assim perecem, tristes e inglórios. Fustiga as plantas e pétalas de rosas, hibiscos, dálias, lírios, jasmins se espalham pelo chão. Arranca as frutas e são laranjas verdes, araçás, jambos e pitangas, jogados por terra. Sacode as árvores e desfolha os galhos. Gestos desesperados e incontroláveis que o relato entrelaça a uma exuberância de primavera como para amainar a crueldade de fazer do jardim e do pomar, as vítimas de sua raiva infantil e impotente.

             Sem dúvida, um recurso formal sumamente sugestivo, espécie de síntese da opção estética da romancista.. Como  a breve pausa que antecede as três linhas finais do romance –  O tempo estava esplêndido, de um azul glorioso, o mar desenrolava o seu manto, sem rugas, com uma serenidade de sonho, e as flores desabrochavam numa alegre ansiedade de luz e de vida, perfumando tudo... – antes  que se confirme o triste destino ao qual a mãe e a filha foram destinadas. Expressões a dizer do olhar luminoso com que  Júlia Lopes de Almeida olha para um mundo que também é feito de sofrimentos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário