Não
importa que um ou outro não o seja, mas quase todos os sonetos de Cien sonetos de amor (Buenos Aires,
Losada, 1965) são de amor e amor por aquela a quem eles são dedicados: Matilde
Urrutia. Ela é descrita com as mais vibrantes e sugestivas palavras, é única e
está em cada momento vivido por Pablo Neruda, presente em tudo o que o rodeia.
“Mañana”,
‘Mediodía”, “Tarde”, “Noche”, cada uma das partes que compõem o livro, como que
insinuam o sentir contínuo do poeta que a vislumbra em toda paisagem de
seu mundo esteja ele nas dimensões do
feérico ou caiba no mais humilde contorno: a simplicidade dos afazeres
cotidianos.
Entre
os vinte e um poemas que formam a Segunda parte de Cien sonetos de amor, o
XXXVI, exemplarmente, sintetiza a relação da mulher amada com as consideradas
imprescindíveis pequenas tarefas do dia a dia. Corazón mío são as primeiras palavras do soneto e estabelecem, de
imediato, a relação afetiva com aquela a quem o poeta se dirige e que ele vai,
a seguir, chamar de reina del apio y de
la artesã (rainha do aipo e do tanque), pequeña
leoparda del hilo y la cebolla ( pequena
leoparda do fio e da cebola). Confessa, a seguir, o gosto em ver brilhar, da
amada, o império diminuto, cujas
armas são da cera, do vinho e do azeite, do alho e da terra. Ainda, nas três
primeiras estrofes do soneto, entrelaçadas, expressões como substancia azul, transmigração do sonho, perfume,
loucas escaladas, salada,
mangueira, sabão, escadas a preparar o último terceto: tu, manejando o sintoma da minha
caligrafia / e encontrando na areia do caderno/ as letras extraviadas que procuravam tua boca. Também
nele, a presença de palavras consideradas sem valor poético – sintoma, caligrafia,
areia, caderno, letras extraviadas – que o poetar de Pablo Neruda, num uso
inesperado de sábias combinações, torna de um perfeito e profundo lirismo. E,
eis que aquela que fora apresentada nos primeiros versos como a rainha de pequenas
e cotidianas coisas, aparece, agora, apta a influenciar-lhe os versos e
encontrar neles um sentir que a delineia em ser erótico, ao confessar que se
constitui a razão de seu desejo.
É
um renovado completar da figura da mulher amada: pequenos detalhes prosaicos,
originados do viver cotidiano, momentos de emoções profundas, expressos em
surpreendentes fulgurações líricas.
Um
todo a se repetir em cada soneto dessa centuria em que o poeta quer definir –
assim ele diz em Confieso que he vivido
– o que Matilde Urrutia significa para ele. Parece não ser pouco pois,
enquanto escreve suas memórias, a divisa no jardim e, então, escreve: Da terra, com pés e mãos e olhos e voz, trouxe para mim todas as raízes, todas as
flores, todos os frutos fragrantes da
felicidade.
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