domingo, 7 de novembro de 1999

Os reinados.

           Não importa que um ou outro não o seja, mas quase todos os sonetos de Cien sonetos de amor (Buenos Aires, Losada, 1965) são de amor e amor por aquela a quem eles são dedicados: Matilde Urrutia. Ela é descrita com as mais vibrantes e sugestivas palavras, é única e está em cada momento vivido por Pablo Neruda, presente em tudo o que o rodeia.
          “Mañana”, ‘Mediodía”, “Tarde”, “Noche”, cada uma das partes que compõem o livro, como que insinuam o sentir contínuo do poeta que a vislumbra em toda paisagem de seu  mundo esteja ele nas dimensões do feérico ou caiba no mais humilde contorno: a simplicidade dos afazeres cotidianos.

           Entre os vinte e um poemas que formam a Segunda parte de Cien sonetos de amor,  o XXXVI, exemplarmente, sintetiza a relação da mulher amada com as consideradas imprescindíveis pequenas tarefas do dia a dia. Corazón mío são as primeiras palavras do soneto e estabelecem, de imediato, a relação afetiva com aquela a quem o poeta se dirige e que ele vai, a seguir, chamar de reina del apio y de la artesã (rainha do aipo e do tanque), pequeña leoparda del hilo y la cebolla ( pequena leoparda do fio e da cebola). Confessa, a seguir, o gosto em ver brilhar, da amada, o império diminuto, cujas armas são da cera, do vinho e do azeite, do alho e da terra. Ainda, nas três primeiras estrofes do soneto, entrelaçadas, expressões como substancia azul, transmigração do sonho, perfume, loucas escaladas,  salada, mangueira, sabão,  escadas a preparar o último terceto: tu, manejando o sintoma da minha  caligrafia / e encontrando na areia do caderno/ as letras extraviadas que procuravam tua boca. Também nele, a presença de palavras consideradas sem valor poético – sintoma, caligrafia, areia, caderno, letras extraviadas – que o poetar de Pablo Neruda, num uso inesperado de sábias combinações, torna de um perfeito e profundo lirismo. E, eis que aquela que fora apresentada nos primeiros versos como a rainha de pequenas e cotidianas coisas, aparece, agora, apta a influenciar-lhe os versos e encontrar neles um sentir que a delineia em ser erótico, ao confessar que se constitui a razão de seu desejo.

          É um renovado completar da figura da mulher amada: pequenos detalhes prosaicos, originados do viver cotidiano, momentos de emoções profundas, expressos em surpreendentes fulgurações líricas.

          Um todo a se repetir em cada  soneto dessa  centuria em que o poeta quer definir – assim ele diz em Confieso que he vivido – o que Matilde Urrutia significa para ele. Parece não ser pouco pois, enquanto escreve suas memórias, a divisa no jardim e, então, escreve: Da terra, com pés e mãos e olhos e voz, trouxe para mim todas as raízes, todas as flores, todos os frutos fragrantes da felicidade.

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